Se não houve nenhuma alteração de última hora – este texto foi escrito na data de ontem – hoje a Comissão de Anistia irá julgar um dos casos mais insólitos e, diria eu, repugnantes, de pedidos de anistia, aposentadoria especial e indenização: o de José Anselmo dos Santos, o “Cabo Anselmo” (acima em foto atual e ao final deste post em imagem da época do Golpe Militar).

A Comissão de Anistia foi criada em 2001 pelo Ministério da Justiça a fim de propiciar reparações econômicas a perseguidos políticos pela ditadura e que por conta destas foram impedidas de desenvolver sua carreira profissional de forma adequada. O objetivo é estabelecer algum tipo de reparação economico-financeira àqueles que foram torturados, exilados ou demitidos por questões de ordem política até a data da promulgação da Constituição de 1988.

Nada mais justo, portanto. Entretanto, a meu juízo o pleito de “Cabo Anselmo” é no mínimo insólito, ou, sendo menos condescendente, de uma cara de pau sem tamanho. Explico.

Para o leitor mais novo, “Cabo Anselmo” é uma das figuras mais repugnantes da ditadura militar no Brasil. Em 1964 foi um dos líderes da “Revolta dos Marinheiros” que seria utilizada como pretexto final para a eclosão do Golpe Militar de 1º de Abril. Há fortes indícios de que ele era um ‘agente duplo’, na verdade infiltrado pelo Cenimar (o então centro de informações da Marinha) no sindicato.

Esteve preso dois anos após o Golpe e posteriormente foi infiltrado pelos mesmos militares em organizações de esquerda que lutavam contra a ditadura militar, a fim de trair e delatar os companheiros. Nas contas do próprio Cabo Anselmo em entrevista ao programa “Roda Viva” ano passado, suas informações levaram à tortura e a morte cerca de 200 militantes de organizações opositoras à ditadura.

Lembro, também, que entre os delatados e mortos a partir da traição do “Cabo Anselmo” está simplesmente a própria namorada dele à época, Soledad Viedma, assassinada com mais cinco militantes em Paulista, Pernambuco, em 10 de janeiro de 1973 como resultado de informações passadas aos agentes repressores pelo citado. O detalhe é que ela estava grávida de sete meses de um filho dele, que nem assim deixou de levar a frente o seu trabalho de delator. Ele mandou-a e o próprio filho para a morte.

Soledad Viedma antes de ser executada a tiros foi torturada e queimada viva pela equipe do delegado Sergio Fleury, um dos maiores carniceiros do aparelho de repressão da ditadura – sob o olhar de Anselmo. A ação dizimou a VPR, Vanguarda Popular Revolucionária, um dos grupos da esquerda revolucionária brasileiros. Aliás, fazendo um parêntese, as suspeitíssimas condições da morte do Delegado Fleury parecem ter sido elucidadas no recente “Memórias de Uma Guerra Suja”, que resenharei proximamente.

Após a redemocratização Cabo Anselmo teve de fazer plásticas e trocar a identidade a fim de não ser reconhecido, aparecendo recentemente no cenário brasileiro. Tanto que até hoje ele não tem um documento de identidade formal, apesar de contar 68 anos.

O leitor deve estar se perguntando como é que um dos maiores algozes da ditadura brasileira, o homem que se prestou ao papel abjeto de se infiltrar, delatar, trair e levar à tortura e a morte os companheiros, está pleiteando indenização e reconhecimento típicos de quem foi perseguido político. A alegação é de que Anselmo somente teria “trocado de lado” após 1971, ao ter sofrido supostas torturas. Entretanto, como escrevi no início deste texto são fortes os indícios de que ele colaborava com a comunidade de informações e posteriormente com a repressão antes mesmo do Golpe Militar de 1964. Um caso clássico de “agente duplo”.

Note o leitor que na já citada entrevista Cabo Anselmo deixa claro que não se arrepende de nada do que fez, nem de ter mandado a mulher e o filho para a morte. É este o sujeito que se diz “perseguido político” e “vítima da ditadura”. Quem me conhece mais de perto sabe que sou radicalmente legalista, mas este é o tipo do sujeito que, já que não pode apodrecer na cadeia (que deveria ser o seu lugar), não lamentaria nem um pouco se aparecesse “justiçado” por aí…

Aí chamo a atenção para outra questão, que é o fato de que a anistia de 1979, na prática, foi para apenas um lado. Quem combateu o regime foi preso, torturado, exilado ou morto. Os torturadores e assassinos de Estado desfilam até hoje livres, leves e soltos, muitos deles ocupando cargos de destaque no aparato de segurança pública. Acrescente-se que a própria Presidenta Dilma Roussef, após ser torturada e presa, cumpriu pena de prisão antes da anistia.

Por isso que sou a favor que a recém instalada “Comissão da Verdade” concentre-se em investigar os algozes, os torturadores, os assassinos, os perpetradores do terrorismo de Estado que se instalou na ocasião e que jamais foram punidos. Sou a favor de uma revisão a fim de colocar estes sujeitos no lugar onde deveriam estar: a cadeia.

Voltando ao tema, se tal pleito do Cabo Anselmo for atendido irão se abrir brechas para que sujeitos como Brilhante Ulstra ou o próprio Cláudio Guerra – cujas memórias da repressão estão no já citado “Memórias de Uma Guerra Suja” – também objetivem reparações por terem sido “perseguidos” pela ditadura. É um tremendo contrasenso, para se dizer o menos – e significaria mais uma vitória da infâmia.

O lugar do Cabo Anselmo é na cadeia, não posando de vítima – quando na realidade foi algoz. Deixo ao leitor a minha revolta com a situação e espero que a Comissão da Anistia tenha o bom senso de negar o pedido.

Aguardemos.

11 Replies to “Cabo Anselmo: a Vitória da Infâmia?”

    1. Nem tão boa assim, Régis. Esse cara não deveria estar solto por cá… TORTURADOR!!!!!!

  1. O Cabo Anselmo tentou ter seus 15 minutos de fama ao ser entrevistado, no Roda Viva, ano passado. Entrevista inócua, pois não falou nada que os demais já sabiam – e ficou calado diante da maioria das perguntas. Devia estar preso e ser um dos primeiros procurados a depor por essa Comissão da Verdade que acaba de ser implantada. Seria o cúmulo se ainda saisse dessa história toda ainda levando um “troco” ($$$) do contribuinte. Se bem que diante do festival de absurdos da atual política brasileira, cheguei a temer que pudesse ganhar realmente algum ressarcimento.

  2. Ao que parece, é um assunto onde todos concordam: ele não tem porque pedir a indenização e deveria estar preso.

    E como um outro leitor me lembrou, há suspeitas de que ele tenha sido agente da CIA ( a agência de inteligência norte americana) no período pré-golpe.

    abs

  3. Verdade Gabriel. É difícil até falar sobre uma pessoa que entrega para ser torturada e morta a própria mulher grávida. Deveria estar preso, como também deveria estar o Ustra, Curió, Caribé, Shibata e muitos outros que continuam soltos por aí.

    1. eu li uma matéria sobre este livro ocm o autor, se não me falha a memória no site “Viomundo”. Tem um outro, de capa vermelha, sobre o Araguaia muito bom de autoria da jornalista Taís Moraes – mas que não deve ser lido à noite, porque é cruel.

  4. Não entendi… Olhem bem a primeira foto. O Nino (José de Abreu) está pedindo aposentadoria especial por ter trabalhado a vida inteira em um lixão ou o Cabo Anselmo está pedindo aposentadoria especial por ser ele próprio um lixão ?

  5. Eu trabalhei com cabo Anselmo alguns anos ele vive com outro nome e nunca achei que ele vivia sua própria vida e ele nem sabia que eu sabia que ele era cabo Anselmo.

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