Nesta quarta feira, a coluna “História & Outros Assuntos”, do Mestre em História Fabrício Gomes, faz um pequeno histórico do gênero e aborda as diferenças entre biografias escritas por historiadores e as elaboradas por jornalistas.
Em um momento onde há vários exemplares deste gênero nas prateleiras das livrarias, é um bom “guia de leitura”.
Historiadores vs Jornalistas: O Combate Biográfico
O Retorno da Biografia e o Modus Faciendi da História de Vida
A historiografia francesa foi aquela que mais desprezou a biografia como prática historiográfica, relegando esta a um plano secundário, em detrimento da valorização das estruturas econômicas e das mentalidades, desde os primeiros trabalhos da Escola dos Annales.
Na primeira metade da década de 1970, mesmo com as reflexões que tinham como objetivo a renovação do campo das pesquisas em História, a biografia ainda não era citada e mesmo em La Nouvelle Histoire, um dicionário organizado por Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel, publicado em 1978, não se lia nada a respeito do gênero biográfico. Somente em 1986, no Dictionnaire des Sciences Historiques há menção, em um verbete, à “história biográfica”, assinado por Guy Chaussinand-Nogaret. Foi a partir da década de 1980, então, que houve o retorno da biografia histórica, tendo dois ícones justamente identificados com a historiografia francesa – George Duby, que escreveu “Guilherme, Marechal”, e Jacques Le Goff, autor de “São Luís” – como representantes do ressurgimento da biografia.
Este “retorno”, no entanto, não ocorreu apenas em escala européia: no Brasil, observamos que muitos historiadores também começaram a trabalhar com biografias: Luiz Mott, com “Rosa Egipciana: uma santa africana no Brasil”, Ronaldo Vainfas, com “Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição”, João José Reis, com “Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX”, Vavy Pacheco Borges com “Em busca de Gabrielle: séculos XIX e XX”, Laura de Mello e Souza, com “Cláudio Manoel da Costa”, e mais recentemente, Jorge Ferreira, com “João Goulart, uma biografia” – só para citar algumas (foto de Jango acima).
Por outro lado, constitui equívoco pensar que apenas historiadores com trajetória e carreira renomadas produziram biografias. Também na pós-graduação há biografias sendo produzidas por doutorandos – alguns escrevendo biografias de personagens importantes para regiões específicas, como “Visconde de Guarapuava: personagem na história do Paraná – Trajetória de um homem do século XIX”, sem ressonância histórica em nível nacional, o que prova que o gênero biográfico vem recuperando o seu prestígio e a sua legitimidade como prática historiográfica.
“O retorno da biografia é um movimento internacional e perceptível em diversas correntes recentes, tais como a nova história francesa, o grupo contemporâneo de historiadores britânicos de inspiração marxista, a micro-história italiana, a psico-história, a nova história cultural norte-americana, a historiografia alemã recente e também a historiografia brasileira atual. Apesar das diferenças entre estas tradições historiográficas, é marcante em todas elas o interesse pelo resgate de trajetórias singulares.” (SCHMIDT, 1997:5)
Mas como falar em “retorno” se, em geral, as biografias, mesmo negligenciadas por décadas, nunca deixaram de ser produzidas – por jornalistas e curiosos?
Não seria, portanto, a expressão “retorno”, produzida em um contexto de influência francesa, já que a Escola dos Annales, na tentativa de se desvencilhar do ranço positivista, que valorizava apenas os estudos institucionais e a abordagem de grandes estadistas e personagens grandiosos, abandonou a biografia e depois retornou a ela?
Na verdade, foram os historiadores que se eximiram de produzir biografias – fugindo do paradigma da história tradicional – “a história feita por grandes homens”. Biografias produzidas com fins comerciais e mercadológicos, que só sabiam exaltar as qualidades dos indivíduos na tentativa de eternizar a personagem – aquilo que Pierre Bourdieu chamou de “a ilusão biográfica”, que elimina qualquer negativismo do conteúdo narrativo, e de cunho sensacionalista, fizeram com que os historiadores olhassem o gênero com alto grau de desconfiança.
 Historiadores vs Jornalistas
Os próprios jornalistas – e suas práticas narrativas – constituem alvo de crítica dos historiadores. Há diferenças no modus faciendi de contar a vida dos indivíduos e na abordagem histórica e jornalística na construção de biografias: o historiador, ao contrário do jornalista, precisa ter o respaldo das fontes. Já o jornalista, por sua prática profissional, pode se reservar ao direito de preservá-las. A utilização da prática ficcional na narrativa, pelos jornalistas, é também outra característica vedada aos historiadores.
Por outro lado o historiador carece ainda de certa “humildade” na forma de se dirigir ao público, não por vontade própria, mas porque foi acostumado, na Academia, a escrever para um público restrito – uma minoria especializada – e por isso faz uso de alta dosagem de erudição. Um graduado em história escreve, em sua monografia, para duas pessoas; um mestrando, para três pessoas que formam sua banca; e um doutorando, para cinco pessoas. Uma “multidão” de pessoas…
No trabalho biográfico, o historiador tem o controle das fontes e faz a crítica delas, fazendo uso de determinadas metodologias. E é possível ter objetividade. Constitui argumento falacioso dizer que, ao se ter empatia com o seu objeto, o historiador perde objetividade. O historiador – e qualquer pessoa oriunda das Ciências Humanas – não é neutro com seu objeto de estudo. Ao escolher um tema já fica claro e evidente que ele tem simpatia por aquele assunto. Não gostar do tema é que constitui problema.
Uma coisa é a percepção crítica que o historiador não pode perder, que é sua obrigação, ao fazer o distanciamento do tema, para ter a percepção crítica em relação a ele. Como bem disse Marc Bloch, “o historiador não julga, o historiador compreende”. O biógrafo pode não esconder simpatia pelo biografado, desde que não esconda nada do leitor – os erros, os equívocos, as hesitações – proporcionando a este raciocinar e fazer seu julgamento como bem lhe convém.
Também é necessário perceber que cada época tem seu tempo e que o ser humano é envolto em relações sociais, estando mergulhado em biografias paralelas desde que nasce. Não se entende João Goulart sem sua esposa Maria Thereza; Não se entende Getúlio Vargas sem o PTB. Biografias são paralelas e se entrelaçam. Constatam-se também as aproximações que, através da biografia, a história faz com a antropologia, na qual o resgate das histórias de vida já é comum, e com a literatura, que está preocupada com as técnicas narrativas de construção das personagens.
Entretanto é necessário admitir que algumas armadilhas são apresentadas ao historiador ao longo da construção de uma biografia histórica. Decerto que a mais perigosa de todas é a questão do anacronismo. O historiador, ao saber do futuro das personagens que biografa, adquire poder. Quando Luís Carlos Preses e Carlos Lacerda nascem, o historiador já sabe da trajetória de cada um e que sofreram reveses políticos após o golpe civil-militar de 1964. Fazer uso de uma história teleológica pode atrapalhar, pois o historiador pode acreditar na inevitabilidade dos acontecimentos.
Nada na história é inevitável. Jacob Gorender tem uma frase exemplifica isso: “As pessoas dizem que o Golpe de 1964 era inevitável porque ele aconteceu”. Ao construir uma biografia, o historiador deve abstrair que, embora saiba o que irá acontecer, seu objeto de estudo não sabia.
Referências Bibliográficas:
BLOCH, Marc. A Apologia da História Ou O Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. Paris: 1986. In: AMADO, J; FERREIRA, M.M. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
COSTA, Arrisete C.L. Biografias Históricas e Práxis Historiográfica. Saeculum – Revista de História n. 23. João Pessoa, julho/dezembro 2010.
SCHMITD, Benito. Construindo biografias. Historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 19, 1997. p. 5