A próxima quinta feira, dia 26 de agosto, marca o aniversário de encantamento de um passarinho cantador dos mais raros da fauna brasileira – o craque Geraldo Cleofas Dias Alves, o Geraldo Assoviador. Certa vez escrevi, no meu antigo blog, um texto louvando a memória de Geraldo. O momento é de homenagear de novo Geraldo, seguindo a lição dos mais velhos. A única morte efetiva, incontornável, maldita, é o esquecimento. A vitória da vida é a lembrança. Geraldo é Egungun no meu terreiro brasileiro; ele baila com as vestes sagradas dos ancestrais. Aqui, pelo menos, ele não será esquecido. Contar dos ancestrais é dar continuidade à cultura e manter as tradições da aldeia.
Peço a licença na regra dos preceitos e louvo no texto abaixo um ancestral do meu país. Agô Baba, Mojubá. Agô Babá, Mojubá. Agô Babá, Mojubá. O nome é Geraldo Assoviador, e que ele um dia seja lembrado pelos netos dos nossos netos como faço agora.
Uma das coisas que mais me fascinam no Brasil é a impressionante capacidade que o povo brasileiro teve de se apropriar do futebol europeu – o tal do violento esporte bretão – e lidar com o mesmo não como simulacro, mas como reinvenção. Esse talvez seja o traço distintivo mais importante de um certo modo de ser brasileiro; a capacidade de apropriação de complexos culturais estranhos e o poder de os redefinir como elementos originais. Coisas nossas, como disse o menino Noel Rosa.
Não consigo pensar, em suma, o Brasil sem refletir sobre o futebol e a criação de um modo brasileiro de jogar bola completamente diferente do sisudo jogo inventado pelos britânicos. Isso vale para a música, a dança, a culinária, as formas de amar, sofrer, chorar, enterrar os mortos e celebrar a vida. Amamos, dançamos, morremos, choramos, celebramos, comemos e tomamos cachaça, enfim, da mesma forma como gostamos de jogar bola.
Digo isso e penso, imediatamente, na figura maior de um craque que, infelizmente, não tive a oportunidade de ver nos gramados como deveria. Falo de Geraldo Assoviador, meio-campista do Flamengo de meados da década de 1970. Eu era bem menino, doido pela bola, e ouvia impressionado meu avô contar sobre uma mania que Geraldo tinha durante as partidas, a de assoviar enquanto realizava as jogadas mais inusitadas em campo.
Esse hábito de jogar assoviando deu a Geraldo a fama de irresponsável, irreverente, descompromissado, chupa-sangue e outras baboseiras do gênero. Queriam que o neguinho Geraldo, mineiro de Barão de Cocais, se comportasse como um respeitável centro-médio europeu, de cenho franzido e olhar de touro brabo, uma espécie de candidato a meia direita da seleção da Escócia. Mas Geraldo era brasileiro.
Não percebiam, os senhores críticos, que Geraldo jogava bola com a mesma naturalidade com que cruzava uma esquina, comia um tutu com torresmo ou tomava uma abrideira para chamar o apetite. Geraldo jogava como vivia – ou vivia como jogava, sei lá. Já cansei de sonhar com uma cena ( será que ocorreu?) que é a seguinte: durante um clássico no Maracanã, estádio lotado, uma pipa cai no meio do campo; Geraldo captura, com jeito moleque, o papagaio e começa a empiná-lo, enquanto dribla os adversários e assovia em direção ao gol.
Lembro-me, impressionadíssimo, quando numa certa tarde de 1976 recebi a notícia de que Geraldo, o craque que assoviava, tinha acabado de morrer, aos 22 anos de idade, em consequência de uma parada cardíaca sofrida durante uma operação de amígdalas. Quero crer que aquela foi a primeira notícia de morte que recebi, muito menino ainda, na minha vida. Nunca mais esqueci. Meu avô, chorando copiosamente, repetia apenas:
– Cracaço! cracaço! Que pena. Você, que gosta tanto de futebol, não viu esse garoto jogar.
Muito tempo depois – meu avô já tinha ido oló – eu estava num terreiro de candomblé para participar de um xirê em homenagem a meu pai Ogum, o orixá dos metais e da guerra. Eu tocava o lumpi, um dos atabaques sagrados. Durante a festança, com o coro comendo solto, Exu tomou o corpo de uma yaô para participar da alegria de Ogum, seu dileto irmão. Imediatamente, para se fazer reconhecido na terra, Exu gingou como exímio capoeirista e deu o seu ilá – o som que o orixá emite quando sai do Orum, o país do mistério, e vem ao Ayê , o nosso mundo, para comungar com os homens.
O ilá de Exu, meus camaradas, era um assovio longo e afinado, como quem silva para chamar o vento e enfeitiçar o mundo com a precisão do passe.
Quem disse que eu não vi Geraldo em campo?
Sensacional Simas!
Seus textos cada vez mais representam o “encantamento” das palavras, que deixam a tela do computador e passam a morar em nossas almas e corações brasileiros.
Saravá!
Excelente e emocionante.
Acompanho o blog ha’ algum tempo via Google Reader e dessa vez tive que vir ao blog agradecer diretamente pelo post.
Abracos,
–Fred
“A única morte efetiva, incontornável, maldita, é o esquecimento. A vitória da vida é a lembrança.” Mais sonoro que este silvo, mestre, não há.
Parabéns, linda história.
Abraço!
Valeu, DIEGO. Saravá!
FREDERICO, seja bem chegado na área. Abraço.
BRUNO, meu camarada, valeu o elogio. Resta apenas marcar aquela gelada na Tijuca. Abração!
Lula
Faço minhas as palavras do Diego ele foi muito feliz ao se expressar
Parabéns, lindo, lindo, lindo texto.
Simas,
Eu era moleque também, adora jogar bola e meu pai também falava muito do Geraldo. Engraçado que eu tinha uns colegas que também assobiavam nas peladas, certamente influenciados por ele. Valeu demais a lembrança.
Abraços!
Deixo aqui registrado o meu muito obrigado pelas palavras e a saudade eterna pela craque… meu nome éLincoln Dias Alves Junior, Fiho de Lincoln dias Alves irmão de Gerâ e com muito orgulho sou sobrinho dessa fera! Hoje com certeza bate bola em um time com Garrincha, Denner e muitos outros craques no andar de cima…
lembro do Geraldo, tinha uns 12 anos e era da selaçao do colegio um meia lmitado, onde estudava aqui em Ctba – Geraldo jogava facil e chamava a atenção nas poucas oportunidades de visualização daquela epoca. Botei no meu blog.
Cheguei ao Flamengo em 1974 para tentar a sorte no clube , vindo de Rio Pardo , terra dos meus conterraneos Zanatta e Rondinelli fui levado pelas mãos da mesma pessoa que levou os dois ! Chegando na praia do Flamengo 66 para fazer um teste , conheci um jovem , já profissional , chamado Geraldo e que residia com os atletas amadores …..por lá fiquei por 3 anos , para admirar aquele que seria um grande amigo e que fazia com a bola de tenis algo que jamais havia visto na vida , quando jogavamos (tapa) hoje squash na quadra da velha sede .Amigo , esteja onde estiver , saiba que reverencio seu nome e sua arte para todos que conheci na vida , pois jamais vi nesses 55 anos alguem jogar futebol como vc jogava . Nos vemos por ai ……