O esporte olímpico que costumava ser chamado de Arco e Flecha, ou Arqueirismo, agora quer ser conhecido pelo nome mais pomposo de Tiro com Arco. Para facilitar, neste artigo usarei simplesmente arqueirismo. A simplificação se justifica em razão da importância da mensagem, que não pode deixar de ser ouvida por excesso de solenidade.

Com efeito, enquanto parte da cobertura da Rio 2016 se ocupa de temas mornos como a ausência dos grandes nomes da NBA e a lesão que pode tirar Usain Bolt dos Jogos, e outra banda prefere fazer sensacionalismo com a falência do Rio de Janeiro e o colapso da segurança e da saúde pública, ninguém está prestando atenção a uma tragédia iminente: pela primeira vez desde 1984, o Butão provavelmente não enviará um arqueiro às Olimpíadas.

Butão 2Para se ter ideia da dimensão desta catástrofe não basta olhar o livro de recordes e o quadro histórico de medalhas, nos quais a Coreia do Sul figura como a potência dominante. É preciso entender que em nenhum outro lugar o arqueirismo é amado como no Butão.

Este país montanhoso tem uma área pouco menor que a do Estado do Rio e uma população pouco menor que a de Nova Iguaçu. Fica na parte leste do Himalaia, encravado entre o nordeste da Índia e o sudoeste da China. E é o único país do mundo em que o arqueirismo é o esporte nacional, tal como declarado quando se tornou membro da ONU, em 1971.

O arqueirismo é o próprio centro da vida social butanesa, de modo que cada vilarejo tem seu campo. Há disputas vivas entre as torcidas de cada atleta, gButão 3eralmente capitaneadas por mulheres, que se dedicam vivamente a provocar e distrair a atenção dos adversários de seus favoritos. Paralela à disputa esportiva há sempre um embate verbal, quando os oponentes tentam intimidar uns aos outros com bravatas poéticas.

Butão 4Assim é que, desde a estréia do Butão nas Olimpíadas, em 1984, até 2008 o país só classificou arqueiros para os Jogos. Mas a verdade é que a performance foi ficando cada vez menos competitiva.

Em 84 o Butão classificara três arqueiros e três arqueiras, os quais puderam competir nas provas individuais e de equipes. Nenhum passou da primeira rodada, mas as mulheres estavam todas entre as 50 melhores do mundo, destacando-se a grande Sonam Chuki (42ª à época). Em 88 só a equipe masculina se qualificou, mas em 92 voltou a disputar no masculino e no feminino, sempre perdendo na fase preliminar.

Butão 5De 1996 a 2008 os butaneses só conseguiram qualificar atletas, um de cada sexo, para as competições individuais. O ponto culminante deste período foi a performance de 2004, quando Tashi Peljor e Tschering Chhoden conseguiram as primeiras vitórias olímpicas do país, classificando-se para a segunda fase das competições masculina e feminina.

Para dar uma ideia do heroísmo deste feito, vale sublinhar que Peljor, então o 52º do mundo, tornou-se o arqueiro de ranking mais baixo a classificar-se para uma segunda rodada olímpica, e com a 4ª melhor pontuação da primeira fase! Infelizmente, nem ele nem Chhoden conseguiram passar do segundo confronto, mas terminaram ambos entre os 32 melhores de cada torneio.

Butão 6Até que em 2012 aconteceram duas novidades: Uma, o Butão não conseguiu classificar um arqueiro para a prova masculina; a única atleta qualificada foi Sherab Zam, que novamente perdeu na rodada inaugural. Duas, pela primeira vez na história o país classificou um competidor (também mulher) para outro esporte que não o arqueirismo: Kunzang Choden, no tiro esportivo.

Para 2016 o quadro piorou de vez. A delegação deverá ter apenas uma competidora, de tiro (Kunzang Lenchu, mais por cortesia dos organizadores), e o Rio aparentemente não terá a felicidade de receber um arqueiro butanês. Pudera: o arqueirismo olímpico do Butão está em seu ponto mais baixo em muitas décadas, não havendo nenhum atleta do país entre os 200 melhores no ranking mundial, em nenhuma categoria.

Butão 7A melhor esperança para o futuro é Karma, 250ª do ranking feminino de arco recurvo. Entre os homens, o mais bem colocado ainda é o legendário Tashi Peljor, que, apesar do sucesso em Atenas, hoje está só no 305º lugar no ranking de arco composto. (De passagem, o Brasil atualmente tem um prodígio no arco recurvo: Marcus D’Almeida, 16º do mundo aos dezoito anos.)

Parte da decadência do Butão no esporte que lhe dá a identidade nacional pode ser explicada pelo fato de que o sistema de competições deles difere do padrão olímpico, sendo mais apropriado falar mesmo de outro esporte, que poderíamos chamar de arqueirismo butanês.

Butão 8A modalidade que anima o país himalaio é disputada entre times de 13 arqueiros. Astrólogos (que estudam o zodíaco chinês) são contratados a peso de ouro para selecionar membros das equipes, lançar feitiços contra oponentes e escolher o local e o horário dos jogos. A pontuação é complicada e o ritmo das partidas é bem lento, geralmente se arrastando por dias a fio. Fatalidades (flechadas fatais em espectadores e passantes) ocorrem ocasionalmente.

Claro que também há campeonatos que seguem as regras modernas do esporte olímpico, mas, como vimos, a fortuna do Butão neste gênero está em baixa. O ideal seria que os butaneses se recuperassem e voltassem à trilha de glória da qual nunca deveriam ter saído. Se isto não for possível, talvez o COI devesse considerar a possibilidade de incluir mais um evento nos próximos Jogos.

PS: Dias após a publicação deste blog a Comissão Tripartite (COI, Associação dos Comitês Olímpicos Nacionais e Federação Mundial de Arqueirismo) resolveu convidar a promissora Karma para representar o Butão no Arco e Flecha olímpico. Todos na torcida!

Imagens: Reprodução

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Butão 9

2 Replies to “Flechas de uma Fortuna Enfurecida”

  1. Belíssimo texto! Por querer descobrir outros esportes é que faço questão de assistir badminton, saltos ornamentais, esgrima, entre os pouco conhecidos e sair um pouco da mesmice do futebol,do qual estou um tanto saturado. Viva a diversidade esportiva!

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