“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “ homem cordial” . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro.”

A frase, por óbvio, não é minha. Eu não vou dizer de quem é, não apenas em respeito à inteligência de alguns leitores, mas sobretudo para fugir da ignorância de outros que, com um atraso de meio século, vivem nos tempos da Guerra Fria.

Eu lembrei dela para ilustrar esse pequeno relato de episódios ocorridos no dia 12 de abril de 2015, quando 750 mil ou 1,5 milhão de pessoas foram às ruas em atos políticos.

Capítulo 1 – Belo Horizonte

http://www.otempo.com.br/capa/pol%C3%ADtica/fot%C3%B3grafo-de-jornal-mineiro-%C3%A9-agredido-durante-manifesta%C3%A7%C3%A3o-em-bh-1.1023491

imageBeto Novaes (foto) é fotógrafo desde os anos 80. Ele era motorista da sucursal do Globo em BH e foi conduzir um repórter para uma entrevista banal no sítio do treinador do Atlético MG, Telê Santana. Coincidiu de Telê justo naquela hora ser convocado justo para treinar a mítica seleção que encantaria o mundo. Beto andava sempre com uma câmera a tiracolo e fez a imagem que foi parar na capa do jornal, com Telê andando de bicicleta. Ali Beto deixou de ser motorista e virou repórter fotográfico.

Em 12/04/2015 Beto estava escalado para cobrir as manifestações para o “Estado de Minas”, mas foi agredido por 4 rapazes. O motivo? Beto tem uma semelhança física com o ex-presidente Lula. Os agressores disseram que ele não poderia estar “fantasiado de Lula” e o obrigaram a ir embora.

Capítulo 2 – Rio de Janeiro

http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/rio-homem-com-bandeira-vermelha-e-agredido-por-manifestantes-anti-dilma/

A manifestação ocorria na Orla de Copacabana. O mecânico Rogério Martins passeava na ciclovia com uma bandeira vermelha enrolada no pescoço. A bandeira não era do PT, mas sim do Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Foi empurrado e depois de cair da bicicleta, foi cercado por policiais para não ser agredido, enquanto era xingado de ladrão, comunista, viado e filho da puta. A escolta policial o levou para longe, com a bandeira escondida na pochete.

Capítulo 3 – Recife

http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,atos-pro-dilma-sao-hostilizados-em-manifestacoes-contra-o-governo,1651185

Djanira Souza, 69 anos, aposentada, resolveu ir à manifestação sozinha, carregando um cartaz com os dizeres “Tudo se resume à luta pelo poder: que está fora quer entrar (na marra), mas quem está dentro não sai”. O cartaz foi identificado como pró-Dilma e por isso a aposentada foi vaiada pelos manifestantes. Alguns quiseram tomar o cartaz à força, mas outros menos inflamados protegeram a idosa.

Capítulo 4 – Porto Alegre

http://m.terra.com.br/noticia?n=faf3af865bfac410VgnVCM10000098cceb0aRCRD

http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/04/em-porto-alegre-protesto-reune-menos-pessoas-e-se-direciona-contra-dilma-e-lula-4738604.html

Do alto do carro de som, um sujeito conhecido como Montanha alertava do alto de carro de som que 120 lutadores de 30 academias de artes marciais estavam misturados ao público para atuar em casos de confusão, orientados a imobilizar e encaminhar para que fossem tomadas as medidas cabíveis.

Duas jovens homossexuais, que estavam em uma esquina no trajeto da manifestação, foram hostilizadas pelos manifestantes quando tentaram defender a Presidente. Uma delas, que vestia uma camiseta com os dizeres “Gay OK”, foi atacada e teve a blusa rasgada.

Capítulo 5 – Av. Paulista

http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/04/12-de-abril-uma-manifestacao-pulverizada-em-tribos-e-movimentos.html

No alto de um veículo, uma faixa em inglês dizia “Impeachment is a total scam, is everything that the politicians wanted. When we are robbed we call the police. When the nation is robbed, we call the Armed Forces” (em tradução livre, Impeachment é um embuste, isso é tudo que os políticos querem. Quando nós somos roubados, chamamos a polícia. Quando a nação é roubada, chamamos as Forças Armadas).

Ronaldo Brasileiro, dono do veículo e integrante do Movimento Alô Brasil, Acorda, dizia ter sido industrial por 40 anos, mas largou tudo para se dedicar à luta pela intervenção militar, para que os bandidos não acabem com o país em poucos meses. Enquanto dava uma entrevista para a Revista Época, ironicamente foi abordado por um policial militar, que o informou que um veículo daquele tamanho não poderia ficar estacionado ali na Av. Paulista. Ronaldo e seus amigos protestaram, se dizendo violados em sua liberdade.

vovo-metralhaCapitulo 6 – Av Paulista

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/215801-nos-protestos-grupos-voltam-a-pedir-intervencao-dos-militares.shtml

“Vovô Metralha, obrigado por tudo”. Esse foi um dos cartazes em homenagem ao ex-agente do Dops, Carlos Alberto Augusto, processado por sequestro qualificado e acusado de participar da Chacina da Chácara São Bento, é homenageado e chamado de herói pelos manifestantes.

“Temos nosso herói, inimigo nº 1 da esquerda bandida, Vovô Metralha.” O ex-torturador parece estar gostando da fama súbita, porque posou para fotos usando um capacete da Revolução Constitucionalista de 1932, aquela que pretendia separar São Paulo do resto do Brasil.

Os responsáveis pela homenagem, grupos conhecidos como União Nacionalista Democrática e SOS Forças Armadas insistiam em lembrar que nunca houve ditadura no Brasil. Um orador foi muito aplaudido ao lembrar que se tivesse tido ditadura, Dilma estaria morta.

Epílogo

Eis aqui um breve relato de 6 episódios de um domingo ensolarado: um fotógrafo agredido por sua semelhança física com Lula, um mecânico agredido por sua bandeira em defesa dos sem-teto, uma idosa agredida por portar um cartaz com uma crítica ambígua, uma lésbica com a camisa arrancada, um defensor da ditadura bradando contra a falta de liberdade por ser chamado atenção, um torturador exaltado em praça pública.

O amigo leitor é assinante dos canais Telecine? Gosta de Ingmar Bergman? Próximo sábado, 18/04, vai ser reprisado “O Ovo da Serpente”, com Liv Ullman e David Carradine. Tomara que o sono me deixe assistir, porque vai passar no indigesto horário de 01h45min. O filme é bom e pedagógico em qualquer época.

Mas, nessa semana tão peculiar, eu diria que ele é absolutamente indispensável. Não perca.

Imagens: O Estado de Minas e reprodução da internet

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