Tentando manter alguma coerência na sequência de quesitos, depois de samba-enredo vamos aos cadernos de julgamento de harmonia. Quesito que, acredito, é muito ligado a samba-enredo. Por que escrevi acredito? Porque o manual do julgador da LIESA é dúbio.

Vejamos o que manual diz sobre o que o julgador deve considerar:

– a perfeita igualdade do canto do samba-enredo, pelos componentes da Escola, em consonância com o “Puxador” (cantor intérprete do samba) e a manutenção de sua tonalidade;

– o canto do samba-enredo, pela totalidade da escola;

– a harmonia do samba.

Esclarecedor? O último ponto nem tanto, não é? O que é exatamente a harmonia do samba? É a harmonia dos instrumentos? É a clareza da dicção? O som das cordas? Nessa indefinição acaba ocorrendo descontos polêmicos.

E “garra”, “vibração”? O manual pede para verificar a “vontade” com o que componente cantou? Parece que não, mas não é o que veremos abaixo.

20150215_012529Módulo 1

Jurada: Miriam Orofino Gomes

Notas

Viradouro – 9.7
Mangueira -9.9
Mocidade – 10
Vila Isabel – 9.8
Salgueiro – 10
Grande Rio – 10
São Clemente – 10
Portela – 9.8
Beija-Flor – 10
União da Ilha – 9.8
Imperatriz – 9.9
Unidos da Tijuca – 10

Harmonia é, primordialmente, o canto da escola. A escola cantou? A escola cantou junto com o carro de som? Houve alguma atravessada de canto?

Porém, o que menos essa julgadora julgou foi exatamente o canto da escola. Ela canetou carro de som, bateria, empolgação, animação, entre outros. Mas falta de canto em alas mesmo, só canetou uma vez. Sendo que eu posso assegurar que houve muitos mais problemas de canto no módulo 1. Em compensação ela puniu em harmonia problemas referentes a outros quesitos.

Para começar, aquele clássica confusão entre Harmonia e Evolução. Ela descontou Viradouro e Vila Isabel por falta de empolgação e vibração. Porém, tais características tem a ver com a dança, não com o canto, e não podem ser despontuadas em harmonia.

A escola pode vir triste, se todos os componentes cantaram junto com o carro de som em perfeita ordem, a escola não pode ser penalizada em harmonia.

Outra justificativa que chamou a atenção foram as despontuações por causa do “andamento rítmico acelerado” de Portela e Ilha do Governador. Mais uma vez, a bateria pode estar a 180bpm, se a escola e o carro de som acompanharam, não há do que reclamar.

Ainda houve menção aos problemas da bateria da Imperatriz em outra invasão de quesito. De fato a bateria da Imperatriz foi um desastre no módulo 1, mas isso deve ser avaliado em bateria, não em harmonia.

20150216_030721Outra coisa, a julgadora ficou “vidrada” demais na performance dos carros de som. Ela usou o carro de som para despontuar nada menos que 5 escolas. Seja por “falta de uniformidade” seja por “falta de clareza” ou “desafinação” ela despontuou por isso Viradouro, Vila Isabel, Portela, Ilha e Imperatriz. Ou seja, quase todas as escolas punidas por ela.

A Viradouro e a Ilha ainda perderam décimos pelo som das cordas. Um problema técnico do carro de som que não pode ser descontado pelo julgador.

Em compensação, a única escola despontuada por falta de canto em alas foi a Viradouro.

Fica a pergunta: o carro de som é tão mais importante assim do que a falta de canto da escola em harmonia?

Posso assegurar que neste módulo a Imperatriz teve uma segunda metade de desfile bem complicada no canto dos componentes e isso sequer foi mencionado. Beija-Flor e Mangueira passaram com alas de canto irregular também. Sendo mais chato, ainda teve a ala do Einstein na Tijuca, única ala que destoava de todo o resto da escola, que berrava o samba.

Por fim, ela despontuou Mangueira, Vila, Portela e Imperatriz por desencontro entre a bateria e o carro de som. Muitos não devem concordar com a pertinência de tal justificativa para o quesito, mas o manual do julgador é dúbio sob este aspecto. Fica a dica para a LIESA clarificar tal ponto.

20150216_022722Para piorar a situação, na Vila Isabel ela despontuou um desencontro ocorrido aos 53 minutos de desfile. Ou seja, a bateria já estava a léguas do módulo dela e ela o fez apenas baseado na caixa de som. Ou seja, nada impede (alias é provável) que tenha sido um problema de sonorização e não um desencontro.

Ressalto: o mais importante, que era olhar a boca e ouvir os componentes ela não fez! Ou ao menos não escreveu.

Por fim é de se ressaltar que esta julgadora foi a única a despontuar a harmonia da Portela e ainda o fez em 0,2. Transcrevo a justificativa:

“Andamento muito acelerado no início do desfile. O canto dos puxadores apresentou pouco entrosamento entre seus componentes e som muito estridente até os 20min de desfile. O desfile não fluiu bem no chão prejudicando o canto dos componentes. Aos 35min problemas com o canto dos puxadores com perda da regularidade rítmica. Falta de sincronismo entre bateria e carro de som.”

Interessante notar que as justificativas usadas pela julgadora esse ano foram razoavelmente parecidas com as que usou ano passado, denotando ao menos um padrão, mesmo que falho.

Módulo 2

Julgador: Jardel Maia Rodrigues

Notas

Viradouro – 9.7
Mangueira -9.8
Mocidade – 10
Vila Isabel – 9.8
Salgueiro – 10
Grande Rio – 9.9
São Clemente – 10
Portela – 10
Beija-Flor – 9.9
União da Ilha – 9.9
Imperatriz – 9.8
Unidos da Tijuca – 10

Como já havia escrito na análise do júri, Jardel Maia é regente de corais, então tem bom conhecimento técnico. Foi bastante atento ao canto dos componentes da escola e não teve justificativa na qual ele não enumerasse alas que passaram sem cantar ou sem cantar o samba em sua totalidade. Também escreveu justificativas interessantes, tentando explicar os motivos que possam ter levado a essa quebra do canto.

20150217_033733Porém, fez algumas observações que me deixam receoso pelo futuro da festa. Por exemplo, na Imperatriz ele reclamou que duas partes do samba não ficavam claras no canto. São elas a cabeça do samba “Foi um grito que ecoou, Axé-Nkenda” e a primeira parte do falso refrão “Põe pimenta pra arder, arder / Sente o gosto do dendê o iaia, oiá…”.

São duas partes muito bonitas do samba e que realmente se tem alguma dificuldade para se entender em um primeiro contato. Mas depois de ler a letra e entender especialmente  o Axé-Nkenda,  que não faz parte de nosso léxico, fica fácil de acompanhar. Será que uma penalização por isso não representará mais um engessamento dos compositores?

Depois, todos os sambas ficam iguais e não sabemos o porquê… Olha quantas inovações e boas tiradas já foram descontadas por julgadores até aqui nesta série.

Ao menos ele justificou dizendo que era uma parte de tessitura grave que não foi cantada direito pelos puxadores que provavelmente deveriam ter voz de tessitura aguda. Não conheço essas partes técnicas, mas do alto da minha ignorância morreria jurando que Nego é tenor, não barítono.

Ele também fez menção a problemas no carro de som da Ilha (puxador rouco nos graves), Vila (cacos em momentos grave dificultando entendimento da letra)

Na Mangueira ele justificou também que “em torno de 1:07, diante do módulo II, a instrumentação realizou inúmeros ornamentos e escalas que afetaram a estética da ótima composição, contribuindo para o pouco entendimento da canção”.

Um bom trabalho do julgador. Interessante que no módulo 2 ele teve uma visão bem mais parecida com a que eu tive no módulo 1 do que a própria julgadora do módulo 1.

Bela aquisição da Serie A pela LIESA.

20150216_225413Módulo 3

Julgadora: Celia Souto

Viradouro – 9.7
Mangueira – 10
Mocidade – 9.8
Vila Isabel – 9.9
Salgueiro – 10
Grande Rio – 10
São Clemente – 9.9
Portela – 10
Beija-Flor – 10
União da Ilha – 9.8
Imperatriz – 10
Unidos da Tijuca – 10

Celia Souto é mais curta e objetiva nas suas justificativas, mas isso não é defeito, pelo contrário. Como um todo, justificou bem e em todas elas elencou várias alas nas quais o canto não ocorreu de modo satisfatório.

Porém, também fiquei preocupado com algumas de suas considerações. Para começar, em suas observações finais ela elenca vários pontos os quais as escolas deveriam prestar atenção para melhorar a performance no quesito. De modo geral, elencou pontos normais como sincronia dos tempos fortes do samba com as sílabas tônicas (a velha história desde a famosa justificativa de Benvindo Siqueira para a Unidos da Tijuca de 2006) e a sustentação do samba em sua totalidade.

Porém um desses pontos me saltou aos olhos. “Cantar o samba com garra e vibração”. Desde quando garra e vibração fazem parte do quesito harmonia? Onde ele está escrito no manual que transcrevi no início desta coluna? Então por que exigir garra e vibração?

Se a julgadora apenas tivesse feito a observação, até passaria, o problema é que Souto foi mais uma julgadora a descontar escolas por isso. No caso, Mocidade e Ilha.

20150216_013157Ela também descontou a Mocidade por falta de sincronia entre instrumentos de corda e canto. Realmente é algo que está no manual, mas com tantos problemas que o som teve este ano na Sapucaí, especialmente nas três primeiras escolas por causa da chuva, acho temerário ficar “marcando em cima” e acabar penalizando a escola por algum problema que pode ser da equipe técnica do som da avenida.

Outra justificativa interessante, e que tem tudo a ver com o quesito, é a da Vila na qual “houve um distanciamento da concentração auditiva por parte dos componentes, os mesmos não conseguiram manter a tenacidade do canto proposto pelo intérprete…” Não é a primeira vez que Gilsinho tem problemas em usar um tom complicado para o componente acompanhar. Eu e Migão já sofremos algumas vezes na avenida para acompanhá-lo em seus tempos de Portela.

De resto, nada a acrescentar ou reparar.

Por fim, ressalte-se que foi a única jurada a dar 10 no quesito para Mangueira e Imperatriz, o que não deixa de ser interessante já que harmonia é um quesito que tende a cair a medida que o desfile transcorre e a julgadora estava no módulo 3, pouco antes do recuo de bateria.

Módulo 4

Julgador: Humberto Fajardo

Viradouro – 9.8
Mangueira – 9.9
Mocidade – 10
Vila Isabel – 9.7
Salgueiro – 10
Grande Rio – 9.8
São Clemente – 9.8
Portela – 10
Beija-Flor – 10
União da Ilha – 9.6
Imperatriz – 9.9
Unidos da Tijuca – 9.8

20150217_050410Assim como Jardel Maia, Humberto Fajardo também é regente e veio da Serie A. Essa semelhança é acentuada de forma impressionante na semelhança dos argumentos de ambos para o desconto da Imperatriz.

Humberto realmente ficou bastante atento ao canto dos componentes e justificou muito bem todos os seus descontos. Apenas faço ressalva quanto a reclamação do volume do violão na Mangueira, pois isso (parcialmente) é problema da LIESA, não da escola. Mas como a escola só foi penalizada em 0,1 e apenas o fato de quatro alas não cantarem direito já bem justifica o desconto, releva-se.

De forma muito interessante, ele penalizou a Vila (Gilsinho), a Grande Rio (Emerson Dias), a São Clemente (Igor Sorriso) e a Tijuca (Tinga, sempre ele) pelo excesso de cacos que prejudicou a execução e a clareza do samba.

Fajardo também fez algo que não gosto: usar a mesma justificativa genérica para despontuar inúmeras escolas. No caso foi a “execução do acompanhamento pelas cordas destoava da melodia tanto harmonicamente quanto esteticamente”. Isso foi usado contra Vila, Ilha e Tijuca.

Porém, o próprio jurado se explica melhor nas considerações finais que transcrevo abaixo:

“Comentário geral: apesar de estar se tornando uso comum nas execuções de samba enredo, observa-se que o uso expressivo de notas durante a realização do contra-canto pelo violão sete-cordas pode ‘poluir’ a harmonia do samba e competir com a execução do canto prejudicando a execução do samba como um todo”

Outro bom trabalho de julgador “adquirido” da Serie A.

Para finalizar o quesito faço duas observações:

1 – urge que que a LIESA esclareça e especifique os limites do quesito harmonia. Do jeito que está no manual, dá margem a diversas interpretações.

2 – como fica evidente por comparação, é preciso reforçar com a julgadora Miriam Orofino os principais focos do quesito. Percebe-se claramente que as suas justificativas se fundam sobre pontos diferentes dos outros três julgadores. Especialmente a excessiva atenção ao carro de som da escola, com pouca atenção aos desdobramentos causados no canto dos componentes da escola.

Imagens: Arquivo Pessoal do Editor