O Carnaval de 1996 foi praticamente o “marco zero” do início da relação das escolas de samba paulistanas com empresas que ajudavam no financiamento dos desfiles. Como o leitor pôde acompanhar, algumas agremiações começaram, em 95 para 96, a notar que conseguir um apoio aqui e outro ali era um meio interessante de conseguir fechar as contas no final do Carnaval.

Para 1997, porém, a coisa tomou outra dimensão. Pela primeira vez, apareceram em grande número os enredos patrocinados e os apoios escancarados de empresas dos mais diversos ramos e não só de materiais e produtos ligados ao Carnaval. Para que o leitor possa se situar, do total R$ 6 milhões investidos pelas 10 escolas do Grupo Especial, R$ 712 mil já vinham, em 1997, através do patrocínio.

Além do mais, as escolas começaram a modernizar suas próprias estruturas. O Presidente da Rosas de Ouro, Eduardo Basílio, já dizia desde o começo da década que o Carnaval precisava se modernizar (aliás, um parêntese: este foi um dos motivos que lhe fez abandonar a Vila Brasilândia e construir uma nova quadra na Freguesia do Ó, para revolta quase completa e absoluta do samba paulistano. Fim do parêntese). Para tal, as escolas começaram a investir em setores até então inexistentes, como por exemplo o marketing. Nenê de Vila Matilde e Vai-Vai foram as primeiras a usar desse expoente para divulgar ainda mais os seus desfiles.

Paralelamente a esta entrada no novo mundo do Carnaval, as escolas ainda conviviam com métodos, digamos, mais tradicionais de conseguir dinheiro: o jogo do bicho. Hoje isso é quase impensável, mas à época, os Presidentes admitiam com a maior tranquilidade que recebiam financiamento da contravenção. À Folha de S. Paulo de 8/2/1997, o próprio Seu Basílio dizia: “eu não coloco dinheiro do bolso; nem eu, nem ninguém”.

Leandro Alves Martins, Presidente e fundador da Leandro de Itaquera, dizia não ter nada contra a ajuda dos bicheiros, “muito pelo contrário” e avisava: “nos próximos dois anos, tudo vai mudar no Carnaval de São Paulo”. As grandes frases daquela edição do jornal, entretanto, saíram da boca do Presidente da Vai-Vai, Solón Tadeu Pereira. Ele negava o envolvimento da Escola do Povo com seu amigo pessoal, bicheiro, mas dizia que, se algum deles quisesse colocar dinheiro lá, “pegava com as duas mãos”. E ainda completou: “o Brasil tem três coisas que funcionam: o Corpo de Bombeiros, o Carnaval e o jogo do bicho”.

Se a ajuda da contravenção não envergonhava ninguém, o auxílio do tráfico de drogas era um tabu gigantesco a ponto de quase ninguém tocar no assunto. O Presidente Ariovaldo Aparecido Silva, da Gaviões, dizia “detestar” traficantes e que esses “não chegavam perto” da escola. Markinho, da Tom Maior, negava qualquer envolvimento com o tráfico, mas admitia que a vermelho-e-amarelo já havia sido sondada algumas vezes. Segundo ele, os acordos envolviam uma troca: o traficante injetava o dinheiro e a escola fazia da quadra uma espécie de depósito de armas e drogas.

Dentro da pista, no entanto, não existe mais nada disso e as escolas prometiam uma briga ferrenha pelo título. Evidentemente, essa febre de patrocínios influenciou algumas escolas do Grupo Especial, mas por caminhos bem diferentes. A maioria, no entanto, ainda optou por seguir uma linha mais tradicional. Campeã em 1996, a Vai-Vai escolheu homenagear Minas Gerais e não sofreu influências do patrocínio da Cervejaria Antarctica, já que a parceria se resumia a dois bares montados no Anhembi.

A Rosas de Ouro, exaltando a diversidade gastronômica da Cidade de São Paulo, também não alterou em nada o seu enredo e recebeu cerca de 80 mil reais da Antarctica em cerveja. No entanto, a escola conseguiu, depois de definido o enredo, fechar patrocínio de acordo com as alas. Fast-foods de comida chinesa, docerias, deliveries e revistas especializadas em gastronomia complementaram o orçamento.

A Gaviões da Fiel, por sua vez, não teve o seu enredo alterado por marca alguma, mas levou o fenômeno mercadológico em conta para definir seu tema. A escola concluiu que “vender” um enredo sobre o sertanista Orlando Villas-Boas seria difícil e, por isso, optou por falar sobre a vida nas ruas e conseguiu o apoio da Kaiser e da Tênis Pé. A X-9 Paulistana, depois do decepcionante desfile de 1996, escolheu a Amazônia como tema e, se não carregada por patrocínio, contava com o auxílio dos profissionais do Festival de Partintins para brigar pelo título.

A Nenê de Vila Matilde optou por falar da história do negro no Brasil, enquanto a Unidos do Peruche escolheu homenagear a cidade de São Paulo. Voltando ao Grupo Especial, a Leandro de Itaquera conseguiu um pequeno apoio da cachaçaria Ypióca com seu enredo sobre o açúcar, enquanto a Tom Maior tentaria a afirmação entre as grandes com um enredo sobre estrelas.

As duas maiores expoentes do “Carnaval patrocinado” foram, no entanto, Mocidade Alegre e Águia de Ouro. A segunda, voltando ao primeiro grupo, cometeu um erro admitido pelo próprio Presidente Sidnei Carrioulo Antônio: primeiro escolheu o enredo e, contando com o patrocínio, depois foi correr atrás de investidores. O resultado é que o enredo sobre a soja não atraiu nenhuma empresa do ramo e nem o homem conhecido como “rei da soja” à época.

A Mocidade Alegre, porém, ousou e surpreendeu. Não foi atrás de uma empresa, mas sim de uma pessoa. E uma figura pouco esperada, apesar da relação por muitos anos próxima com o Carnaval. Então casado com a “Globeleza” Valéria Valenssa e responsável pelas aberturas de novelas e programas da Globo, Hans Donner foi o homenageado da Morada do Samba. Além da “compra” informal do enredo em valores não divulgados, ele ainda ajudou durante todo o ano com compra de materiais e colocando a escola do Bairro do Limão na mídia.

Depois dessa exposição toda na mídia, era a hora do Carnaval de São Paulo entrar em cena. Havia uma expectativa muito grande por conta da possibilidade de uma eventual “quebra” no favoritismo de Rosas de Ouro e Vai-Vai, principalmente por parte da muito popular Mocidade Alegre. A Águia de Ouro abriu a maratona de desfiles com o enredo “Siyau-Yu – Do grão sagrado do passado à esperança do futuro”. A agremiação da Pompéia não foi feliz na abertura do Carnaval de 1997 e fez uma apresentação de baixíssimo nível técnico.

Com um samba apenas razoável, embora muito bem cantado pelos componentes, a escola apresentou um conjunto visual excessivamente pobre. As alegorias eram simples, mal acabadas e sem nenhum luxo. O carnavalesco optou por usar materiais mais baratos nas fantasias e até conseguiu um bom efeito, mas não conseguiu salvar os carros alegóricos de um dos piores conjuntos visuais que o Anhembi já viu.

O enredo foi desenvolvido com alguma correção, tinha alas de fácil leitura, mas não conseguiu empolgar o público. Para piorar, um problema no som da Passarela do Samba fez com que a bateria demorasse a se entender com o carro de som, o que comprometeu um pouco o andamento do samba. Enfim, um desastre. Infelizmente, o rebaixamento da escola da Pompéia era “pule de dez”.

Na sequência, entrou na Avenida a Leandro de Itaquera. Vinda do segundo grupo, a vermelho-e-branco voltava a desfilar entre as grandes com um enredo sobre o açúcar intitulado “Doçura da terra Brasil”. Apesar de um salto considerável em qualidade, se compararmos com o desfile da Águia de Ouro, o Leão Guerreiro da Zona Leste fez uma apresentação de relativo bom gosto, mas de potencial financeiro nitidamente mais reduzido em relação as demais concorrentes.

O enredo foi desenvolvido com correção pelo Carnavalesco Marco Aurélio Ruffim, que fez quase um tratado histórico da trajetória do açúcar na história da humanidade. Na introdução, ele colocava o mar como a divisão entre uma terra rica e cheia de dinheiro – a Europa – e uma pródiga em riquezas naturais prontas para serem exploradas – o Brasil.

O desfile começou falando sobre o surgimento do açúcar, lá na Índia, e seu alto preço na Europa, que o fez inclusive ser objeto de ostentação nas Cruzadas Religiosas. Na sequência, a escola lembrou que as plantações de cana-de-açúcar foram um meio fácil dos portugueses ocuparem o território brasileiro, visto que já estavam habituados a trabalhar e consumir o produto lá na Ilha da Madeira. A escola ainda lembrou a explosão na produção de cana-de-açúcar em Pernambuco e os engenhos onde trabalhavam os escravos vindos da África.

Na sequência, foi contada a história do bloqueio imposto por Napoleão Bonaparte às navegações que levavam o açúcar do Brasil até a Holanda – onde ele era refinado – e a procura europeia por um novo meio de produzir o açúcar – encontrado através da beterraba. Essa descoberta provocou, naturalmente, um declínio na produção açucareira do Brasil que, aliás, tinha uma industrialização muito mais atrasada.

Nos setores finais, a escola falou sobre o crescimento da indústria no Século XX, que novamente colocou o Brasil no centro desse mercado, e a criação do Proálcool, que fez de São Paulo o maior produtor do país. Por fim, foram mencionadas as inúmeras obras literárias que retratavam engenhos e também a presença do açúcar no folclore, através da “Serpente Verde dos Canaviais”.

Se não era uma obra prima, o samba era razoavelmente competente e, a despeito dos insistentes problemas no som também atrapalharem a escola de Itaquera, foi bem cantado pelos componentes. As alegorias, simples, tiveram soluções criativas do Carnavalesco Marco Aurélio Ruffim e garantiram um bom efeito. Havia ainda, é claro, um risco de rebaixamento, mas a Leandro tinha boas esperanças de se manter no grupo.

A coisa começou a esquentar mesmo quando a X-9 Paulistana entrou na Avenida para apresentar o enredo “Amazônia, a dama do universo”. Com um excelente samba – tido como um dos melhores do ano – a escola da Parada Inglesa entrou para provar qual era a verdadeira X-9: a do visual impactante do ano de estreia, 1995, ou a das alegorias pouco felizes do Carnaval anterior. Não demorou para que todos descobrissem que não era a de 1995: era muito melhor.

x91997No esquenta, o intérprete Royce do Cavaco, trajado como um indígena, animou a Passarela ao cantar “Vermelho”, uma das toadas mais tocadas do Boi Garantido à época. Quando o desfile começou, a escola impressionou pela grandiosidade e pelo impecável acabamento de seus carros alegóricos. Luxuoso, o abre-alas trazia muitos adereços e conseguiu um ótimo efeito. O primeiro carro representava o encanto dos colonizadores pela Amazônia.

Engana-se porém quem pensa que foi um desfile que representou a Amazônia como um paraíso. As doenças, os desmatamentos, as queimadas e os perigos em geral do “Inferno Verde” ganharam amplo destaque em um enredo que, no entanto, poderia ter seguido uma ordem cronológica – ou qualquer ordem, na verdade, porque foi um apanhado de histórias sobre o local – mais coerente.

A escola visitou também os “cartões postais” que convidaram muita gente de fora a explorar a Amazônia, como a grande presença do látex, que levou inclusive um inglês a plantar várias seringueiras na Ásia e diminuir, muitos anos depois, a procura pela borracha brasileira. Os anos de exploração, no entanto, fizeram a região crescer. Com o Teatro Amazonas – que ganhou um belíssimo carro alegórico, por sinal -, vieram o progresso, o telefone, a eletricidade, dentre outras conquistas importantes.x91997d

A divisão cromática da escola da Parada Inglesa mesclou muito bem as diversas tonalidades que o enredo poderia oferecer. É claro que havia muito verde, mas a X-9 também usou bastante o dourado, o amarelo, o vermelho e o azul. Este, principalmente a partir do setor que falou sobre as lendas indígenas relacionadas às águas e sobre os Rios Negro e Solimões. Diga-se de passagem, as lendas tomaram conta de boa parte do desfile e serviram para apresentar outros pontos famosos da Amazônia, como por exemplo o guaraná.

No penúltimo setor, a X-9 lembrou o Festival de Parintins com uma bonita, apesar de mais simples alegoria, que trazia o símbolo máximo do festival: um boi metade azul, metade vermelho, representando as duas agremiações que disputam todos os anos o festival: o Caprichoso e o Garantido, respectivamente. Já que tocamos no assunto, aliás, vale dizer que esta foi apenas a primeira dentre as muitas vezes que uma alegoria com essa concepção passou pelo Anhembi.

x91997bNa última alegoria, a X-9 falou sobre o próspero e sustentável futuro da região e se colocou de vez na briga pelo título. No entanto, a escola se sentiu prejudicada pois, antes de cruzar a linha final, o som da Passarela cortou o samba da X-9 e passou a tocar o da Gaviões, escola que entraria na sequência.

Tentando levantar a taça pela segunda vez, a Torcida que Samba entrou na Avenida para apresentar o enredo “O mundo da rua”. A escola trouxe mais um de seus grandes sambas. Os versos iniciais, “Meu Deus do Céu / Se essa rua fosse minha / Ai eu pintava, enfeitava sem parar / Milhões de flores / O cenário se iliumina / De confete e serpentina / Sou ‘Fiel’ vou desfilar” caíram na boca do povo, bem como o refrão do meio – “olha meu bem não estressa / manera na pressa / te amo demais” – e o principal, “paquera Sampa / alô paixão / em cada esquina sempre tem um Gavião”.

Apesar do samba ter sido bastante executado no pré-carnaval, a escola não conseguiu empolgar o público presente no Anhembi e muito menos repetir a boa exibição de 1995. O enredo, é necessário dizer, era um dos melhores daquele Carnaval, mais uma obra genial do grande Raúl Diniz, que buscou descrever “a São Paulo das ruas e Avenidas”.

O problema é que era um enredo muito melhor em teoria do que na prática, principalmente por conta de ser difícil de ser traduzido em alegorias e fantasias. O resultado é que, para quem via de fora, o enredo teve uma difícil compreensão. As alegorias e fantasias estavam relativamente bem acabadas, conseguiram bom efeito, o samba rendeu bem, mas ficou a sensação de “quero mais”. Para piorar, a escola veio muito inchada, com mais de quatro mil componentes e teve que apertar o passo para não estourar o tempo máximo de 65 minutos de desfile. Por tudo isso, a possibilidade de título estava praticamente descartada.

Na sequência, a Rosas de Ouro entrou na Avenida para a defesa do enredo “São Paulo, capital mundial da gastronomia”. A escola do saudoso Presidente Basílio veio com uma boa dose de ousadia, mas primou por um desfile exclusivamente técnico. A ousadia ficou por conta da promoção de uma dupla de jovens carnavalescos: Neto e Simone. A Roseira também surpreendeu ao “lotear” o seu desfile. Praticamente todas as alas foram vendidas para empresas relacionadas aos ramos alimentícios retratados naqueles pontos do enredo.

Por outro lado, a ideia era fazer um desfile visando a nota 10. O samba era correto, embora não empolgante, o enredo era de fácil leitura e a escola, apesar do astronômico número de 4.200 componentes, passou compacta do início ao fim e sem problemas na evolução. As fantasias, bem acabadas, eram de fácil entendimento e apresentaram uma divisão cromática interessante. A concepção de fato não foi das melhores, até para que as mesmas pudessem ser mais facilmente compreendidas, mas o efeito não foi dos piores. Além do mais, os desfilantes puderam evoluir tranquilamente pois as fantasias eram leves.

O conjunto alegórico, por outro lado, decepcionou um pouco. Não pelo acabamento, mas pela concepção pouco criativa e, por vezes, de gosto duvidoso. Carros como o da culinária africana remetiam a outras alegorias de outros enredos – muitas vezes sem qualquer ligação com o tema gastronomia -, enquanto um outro carro, que trazia um enorme fogão, não conseguiu bom efeito.

O enredo, apesar de por vezes ter escapado um pouco da representação de São Paulo como “capital da gastronomia”, foi bem dividido e não foi prejudicado pelos patrocinadores. Os patrocinadores foram encaixados corretamente nas alas da comida chinesa, dos doces, dos cozinheiros e etc. O público correspondeu pouco ao desfile da Rosas de Ouro, mas foi uma apresentação que, inegavelmente, credenciava a escola da Freguesia do Ó a brigar por mais um título.

Grande azarada do sorteio que definiu a ordem dos desfiles, a Tom Maior desfilou entre as duas grandes favoritas, Rosas e Vai-Vai, na apresentação do enredo “O céu é o limite no caminho das estrelas”. Depois da boa apresentação em 1996, a escola do Sumaré não viveu seus dias mais felizes. O desfile da vermelho-e-amarelo foi bastante pobre e não conseguiu empolgar o público.

Principalmente em termos de acabamento, a escola sofreu no comparativo com a Rosas de Ouro. As fantasias também estavam bastante simples e a evolução foi confusa. Algumas alas claramente não cantaram o samba e o enredo estava bastante confuso. As alas não eram explicadas com facilidade e alguns pontos do enredo acabaram destoando do resto da apresentação. Essa soma de fatores acabou levando a escola do Sumaré a ser, ao lado da Águia de Ouro, a grande favorita para voltar ao segundo grupo.

vaivai1997Por outro lado, na sequência, a Vai-Vai pisou forte na Avenida para tentar o seu primeiro bicampeonato na história do Anhembi. O enredo “Liberdade ainda que Vai-Vai” prestava uma homenagem ao Estado das Minas Gerais e aos Inconfidentes que lutaram pela independência. A escola prometia, assim como em 1996, aliar o “chão” pesadíssimo que sempre teve a mais um grande trabalho nos quesitos plásticos.

E não dá para dizer que o prometido não foi cumprido. A Escola do Povo realizou uma grande apresentação e mais uma vez se colocou como uma das maiores favoritas ao título. Engasgado pelo 9,5 do ano anterior – o primeiro na carreira -, Mestre Tadeu mais uma vez garantiu um andamento impecável ao samba que, se não era nem dos melhores, nem dos mais empolgantes, cumpriu bem o seu papel.

Perto das principais concorrentes, era nítido que a Vai-Vai tinha um poderio econômico reduzido. As alegorias, apesar de bastante bonitas, eram menores e mais simples. As fantasias foram feitas de materiais mais baratos, o que não prejudicou o efeito, mas comprometeu um pouco o impacto visual. Um dos casais de mestre-sala e porta-bandeira, por exemplo, veio “pelado” na cabeça, trazendo apenas uma fantasia que representava a bandeira do Brasil. Perto de Rosas de Ouro e, principalmente, X-9 Paulistana, era algo que poderia prejudicar.

Por outro lado, a escola foi bastante forte nos quesitos de chão. O samba foi muito bem cantado, a evolução foi impecável do início ao fim e, ainda por cima, o enredo foi muito bem desenvolvido. O primeiro setor trazia um panorama das Minas Gerais do “Século do Ouro” e também o perfil dos principais inconfidentes, intelectuais de classe alta, mas que tiveram a liderança de Tiradentes, apresentado na sinopse como “um soldado do regimento dos Dragões das Minas Gerais”.

Na sequência, a escola falou sobre o folclore mineiro. A miscigenação oriunda da exploração do ouro provocou uma fusão de culturas e a criação de uma identidade única, carregada de lendas, histórias e tradições. Por fim, uma espécie de propaganda para o Estado, exaltando suas grandes figuras – de Tancredo Neves a Grande Otelo – e, em um momento bastante infeliz, exaltando a política do café-com-leite, que perdurou durante toda a República Velha. Para encerrar de vez, a escola ainda exaltou as riquezas econômicas do estado e a infinidade de indústrias que existem na região. Mesmo com um visual ligeiramente mais pobre que o de X-9 e Rosas, a Saracura mostrou, em suma, que estava na briga.

Cercada de expectativa, a Mocidade Alegre foi a oitava a abrir o seu desfile. Todos queriam ver o que sairia do ousado enredo “O mago do universo – Hans Donner” e, principalmente, da parceria entre o designer e a escola. Talvez por conta da grande expectativa, o desfile acabou sendo decepcionante para a grande maioria.

Como o leitor talvez já tenha imaginado, Hans Donner, apesar do inegável talento na criação de aberturas históricas, não sustentava um enredo. O Carnavalesco Orlando Midaglia, na tentativa de preencher o tema, criou um enredo de difícil compreensão onde, pelo menos até onde foi possível compreender, ligava o “mago do universo” que tudo criou, Deus, a uma de suas criaturas, que também tudo era capaz de criar e reinventar, Hans Donner.

Por aí o leitor já pode imaginar o quão difícil foi a vida dos compositores da escola. O samba nem era dos piores, mas não conseguiu empolgar. As alegorias, apesar de bem acabadas, não estavam muito bonitas, assim como as fantasias, pouco criativas. Lá pela metade, o desfile se perdeu de vez. As alas representavam somente as aberturas criadas por Hans Donner e, portanto, parecia mais um enredo sobre telenovelas. Para piorar, nem isso foi suficiente e havia, na sequência, as alas “Tropicaliente 1”, com uma fantasia adereçada por uma laranja verde, e “Tropicaliente 2”, com a mesma fantasia, porém em laranja.

Na tentativa de ser inovadora, a Mocidade Alegre acabou fazendo um dos mais infelizes desfiles de sua história, que ainda contou com problemas na evolução, e só não corria grandes riscos de rebaixamento porque as apresentações de Águia de Ouro e Tom Maior haviam ficado muito abaixo da média.

Já na reta final da maratona de desfiles, a Unidos do Peruche tentou mais uma vez se recuperar dos últimos Carnavais com o enredo “Todo brasileiro é um Rei com a Coroa sideral” que, acredite, era uma homenagem à cidade de São Paulo. O enredo se definia, na sinopse, de maneira curiosa: “cronologicamente seguimos uma seleção razoável de temas (momentos históricos) mais importantes que serviram de suporte para o nosso trabalho”.

Por aí nota-se que a homenagem da Peruche era um tanto quanto despretensiosa. Isso não é nem uma crítica, mas sim uma constatação. De todo modo, a Filial do Samba mais uma vez esteve mais perto do rebaixamento do que de reviver os seus dias de glória. O enredo era um tanto quanto confuso e até hoje não ficou bem explicado o que era a tal coroa sideral. As alegorias não estavam em nível muito alto, bem como as fantasias e, até por conta do samba apenas razoável, a escola passou fria. Como a Peruche errou pouco, não havia muitos riscos de rebaixamento, mas também foi uma apresentação que não dava esperanças de uma boa colocação e que também seria facilmente esquecida.

nene1997Para encerrar, já com o dia amanhecendo, a Nenê de Vila Matilde entrou na Avenida cercada de expectativa para a defesa do enredo “Narciso negro”. A promessa era, mais uma vez, do melhor desfile da história da escola no Sambódromo do Anhembi. A diferença é que, dessa vez, foi mesmo. Para começar, o samba que falava sobre as conquistas dos negros e sobre os heróis da raça negra, apesar de não ser uma obra-prima, foi cantado à plenos pulmões.

O Carnavalesco Tito Arantes mais uma vez desenvolveu um trabalho de extrema felicidade e bom gosto estético. Primeiramente, o enredo tinha um conteúdo histórico de respeito e foi impecavelmente desenvolvido. Pode até não ter sido dos mais inovadores, mistura de Narciso com africanidade à parte, mas foi um dos mais corretos do ano. O público que ficou até o fim dos desfiles na Passarela do Samba foi brindado com um abre-alas que, apesar de não ter o luxo da X-9 Paulistana, foi um dos mais belos da noite ao trazer para a Avenida a história de Narciso na mitologia grega.

Passado o abre-alas, o enredo enfim chegou à África com a ala das baianas que remetia ao candomblé. A divisão cromática usou das mais diversas tonalidades e garantiu ótimo efeito em fantasias coloridas, impecavelmente acabadas e que mesclavam os estilos onde Tito Arantes sempre navegou bem: o luxo das plumas e a capacidade em trabalhar com materiais mais pobres e, ainda assim, garantir um bom efeito.

É necessário dizer que, a partir do belíssimo desfile, a Águia da Zona Leste ainda tinha deficiências econômicas em relação às principais concorrentes. Nem tanto se pensarmos na Vai-Vai, mas muito falando em Gaviões, Rosas de Ouro e, principalmente, X-9. Carros como o do “Novo Mundo”, que falava do ciclo da cana de açúcar, não estavam exatamente um primor em acabamento, ao passo que outros, como “Clementina de Jesus”, estiveram entre os mais belos da noite.

Apesar dos possíveis descontos no quesito alegoria, a escola deixou a Avenida como uma das maiores favoritas ao título e, na pior das hipóteses, havia recuperado, de uma vez por todas, a auto-estima. Havia sido, enfim, a Nenê de Vila Matilde que todos esperam ver.
A X-9 era a grande favorita porque, apesar de não ter sido disparada a melhor em nenhum dos quesitos, não teve um desempenho ruim em nenhum deles. Duas das suas principais oponentes, Vai-Vai e Nenê, falharam na parte plástica, e a Rosas de Ouro enfrentou alguns problemas no acabamento das mesmas.

Na apuração, isso se confirmou. A X-9 logo disparou um pouco à frente de Vai-Vai, Nenê, Rosas de Ouro e Gaviões. Apesar da revolta de alguns dirigentes, a escola manteve a ponta e foi campeã com 299,5 pontos, meio ponto a mais que a Vai-Vai. A Nenê terminou em terceiro com 298 e foi seguida por Rosas de Ouro e Gaviões da Fiel. A Mocidade Alegre acabou em um decepcionante sexto lugar, logo à frente da Leandro de Itaquera, que conseguiu se manter no primeiro grupo em sua volta ao Especial.

A Peruche sofreu, mas, por um ponto, se salvou do rebaixamento. Com 287,5, caiu a Tom Maior, acompanhada pela Águia de Ouro, que somou 271,5. No Grupo 1, o Camisa Verde e Branco fez de longe o melhor desfile e não encontrou dificuldades para voltar ao Grupo Especial, acompanhada pela Acadêmicos do Tucuruvi.

Curiosidades

– A TV Manchete exibiu pela primeira vez os desfiles do Grupo Especial de São Paulo com Moysés da Rocha, Glaydis Rocha e Leci Brandão dividindo os comentários na narração de Paulo Stein.

– Na Globo, mudanças importantes na transmissão. Mariana Godoy continuou comandando as transmissões, mas perdeu a companhia de William Bonner, já apresentador do Jornal Nacional. O narrador Cléber Machado voltou a ser o locutor principal da transmissão. Pela primeira vez desde 1992, a transmissão contava com um comentarista: no caso, o repórter Mauricio Kubrusly.

– Os patrocínios não ficaram limitados ao Grupo Especial. No Grupo 1, o Camisa Verde e Branco foi campeão com o enredo “Alô Nauês, taí o nosso Carnaval”. O tema sobre o guaraná foi patrocinado pela Coca-Cola Company, que tem um tipo de guaraná, aliás, chamado “Taí”.

– Primeiro desfile assinado pelo Carnavalesco Chico Spinosa em São Paulo. Ele teria passagens marcantes pela própria Vai-Vai, pela Unidos de Vila Maria, dentre outras agremiações e, atualmente, está sem escola.

– Tal como aconteceria com a Coreia do Sul – e, nesse caso, no mesmo ano de 2013 – a soja conseguiu a “proeza” de terminar em último lugar tanto no Carnaval de São Paulo, quanto no do Rio. Se em 1997 a Águia de Ouro adotou a soja como tema e caiu em último lugar, o mesmo aconteceria com a Tradição no Grupo Especial do Rio de Janeiro, em 2005.

– A Vai-Vai, aliás, depois da definição do enredo bem que tentou procurar uma ajuda financeira. A Fiat e o Governo de Minas Gerais foram sondados, sem sucesso.

– Hans Donner confidenciou à própria Folha de S. Paulo de 8/2/1997, dia do desfile, que o “sonho” de ser homenageado em um desfile de escola de samba havia se tornado “um pesadelo”. Para conseguir ajudar financeiramente, ele botou uma boa parte de suas finanças na mão da escola e ainda pediu um trocado para os amigos. O retorno, porém, viria através de uma série de empresas com as quais conseguiu apoio. No entanto, o apoio não apareceu e ele, “humilhado e trapaceado”, bancou tudo sozinho.

– Falando em decepção, um grupo de 50 turistas holandeses decidiu participar do Carnaval em uma ala da Leandro de Itaquera. Os neerlandeses, no entanto, ficaram frustrados ao encontrar apenas cinco fantasias. Os outros 45 voltaram para os Países Baixos sem desfilar.

– Integrantes da Nenê de Vila Matilde prestaram queixa à Delegacia Móvel montada pela Polícia Militar no Sambódromo. O motivo: alguns componentes da Gaviões da Fiel teriam danificado algumas estruturas dos carros alegóricos da Águia da Zona Leste. Foi, aliás, a única ocorrência registrada pela PM durante toda a noite.

– Falando em Gaviões, após toda a tensão nos minutos finais do desfile, o Presidente Jamelão foi muito além da máxima de que Deus é brasileiro. Para Jamelão, Ele não só era corintiano como daria à escola o título daquele Carnaval. “Para o Timão tudo é mais difícil”, afirmava aos repórteres presentes na dispersão.

– Depois de desfilar pela última vez em 1994, o locutor Osmar Santos, já depois do acidente que acabou com sua carreira e modificou sua vida, voltou a aparecer no Anhembi e acompanhou a todos os 10 desfiles da noite com muita empolgação. Segundo sua mulher, Rosa, a folia era importante na sua reabilitação.

– Osmar, aliás, estava no camarote do recém-empossado Prefeito Celso Pitta que, ainda popular pela forte relação com seu antecessor Paulo Maluf, distribuiu autógrafos em um camarote “abastecido” apenas com cerveja nacional e água Perrier. Mais de mil pessoas, entre deputados, vereadores e demais convidados, dividiam a comida e os dois banheiros do camarote. A alta demanda pelos sanitários provocou filas e quando os foliões descobriram um terceiro banheiro, exclusivo da família de Pitta, ele deixou de ser tão exclusivo assim. Pelo menos até a segurança chegar…

– Já atuando pelo Palmeiras, o atacante Viola encarou mais uma maratona de desfiles. Ele desfilou por Águia de Ouro, Rosas de Ouro, Tom Maior, Mocidade Alegre e Nenê de Vila Matilde, ou seja, por metade das agremiações do Grupo Especial. A Gaviões da Fiel, por sua vez, não pôde contar com os jogadores do Corinthians, como vinha acontecendo anteriormente, já que eles estavam concentrados em Limeira para uma partida contra a Internacional pela abertura do Paulistão.

– A Globeleza Valéria Valenssa, mulher de Haans Donner, foi ovacionada do início ao fim do desfile da Mocidade Alegre.

– A apresentação da Tom Maior ficou marcada por duas pequenas confusões envolvendo artistas. O ator Gerson Bremer se recusou a desfilar sobre um carro ao lado da mulher porque no mesmo havia a presença de mulheres nuas. Ele, então, veio no chão. Ao final do desfile, a também atriz Luiza Thomé foi cercada por um batalhão de fãs, se sentiu mal e quase desmaiou.

– Primeiro desfile da campeã X-9 depois da fusão com a escola Passo de Ouro que, ao “enrolar a bandeira”, cedeu sua quadra para a escola da Parada Inglesa. O nome oficial da escola a partir desse ano de 97 era “Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba X-9 Paulistana Passo de Ouro”. Anos depois, o nome da coirmã da Zona Norte foi suprimido da denominação oficial.

– A escola voltaria a adotar a Amazônia como enredo no Carnaval de 2009. O resultado, entretanto, não foi o mesmo: a escola acabou apenas em sexto lugar.

– Com o título da X-9, Royce do Cavaco faturou o seu quarto título em sete anos do Sambódromo do Anhembi. Ele havia vencido com a Rosas de Ouro em 1991, 1992 e 1994. Até então, nenhum outro cantor havia conquistado mais que um título. Até hoje, apenas Ernesto Teixeira (voz da Gaviões em seus quatro títulos) atingiu tal feito. Royce ainda seria novamente campeão em 2000, também pela X-9.

– Último desfile de Alberto Alves da Silva, o Seu Nenê, como Presidente da Águia da Zona Leste. Por problemas de saúde, ele passaria, a partir de 1997, o comando da escola ao seu filho. Com ele, a escola conquistou 10 de seus 11 títulos. Ele desfilaria pela Nenê até falecer, em 2010, aos 89 anos.

– Mais um ano de tumultos na apuração. Então Presidente da Liga, Laurentino Marques, o Lauro, era também o Presidente da X-9 e o encarregado da leitura das notas. Durante a apuração, ele por algumas vezes se esqueceu de dizer os nomes dos jurados, o que levou a uma série de suspeitas sobre possíveis fraudes nas notas. A apuração foi paralisada algumas vezes por conta dos incessantes protestos vindos dos diretores – que, à época, não ficavam em mesas como atualmente, mas sim em bancos de madeira, um ao lado do outro – e da gritaria nas arquibancadas.

– Sensação do início do Século XXI, a Império de Casa Verde, fundada em 1994, vencia em 1997 o Grupo 3, atual Grupo II-UESP e, assim, garantiu sua estreia no Sambódromo do Anhembi no ano seguinte.

Vídeos

O samba da X-9
http://www.youtube.com/watch?v=3McIqvgvLQM

O samba da Gaviões da Fiel
http://www.youtube.com/watch?v=62grl_FG0sA

Um trecho do desfile da Vai-Vai
http://www.youtube.com/watch?v=i_B6nE2hpYo

A grande apresentação da Nenê
http://www.youtube.com/watch?v=RvqJOkw9IN8

A parte final da apuração
http://www.youtube.com/watch?v=Gfa5A3yfu1s

4 Replies to “Bodas de Prata – 1997: X-9 surpreende, desbanca favoritas e fatura primeiro título”

  1. Não tive tempo de comentar antes, mas a lembrança desse carnaval não é das melhores, apenas X-9 e Nenê fizeram bons desfiles de fato.

    Gaviões, Vai-Vai, Rosas decepcionaram, fico o registro de que seria o último ano com uma campeã sem questionamento de fato,depois disso apenas em 2002 voltaríamos a ter uma campeã inquestionável.

    Esse samba da X-9 é muito bom, e o Royce interpretando é coisa espetacular, sobre a confusão da apuração, a Vai-Vai não soube perder (proj.Serginho) , e reclamou muito, mas a seguir ela seria a criticada por vencer de forma questionável.

    Feliz pela volta do Camisa, e da manutenção da Leandro no Especial, Leandro que viveria momentos difíceis nos anos seguintes.

  2. X9 foi tão superior que me nego a comentar todas as outras escolas, exceto a Nenê que mandou bem retomando suas tradições.

    Ano mediano tanto em Sampa (com dois desfiles de ponta) como no RJ com três de ponta.

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