Muitas cidades do mundo sofreram repaginações em suas concepções urbanas por motivos variados. Desde a vontade opulenta de um governador, ou uma reforma sanitária ou ainda uma catástrofe natural, não são raros os casos de mudança radical, anti-popular nas concepções citadinas. Tais ocorrências instituem a necessidade de pensarmos a relação patrimônio e memória e, ao mesmo tempo, quais foram as políticas públicas de preservação ou destruição dessa identidade, ontem e hoje.

Nero, no ápice do Império Romano, forjou um incêndio para a reconstrução de Roma. Obviamente que a parte queimada foi aquela onde moravam os mais pobres. Sua necessidade era de construção de um palácio opulento, majestoso, com jardins enormes e grandes estátuas. Sua ganância foi tanta que, até os mais ricos tiveram que pagar impostos para suprir essa necessidade do rei-deus de Roma. Seu final foi trágico, sobretudo depois que ele mandou matar sua própria mãe, Agripina, por ganância e disputa de poder.

No século XVIII, Lisboa sofreu um grande terremoto que desconfigurou boa parte da cidade. As políticas econômicas para reconstrução foram capitaneadas pelo Marquês de Pombal, a fonte foi o ouro retirado nas jazidas de Minas Gerais, ou do ouro de aluvião de Cuiabá, através dos impostos criados, tais como a derrama, destinado a esse fim. As intervenções racionalistas pombalinas davam os últimos suspiros do despotismo esclarecido; ao menos na Europa era isso que se percebia.

Paço_de_São_CristóvãoJá no século XIX, foi a vez do Rio de Janeiro “se enfeitar” para receber a turma fujona de Portugal. A reforma urbana realizada foi para expulsar definitivamente os populares que viviam em cortiços da região central da cidade. Esse processo de higienização teve como intuito criar espaços que proporcionasse ao rei D. João VI uma pequena sensação de viver em algum lugar “civilizado”, com museus, parques, teatros, bancos e residências imperiais. De lá pra cá, o Rio e o Brasil nunca mais foi o mesmo. Conquistamos uma independência e uma república, ainda que forjada entre as elites e sem qualquer participação popular. Mais uma vez a população não foi consultada e, após a abolição da escravatura, uma nova paisagem surgia com mais veemência, agora na capital e grandes cidades da república brasileira: o processo de favelização dos morros e das grandes periferias.

Poderia enumerar vários casos de desdém com o patrimônio histórico ocorridos em várias cidades brasileiras, durante o século XX. Posso citar a retirada da linha férrea de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, que para as gerações mais recentes talvez não saibam quão importante foram os trilhos, os quais cortavam a cidade, para o seu desenvolvimento e crescimento. Ou ainda, quantas cidades, na ânsia de crescer e se tornar mais civilizada, não podaram árvores centenárias que garantiam sombra para os dias de calor, dando um certo equilíbrio na temperatura diária, para a construção de prédios e ruas com asfalto? Muitas palmeiras imperiais foram vistas como desnecessárias em cidades onde Getúlio Vargas passou, com sua marcha para o Oeste. Era necessário civilizar e, para tanto, destruir, construir, concretar.

A Copa trouxe mais uma vez a necessidade desenfreada de vender a ideia de destruir para civilizar. Nem que para isso seja necessário diminuir as áreas verdes, demolir prédios históricos, expulsar populações pobres de suas antigas moradias. A faixa de Gaza estabelecida contra os mais pobres foi através de muita especulação imobiliária e ações de prefeituras cobrando impostos que antes não existiam e o assédio violento das grandes empreiteiras. Agora por essas regiões existem condomínios de prédios com área gourmet, viadutos e trincheiras, só para ver os carros rodarem pela cidade com menos aborrecimento (para os motoristas dentro de sua bolha refrigerada e individualista automotiva).

viadutoNo entanto, a Copa passou, e nas cidades as obras inacabadas continuam sem prazo de finalização e as que foram finalizadas apressadamente, e entregues a toque de caixa para a Copa começam a mostrar suas deficiências. Tudo isso traz mais aborrecimentos aos que não possuem outra opção senão se espremer em ônibus feito lata de sardinha, e frequentar os desvios e mais desvios constantes e intermináveis, sobretudo nas cidades que sediaram jogos do evento multinacional.

E obras mal feitas é o que não faltam: em Cuiabá, uma trincheira e um viaduto já sofreram interdições sem ter nem um ano de uso. Recife e Porto Alegre também. O caso mais emblemático desse desdém com a qualidade e vida das pessoas é o viaduto de Belo Horizonte, que caiu matando pelo menos duas pessoas. A (ir)responsabilidade dos executores dessas obras se resume a um singelo “foi uma fatalidade”, enquanto vidraças quebradas de bancos são encarados com crime contra a segurança nacional!

Detalhe pelo fato de quase que a totalidade das obras visam apenas à locomoção de carros, sobretudo os individuais e pessoais. Não há, no Brasil, uma política de transporte coletivo, público e interligado. Em São Paulo, inclusive, há movimentos contrários à instalação de ciclovias pela cidade, pasmem! A ditadura do carro perpetua nas mentes e desejos das pessoas, expressando um sonoro “tô nem ai” (para não falar outra coisa) para a locomoção inteligente e coletiva das pessoas. O que importa é se meu carro terá mais vias para eu passar.

Todas essas ocorrências, que não são meramente coincidências, parecem até fazer parte de uma obsolescência programada. A Copa acabou? Trincheira e viaduto pode apresentar sua deficiência. A razão disso “ninguém sabe”. Incompetência? Erro de projeto? Desvio de verba? Preguiça? Muito se especula sobre o motivo desses atrasos, constantes em obras não só de Cuiabá, mas de outros cantos do país. Ficamos a pensar se o brasileiro é um ser viciado no “jeitinho brasileiro”, que se trata de um processo cultural. Eu acho que pensar dessa forma seria simplificar demais.

10387682_584531244998446_2662431539228029277_nEsse é o cenário atual da repaginação sem qualquer preocupação com a memória da cidade, do patrimônio material e imaterial sendo derrubado, mesmo tombado pelo IPHAN. O caso mais agressivo é do Estádio Mário Filho, vulgo Maracanã. É o primeiro caso de despatrimonialização visto, pelo menos no Brasil. Antes, o Maracanã tinha torcida popular, festa nas arquibancadas, povo fazendo a festa. Agora, seja qual for o time que joga lá, com os ingressos mais caros do mundo, vemos uma torcida que vive sentada, comendo amendoim ou pipoca, reclamando das pessoas que ficam em pé, pulando e gritando para apoiar o time. Essa é a consequência da shoppinização dos espaços públicos. As concessões as iniciativas privadas fazem com que tudo seja um atrativo pago, de rodovia pedagiada a parques. Mas isso é tema para outro texto, para outra ocasião.

Há uma grande carência generalizada por história. O povo que desconhece minimamente seu passado, permite que ações ditas “modernizadoras”, apaguem memórias, histórias que jamais poderão ser vistas e contadas novamente. A consequência disso pode ser que nos tornemos, povo brasileiro, todos muito padronizados, castrados, nivelados pelo consumo.

E um povo sem memória é um povo sem história.

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