(por Rodrigo Mattar, jornalista especializado em automobilismo do canal Fox Sports e dono do blog A Mil Por Hora)

Todo 1º de maio é assim, desde 1994. Odes infinitas a Ayrton Senna da Silva. Seus títulos, suas vitórias e conquistas no automobilismo, principalmente na Fórmula 1. Neste ano, então, as homenagens serão ainda maiores. Data redonda, 20 anos da perda do ídolo mitificado. Mas não podemos esquecer que, um dia antes, também chegamos a duas décadas desde que morreu o austríaco Roland Ratzenberger.

Sua perda não comove ninguém até hoje, pelo menos ao que eu saiba. Afinal de contas, tratava-se de um piloto estreante, então com 33 anos (alguns registros diziam que tinha 31), que tinha pagado na época US$ 500 mil por seis corridas, para realizar o sonho de menino: ingressar na categoria máxima do automobilismo mundial.

ratzenberger6Roland era austríaco. E os pilotos austríacos desenvolveram, dentro da F-1 e do esporte a motor em geral, uma propensão incrível para se envolver em acidentes graves. Jochen Rindt foi o primeiro. Líder absoluto da temporada de 1970, caminhando para um título merecido, o piloto morreu nos treinos para o GP da Itália, em Monza, quando bateu com a Lotus 72 Cosworth. Emerson Fittipaldi o substituiu como piloto titular e deu a Rindt o até hoje inédito campeonato post-mortem.

Alguns anos mais tarde, Helmut Köinigg, promessa que despontava na Fórmula 1 vindo da emergente Super Vê europeia, foi degolado por um guard-rail durante o início do GP dos EUA em Watkins Glen. Essa corrida marcou o bicampeonato mundial de Emerson Fittipaldi.

Impossível esquecer do ocorrido com Niki Lauda. Campeão de 1975 e líder em 1976, o piloto da Ferrari bateu na curva Bergwerk durante o GP da Alemanha, em Nürburgring e seu carro explodiu em chamas. Gravemente ferido, rosto inchado e marcado pelas queimaduras, Lauda lutou pela vida com as poucas forças que lhe restavam. Quarenta dias depois da quase tragédia, voltou às pistas. Foi um exemplo de coragem e retidão: preferiu sacrificar o título, perdendo o Mundial para James Hunt (a história, todo mundo conhece do filme “Rush”). Daria a volta por cima com dois títulos, em 1977 e 1984.

Nos anos 80, Jo Gartner, que era mais conhecido das provas de Protótipo do que na Fórmula 1, na qual realizou fugazes aparições com a Osella, morreu durante uma disputa das 24 Horas de Le Mans de 1986. Em 1989, Gerhard Berger viveu drama semelhante ao de Niki Lauda, quando a bordo de uma Ferrari, bateu na fatídica Curva Tamburello e seu carro pegou fogo. Felizmente, treze anos depois do que acontecera com o compatriota, a segurança era maior e havia um carro de bombeiros a poucos metros de onde o acidente aconteceu. Berger foi retirado do carro com queimaduras numa das mãos em menos de 3 minutos.

E houve ainda Karl Wendlinger, que era saudado como um talento potencial do automobilismo, acidentado gravemente em Mônaco, naquele mesmo ano de 1994, poucas semanas depois daquele que foi chamado de “fim de semana negro” em Imola. Contem comigo: com Ratzenberger, são sete pilotos austríacos numa nefanda lista que mistura triunfos e tragédias.¹

Para os compêndios, Roland Ratzenberger não nos apresentou números espetaculares. Também pudera: sua carreira na F-1 foi resumida a uma não classificação no GP do Brasil e a um 11º lugar na única corrida que disputou, o GP do Pacífico, em Aida. Sua equipe era a precária Simtek, que nunca havia feito carro nenhum em categoria nenhuma, antes de ser “aceita” na categoria por interferência de – sempre ele – Max Mosley, então presidente da FIA.

ratzenberger2O austríaco começou no automobilismo 10 anos antes e com uma idade avançada para os padrões atuais. Em 1984, com 23 anos, Roland estreou na Fórmula Ford 1600 alemã. Foi campeão do Festival Mundial de Fórmula Ford, tradicional evento realizado em Brands Hatch, na Inglaterra. Vislumbrou uma vida melhor na “ilha”: competiu na F-3 britânica e no Turismo, pelo qual foi vice-campeão mundial em 1987, com uma BMW do Team Schnitzer.

Essa versatilidade ao andar bem – e rápido – de monopostos e turismo rendeu dividendos ao piloto. Ao migrar para o Japão, país em que se radicou por quatro anos, Ratzenberger andou de tudo: Fórmula Nippon (a competitiva Fórmula 3000 deles), Turismo e Esporte-Protótipos. Nestes carros, esteve presente inclusive nas 24 Horas de Le Mans e em 1993 chegou em 5º lugar na geral, a bordo de um Sard-Toyota.

Um de seus rivais na época era o brasileiro Maurizio Sandro Sala, de quem ficaria amigo. Sala, que fizera o mesmo caminho de Ratzenberger, saindo do automobilismo europeu para as lucrativas provas no Oriente, se assustava com o ímpeto do austríaco. “Ele andava no limite o tempo todo, fio da navalha total”, revela. E de fato, Roland sofreu pelo menos três acidentes muito fortes no período em que correu no Japão.

Mesmo com toda a situação favorável e uma carreira profícua pela frente, ganhando bem e em dia, Roland não desistia do velho sonho de chegar um dia na F-1. Entrou pela porta dos fundos, numa equipe pequena, como pay driver, começando um caminho tortuoso para, quem sabe, brilhar como Lauda, Rindt e Berger conseguiram fazer.

Naquele dia 30 de abril, eu estava em casa e, como sempre fazia desde 1991, acompanhava atentamente o treino de classificação que definiria o grid de largada do GP de San Marino. Desde a véspera, o clima não era dos melhores porque Rubens Barrichello se acidentara com sua Jordan, felizmente sem muita gravidade.

ratzenbergerEram 9h18 da manhã, 14h18 em Imola, quando de repente surge na tela da minha televisão um carro violeta inteiramente destruído. Um rombo na carenagem, na altura do cockpit, dava a dimensão de uma pancada seca e violentíssima. Manchas de sangue no capacete vermelho e branco. Uma cabeça tombada, um piloto inerte. Logo os caracteres informavam: tratava-se de Roland Ratzenberger.

Treino interrompido, bandeira vermelha, a equipe médica chefiada pelo Dr. Sid Watkins entrou em ação. Iniciaram o processo de “reanimação” do piloto. Balela pura: com a base do crânio fraturada em razão do brutal impacto do Simtek desgovernado com o muro da curva Villeneuve, Ratzenberger já estava morto. O teatro foi feito para que o treino fosse reiniciado e o GP de San Marino não corresse o risco de cancelamento. Afinal, “o show não podia parar”.

O piloto austríaco foi levado ao hospital Maggiore, em Bolonha, menos de 24 horas antes de receber o seu mais ilustre paciente. Por volta das 13h, durante o Globo Esporte, chegou a notícia do óbito de Roland Ratzenberger, vítima de uma falha aerodinâmica em seu carro, como se soube depois na recuperação de uma imagem que revelou o momento em que a asa dianteira do Simtek desprendeu-se do carro. A batida aconteceu a 315 km/h. Nada poderia salvar Roland.

ratzenbergersenna

Mas há algo que precisa ser dito. Se o óbito de Ratzenberger fosse admitido e verificado na própria pista de Imola, a corrida teria sido cancelada e, quem sabe, jamais teríamos visto o que vimos em 1º de maio, no dia seguinte.

O destino foi cruel com Ayrton Senna, com a F-1 inteira e com o automobilismo, trazendo profundas feridas e consequências que até hoje refletem aqui no Brasil. Mas a crueldade maior foi feita com Roland Ratzenberger.

VARIOUS MOTOR RACING - 1996A Simtek sequer cogitou em retirar-se da corrida. Seus mecânicos trajavam, nos uniformes, faixas pretas em sinal de luto e só. Até o fim da temporada, a única homenagem que fariam seria na pintura do carro, com a entrada de ar caracterizada no desenho do capacete do austríaco. O carro #32 de Roland foi revezado, sem sucesso algum, por outros quatro pilotos até o fim de 1994. E a equipe fecharia suas portas no ano seguinte, sem dinheiro.

E assim seguimos: a cada 30 de abril que vem e passa, esquecemos mais ainda de Roland Ratzenberger e a cada 1º de maio, cada vez mais se recordam os feitos de Ayrton Senna. Ninguém se recorda que, assim como o tricampeão do mundo, o austríaco pagou com a própria vida por um automobilismo que, 20 anos depois, não viu mais ninguém morrer em qualquer Grande Prêmio de Fórmula 1.

1 – Nota do Editor: ainda houve o caso de Helmut Marko, atual consultor da Red Bull, atingido por uma pedra atirada pelo carro de Emerson Fittipaldi durante o GP da França de 1972. Marko perdeu um dos olhos e parou de correr.

5 Replies to “Semana Senna: “… E continuamos esquecendo Roland Ratzenberger””

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