Eu saí do banho, estava no quarto secando o cabelo, que naquela época ainda existia. Olhei para a tela, fiquei estatelado. Não havia tempo para acompanhar todo o desenrolar dos acontecimentos daquele domingo; em algumas horas eu deveria estar de volta ao Rio.

Mas voltemos ainda mais um pouco no tempo. Nós últimos anos dos anos 1980, minha mãe trabalhou na equipe de apoio a uma das diretorias da Petrobras. Isso me rendeu algumas idas à ópera (a Petrobras patrocinava a reforma do Teatro Municipal do Rio) e às edições derradeiras da Fórmula 1 no Autódromo de Jacarepaguá. Eu era piquetista, mas torcia por todos os brasileiros alinhados no grid.

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Certa feita, numa prova em que Senna abandonara, mas Piquet ainda tinha chances, vi um sem-número de torcedores abandonando o circuito antes do final da prova (N.do E.: em 1994, isso também aconteceu, mesmo com Rubens Barrichello brigando pelo pódio). Naquela época, a rivalidade era alta. Piquet ainda brilhava, Ayrton não era a unanimidade que passou a ser depois.

Portanto, eu era um brasileiro que torcia pelo Senna, vibrava com suas vitórias, admirava sua audácia e técnica, mas um brasileiro piquetista. Como, até hoje, eu acho que o maior piloto de todos os tempos foi um tricampeão chamado Nelson Piquet Souto Maior. Um gênio cuja carreira, curiosamente, entrou em declínio depois de um grave acidente na curva Tamburello, em 1987 – e o próprio, posteriormente, explicaria o porquê.

Em 1994, havia Senna, também um grande tricampeão pelo qual também valia a torcida. E eu torcia por Senna. Tudo levava a crer que seria um ano difícil para ele. Mesmo assim, naquele 1º de maio, há 20 anos, eu levantei um pouco antes do necessário e, contrariando meus hábitos, entrei no banho primeiro. Para dar tempo de ver, pelo menos, o trecho inicial do GP de San Marino, em Ímola.

nelsonpiquet_ricardopatrese_jacarepagua_1983_getEstávamos, eu e minha primeira esposa, hospedados num hotel na Rua Galvão Bueno, na Liberdade. O nome da rua, claro, não tem nada a ver com o locutor cuja voz ficou tão identificada com as conquistas de Senna na F-1. Mas esta coincidência eu jamais vou esquecer. Estava na Rua Galvão Bueno, enxugando o cabelo no quarto de hotel, ouvindo o Galvão Bueno narrar a corrida, olhando meio de lado para a tela da tevê pequena e mal sintonizada que estava na parede em frente.

E parei tudo. Pelo relato que eu tive de tantas pessoas, ao longo desses anos todos, parece que o mundo parou.

Naquela época, eu morava em Petrópolis. Já havia morado pela primeira vez em São Paulo, mas não vinha então à cidade havia uns 2 ou 3 anos. Além da nossa loja, estávamos envolvidos com uma empresa de marketing em níveis que costumava realizar convenções-espetáculos gigantescas. Era para isso que estávamos em Sampa. O evento de encerramento ocorreria, em instantes, no antigo Estádio Palestra Itália. De lá, embarcaríamos direto no ônibus que nos traria de volta ao Rio.

Vi o acidente e, minutos depois, já estava sendo apressado para acabar de colocar a roupa e rumar ao evento. Não pude acompanhar mais nada naquela manhã. No saguão do hotel, alguns comentavam o ocorrido, ávidos por mais informações. Outros, tomavam ali conhecimento do que havia se passado. Alguém tomou o ônibus de excursão com um radinho de pilha ao ouvido.

No final da convenção, não havia como parar em frente a nenhum aparelho de tevê. A expectativa era grande, o acidente tinha parecido muito grave, mesmo à primeira vista. Durante a viagem, chegaram algumas poucas informações. Quando o ônibus encerrou a viagem, no Rio, já no início da noite, a notícia já era de conhecimento de todos.

ayrton-senna-19Não lembro exatamente do momento em que eu soube, com certeza, da morte de Ayrton. Mas lembro bem do clima de consternação mundial. Lembro, sobretudo, do enterro transmitido ao vivo, que parou novamente o País.

Não concordo com a mitificação criada em torno de Senna, nem de qualquer esportista. Compreendo – e lamento – que as pessoas, as sociedades, os países, tenham esta necessidade insana na criação de heróis. Mas, se é que tenha que ser assim, Senna é um herói válido. Inclusive muito melhor que Piquet, a quem eu admirei mais como piloto. Mas tenho que reconhecer que Senna incorpora melhor o bom moço, o exemplo, o disciplinado, o focado, aquele que se supera etc. etc. etc. Pode parecer cruel dizer isso mas, nestas circunstâncias, a morte lhe caiu bem.

Certas figuras históricas não envelhecem em nossa memória, por isso a morte é indissociável da biografia de gente tão diversa quanto foram Che, Marilyn, Lennon, Janis e – por que não? – Senna.