Peço desculpas pela longa ausência do Ouro de Tolo, porém por causa da Copa do Mundo o calendário enxadrístico, tanto do Rio de Janeiro como do Brasil, ficou bastante apertado e os torneios estão se sucedendo em fins de semana consecutivos, não me permitindo escrever a Made in USA com a regularidade que era habitual.

Infelizmente, o calendário continuará apertado até o fim do ano com três torneios especiais que ocorrerão no segundo semestre. Assim, essa irregularidade na coluna deverá durar o ano inteiro.

Mesmo assim, como único sennista deste blog, não podia recusar o convite do Migão para participar da Semana Senna, em memória dos 20 anos da morte deste grande piloto.

Quem me conhece hoje não imagina, mas desde os meus dois anos e meio, ensinado pelo meu avô, fui fanático por Fórmula 1. Fanático daqueles de acordar às 2 da manhã da sexta-feira para ver um treino livre em Suzuka (Japão). Deixei de participar de inúmeras sociais quando adolescente apenas para ver treinos livres ou corridas de F-1. Há uns cinco anos me desencantei completamente por motivos que não cabe desenvolvê-los aqui e de lá para cá só devo ter visto uma ou duas corridas.

senna1994Não dá para esquecer cada segundo daquela manhã fatídica de 1° de maio de 1994. Desde o toque do meu despertador às 8h (com medo de perder o horário, eu colocava três despertadores em volume estridente e o primeiro deles tocava uma hora antes da corrida), a largada, o safety car que esfriou os pneus, o momento da batida no qual eu estava sentado na cama vendo a corrida – meu pai entrou no quarto no exato momento para ver ao vivo o acidente e o já eternizado relato assustado “Senna bateu forte” de Galvão Bueno ao vivo na transmissão.

Ainda mais fresca na memória está a ligação desesperada do meu avô, aquele mesmo que me ensinou a amar a F-1, poucos minutos depois, ainda durante o socorro na pista. Sei lá como, ele conseguiu deduzir no momento que uma barra tinha perfurado o rosto de Senna em algum ponto e que a saída “fora típica da perda de direção”, especialmente pela não resposta dos pneus a tentativa de mudança de direção de Senna. Ele já dava Senna como morto pela dedução e pela posição da cabeça.

Impressionantemente meu avô acertou quase tudo, só “errou” a morte instantânea (oficialmente a morte de Senna só ocorreu três horas após o acidente). Ou nem isso, há até hoje uma teoria que insiste em dizer que Senna morrera na hora do acidente e a sobrevida só fora forjada para poder encerrar a corrida (na Itália existe uma lei que proíbe a continuação da corrida se for confirmada uma morte durante ela).

Aliás, até hoje considero inaceitável a atitude da FIA de manter festivo o pódio ao final da corrida. Mesmo que a versão oficial seja a correta e que Senna ainda estivesse lutando pela vida na UTI, a morte de Roland Ratzenberger no treino oficial do dia anterior era fato consumado e a falta de respeito com a memória dele foi gigantesca.

Porém, a imagem que mais me chocou fora durante meu almoço. Por imaginar que a qualquer momento a Globo daria novas notícias, bati o pé com meus pais para almoçarmos no único restaurante perto de casa que tinha uma TV para acompanhar a Globo.

Fiz questão de sentar-nos à mesa mais próxima possível do auto-falante e assim que me sentei tocou aquela música sinistra do plantão da Globo. O restaurante inteiro parou de comer para ouvir. Eu já imaginava que seria para re-anunciar a morte cerebral de Senna, já informada a mim por telefone pelo meu avô.

enterrosennaMas era para anunciar de vez que o coração de Senna parou e não havia mais nenhuma atividade vital no corpo. Na mesma hora uma comoção geral tomou conta do local, todos ficaram com os olhos marejados e algumas pessoas chorararam copiosamente numa cena de comoção coletiva que não lembro de ter visto igual até hoje.

Essa comoção coletiva que tomou conta não só daquele restaurante mas de todo Brasil, como se pode comprovar nas imagens impressionantes do velório de Senna no Brasil, quatro dias após, parece dar raiva em muitos piquetistas (incluído aí o editor) que acham que isso só ocorreu porque Senna morreu pilotando e que Piquet também teria a mesma idolatria caso morresse na pista tentando o tetra. Um erro.

Não quero entrar na ridícula discussão de quem foi melhor piloto entre os dois. Ambos foram gigantes, cada um ao seu estilo, completamente diferentes. O que quero aqui tentar demonstrar é que Senna com seu carisma e sua história na F-1, combinados com a frágil situação nacional quando do seu auge, falou muito mais aos corações e mentes dos “brasileiros da Silva”¹ do que o ranzinza e antipático Nelson Piquet.

1°: Senna conforme dito acima era carismático e sempre gerou simpatia com sua pessoa. Piquet era o tipo de pessoa que perdia o amigo, mas não perdia a piada, além de ser boquirroto de natureza.

2°: o auge de Piquet na Fórmula 1 ocorreu entre o finzinho da década de 70 e o início da década de 80. A situação sócio-econômica do Brasil já estava se deteriorando, mas ainda estava em níveis “aceitáveis”, e o futebol ainda dava alegrias com uma seleção fascinante montada pelo Telê Santana que, todos apostavam, traria o tetra rapidinho. Já Senna só surgiu no fim da década de 80, quando a situação econômica do Brasil estava em níveis desesperadores, com planos econômicos fracassados se sucedendo, uma hiperinflação só comparada à inflação alemã do pós-segunda guerra mundial e, para piorar, a Seleção Brasileira de futebol, válvula de escape do povo brasileiro, estava em péssima fase, com um jejum de títulos que já chegava a 20 anos e duas enormes decepções em Copas do Mundo (82 e 86). Era Senna o único motivo que fazia o brasileiro sorrir e esquecer a tragédia que era sua vida no dia-a-dia, a correria para fazer as compras no supermercado porque no dia seguinte o dinheiro já não teria nenhum poder de compra. Coincidentemente (ou não, para quem acredita), Senna nos deixou a menos de dois meses de esses dois “problemas” da nação serem resolvidos. O Plano Real, que salvou a nossa economia, começou a ser implantado no dia 30 de junho de 1994 e no dia 17 de julho a seleção de futebol (sabe lá como com aqueles jogadores) deu fim aos 24 anos de jejum de Copas do Mundo.

3°: Piquet não teve grandes lutas além daquelas normais de um piloto de Fórmula-1 para brilhar na carreira². Já Senna tinha um roteiro que parecia de cinema: ele era o pobre coitado que tinha que lutar contra tudo e contra todos. Não bastasse ter um grande rival na pista, o francês Alain Prost, este ainda era da mesma nacionalidade e amigo do peito do então presidente da FIA (a organizadora técnica da Fórmula 1), o detestável Jean-Marie Balestre, que fazia todo possível nos bastidores para favorecer Prost. Esse movimento era tão descarado que até Piquet, que odiava Senna, encarou o diretor de prova em um briefing antes da corrida de Suzuka em 1990 (prova que decidiria o bicampeonato de Senna) em prol de Ayrton após uma ordem de Balestre. Esta cena pode ser vista no vídeo abaixo.

Se tem algo que o brasileiro gosta de admirar é o coitado que tem todos contra ele e mesmo assim, derrota-os um a um e vence ao fim. Esse roteiro se encaixa perfeitamente em Senna e ainda foi amplificado pela narrativa ufanista do “irmão-camarada” de Senna, Galvão Bueno, em plena Rede Globo.

donington4° Por fim, o estilo estrategista de Piquet era muito eficiente, mas não causava emoção, nem ajudava a construir narrativas épicas. Já Senna, longe de ter o brilhantismo estratégico e os profundos conhecimentos mecânicos de Piquet, resolvia tudo no “braço” e no talento puro, especialmente na condição adversa da chuva, em uma época em que a F-1 ainda permitia ao piloto resolver dessa forma. Esse estilo fez com que a carreira de Senna fosse recheada de feitos incríveis, facilmente perceptíveis para todos. Entre eles estão a absurda prova do GP de Mônaco de 84, a vitória no GP Brasil de 1991 apenas com a sexta marcha e a chegada exausta nos boxes na qual ele sequer conseguia sair do carro e a primeira volta histórica de Donington Park em 1993. Esses fatos ajudaram bastante a escrever uma história épica da carreira de Senna que gerava carisma e causava a admiração de todos.

Por isso tudo, a tentativa de reduzir a idolatria nacional a Senna a apenas uma morte no meio do ofício é um argumento barato que não leva a lugar algum. Apenas aceitem o fato de que Senna e Piquet foram grandes pilotos, mas que um ídolo não é forjado apenas pelos resultados na carreira. Ele também nasce por causa de outras variáveis externas às pistas que apenas Senna conseguiu nutrir entre os brasileiros e os fãs da velocidade.

1 – Expressão cunhada por William Bonner em seu texto sobre a morte de Senna para o Jornal Hoje do dia seguinte ao acidente.

2 – N.do E.:  no começo da carreira, Nelson morou em uma kombi para poder correr, o que mostra dificuldades financeiras pelas quais passou; já na F-1 em 1987, Piquet ganhou o tri mesmo correndo contra Mansell e uma equipe que o favorecia abertamente.

3 – N.do.E.: com este texto iniciamos uma série de posts dos editores e colunistas marcando os 20 anos de morte de Ayrton Senna, que vai até domingo. Por ser jornalista especializado na área, a coordenação dos textos está a cargo do editor adjunto Fred Sabino.

13 Replies to “Made in USA: “Semana Senna – Ídolo não nasce só pela carreira””

  1. Discordo somente que Piquet não passou por grandes desafios na sua carreira.

    O problema dele foi que ele sempre foi meio “do contra” para com a imprensa. No mais, dois gênios. E adorei a parte que você compara os pilotos com as épocas de sucesso.

  2. Injusto dizer que Piquet não foi também um piloto de espetáculo que construía soluções “no braço. O pega mais fantástico da história da F1, a meu ver, foi aquela sequência de ambos na Hungria. Coisa de dois gênios.
    De resto, excelente texto.

    1. Afonso,

      Quanto a ultrapassagem do Piquet em cima do Senna em Hungaroring, concordo plenamente que foi a maior ultrapassagem da história da F-1 (e a reação do Piquet logo após a ultrapassagem foi mais hilária ainda). Mas mantenho o argumento que enquanto Senna “enfileirou” tais momentos, Piquet fazia isso com mais “parcimônia”.

  3. Piquet não passou por grandes desafios na carreira?

    Como assim?

    Ele correu escondido do pai, um ex-ministro da Saúde, porque o pai dele, o Dr. Estácio do Souto Maior, não apoiava a escolha do filho em enveredar pelo caminho da mecânica e da graxa; Piquet foi um graxeiro por natureza, profundo conhecedor de motores, o melhor acertador de carro que a Fórmula 1 conheceu.

    Na Europa, não teve vida fácil. Montou a equipe dele de F-3 sozinho, com um auxiliar e um mecânico. Não tinha divulgação e Chico Serra, com uma monstruosa máquina a seu favor, aparecia mais que ele – mesmo quando o Nelson vencia. Só que a Quatro Rodas restabelecia a verdade em favor de Piquet, que no mesmo ano de 78 estreou na F-1.

    Ganhou três títulos em cima de uma legião de pilotos muito melhores que 90% do grid hoje em dia. Ou alguém há de dizer que Prost, Reutemann, Jones, Arnoux, Laffite, Villeneuve, Pironi, Patrese, Tambay, Cheever, Watson e Lauda eram ruins?

    Enfim… existe uma antipatia da imprensa com o Piquet, sempre existiu. Mas, cabe lembrar uma coisa: antes do Senna ser o recordista de poles, quem detinha o recorde era Nelson Piquet, nove vezes pole position na temporada de 1984. E há quem diga que não era rápido. Conversa fiada.

    E de mais a mais, o Nelson cagava pra essa antipatia da imprensa. Nunca precisou dela pra ganhar três títulos e ser um dos maiores pilotos da Fórmula 1. E quem criou essa dicotomia babaca do Senna “bonzinho” e do Piquet “ranzinza e anti-herói” tem nome e sobrenome, porque o Nelson nunca gostou dele. Liguem os pontos e saberão de quem falo.

    1. Mattar,

      Quem sou eu para discutir automobilismo contigo? Muito do que sei sobre isso foi graças aos seus comentários na época do Sportv e do A Mil por Hora.

      Em momento algum discuti o absurdo conhecimento de Piquet sobre mecânica e acerto de carros, pelo contrário reforcei tal característica no texto.

      Quanto aos desafios, os que Piquet enfrentou também não foram fáceis, mas não são tão diferentes quanto aos outros pilotos tiveram para crescer na carreira (alias, são essas dificuldades que moldam um campeão, vide o que ocorreu com Serra). Uma vez tendo conseguido seu lugar na F-1 e estabelecido sua reputação como piloto de ponta, Piquet pode se preocupar apenas nas suas corridas e em como ganhá-las.

      É exatamente isso que não ocorreu com Senna que mesmo já campeão mundial teve que enfrentar todas as maracutaias de seu Balestre. Acho que nenhum piloto teve lutar tanto contra a organização da F-1 quanto Senna. Esse foi o aspecto que quis ressaltar no texto.

      1. Por outro lado, Rafic, Senna era de família abastada e teve apoio desde cedo para correr. No fim das contas, só chegar lá e se estabelecer já é árdua tarefa

  4. tudo o que o Mattar falou corrobóra com uma coisa que penso… jamais alguém foi campeão com carro ruim…
    Essa dicotmia só foi criada pra fazer do Senna um herói que ele curtia muito..

    o resto é preferência e opinião

    1. Exato. O que às vezes ocorria era ser campeão sem ter o melhor carro, como Piquet em 81 ou Prost em 86

      1. O próprio Piquet também não tinha o melhor carro ao longo do ano de 1983 – Renault e Ferrari eram melhores – mas houve um crescimento na reta final e ele fez em 27 pontos possíveis nas três últimas etapas um total de 22. Prost, que tinha a faca e o queijo nas mãos, só seis. Resultado: NP campeão.

        1. O contrário ocorreu em 91, quando Senna foi suplantado pelas Williams no decorrer da temporada mas as quatro vitórias na abertura do ano acabaram sendo determinantes

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