A coluna do advogado Rodrigo Salomão analisa as reações a partir do caso do rapaz acorrentado nu ao poste no bairro do Flamengo.

A vingança privada

Recentemente, as redes sociais e os bares se viram em meio a uma polêmica forte, que rendeu inúmeras discussões. Ok, essa frase pode ser utilizada semanalmente, mas dessa vez o assunto envolve uma visão jurídica que aprendemos no início da faculdade, portanto vamos lá falar a respeito. Evidentemente, estou me referindo ao conhecido caso do rapaz que foi preso nu a um poste no Flamengo por “justiceiros que faziam uma ronda” ao, aparentemente, ter cometido algum delito (que ainda não foi confirmado).

Logo de cara, alguns pontos precisam ser esclarecidos, para que você siga lendo o que vou falar aqui sem dar um ataque de pelanca e de impropérios. Ponto número 1: este colunista não é a favor de NENHUMA medida ou posição extremada. Isto é, não vou defender que se mate um “bandido”, muito menos levarei um para casa. Ser contra um tipo de medida não é sinônimo de achar que um criminoso é vítima. Que fique claro. Ponto número 2: não relacione o que escrevei adiante com a minha posição política. Até porque, eu não sou ideologicamente incondicional, portanto não ache que esse é um texto de direita, esquerda ou centro. É um texto sobre justiça, direito e o que penso disso. Ponto número 3: não tem, vamos para o próximo parágrafo.

Bem, passados os esclarecimentos preliminares e as ladainhas, é importante dizer a vocês que, normalmente, aprendemos na universidade, de maneira breve, sobre a vedação da chamada autodefesa (ou vingança privada). O que isso significa? Significa que no modelo do estado democrático de direito (em suma, o que vivemos hoje) o poder de punir, pela lei, se restringe ao Estado. Parece algo óbvio, mas ainda assim vira questão de prova nas aulas de “Introdução ao Estudo do Direito” e, pior, vira motivos de descontentamento nos Facebooks por aí.

Aí você vira e me diz: “mas, Rodrigo, está uma situação insustentável. O Brasil é a terra da impunidade!”. Acho lindo o desabafo. Eu mesmo considero o país muito brando em uma série de situações, mas calma lá. Só por que o país é o que é teremos de legitimar milícias por aí afora? Sim, os tais justiceiros, na realidade, apenas fizeram o que milhares de milicianos já fazem há tempos nos morros do Rio de Janeiro. E aí? Como é que fica? Quem decide qual tipo de justiceiro pode ou não pode? Eu? Você? O Bolsonaro? O Papa? O Estado? Essa é a primeira fragilidade desse tipo de pensamento: a legitimidade. Novamente, parece óbvio que não se sustenta.

Outro ponto a ser levantado: o Brasil é o país da impunidade para quem? “Ah, para todo mundo, Rodrigo. Aqui é uma zona!”. Bom, lamento informar, mas o país é o que tem a 4ª maior população carcerária do mundo em números absolutos e, nos últimos quinze anos, prendeu SETE VEZES mais do que a média do mundo (fonte: Centro Internacional de Estudos Penitenciários). Não é incomum vermos documentários e até rebeliões delatando a precariedade das penitenciárias, as lotações, dentre outros aspectos que contrariam a lógica da impunidade. Aí voltamos à pergunta do início do parágrafo, mas com uma pequena diferença: o Brasil NÃO é o país da impunidade para quem? É aí que puxa outra dificuldade. Vamos adiante.

Por que a sensação de impunidade no país, se temos uma população carcerária tão volumosa? Aí é o que eu te digo. Quem de nós nunca ouviu ou leu a frase “bandido bom é bandido morto”? Todo mundo já viu essa, né? Pois bem, temos uma dificuldade em levar pra frente essa ideia. Não só porque não há previsão legal de pena de morte no Brasil (algo que obviamente todos sabem), mas também por um detalhe aí que às vezes passa despercebido: quem define o que é bandido bom e que deve morrer?

O sujeito que foi preso nu, dizem, havia furtado. Furto é crime? Claro. Então, segundo essa lógica, ele devia morrer. Ótimo, simples e rápido. Legal. Mas e quem sonega impostos? E quem dirige bêbado de olho no Twitter da Lei Seca? E quem viola direitos autorais comprando produtos piratas? E quem desvia verbas públicas para o próprio bolso? E quem vende cocaína nas festas da alta classe? São tantos os questionamentos que eu junto num só: quem é que define qual tipo de bandido é bom o suficiente para ser morto? Eu? Você? O Bolsonaro? O Papa? O Estado? Creio que já falei essa frase antes. E a resposta nada de aparecer.

Tecnicamente, quem comete um delito (e aqui eu citei vários) é criminoso. “Ah, Rodrigo, mas é diferente. Tem escalas de importância nos crimes”. Ah, é? E quem é que define isso? Tem um código moral e ético que diz que furto é mais pesado do que falsidade ideológica, por exemplo? Porque no Código Penal tem. Mas aí não vale. Aí é a lei do Estado. E o Estado não pode mais interferir, segundo a galera, não é mesmo? Está todo mundo cansado e tal e coisa, a população tem que tomar as rédeas e dominar tudo para restabelecer a ordem social. Belo discurso, mas que não é nada mais do que isso: um discurso. São palavras soltas ao vento, recheadas de indignação e desabafo, mas poucas ideias práticas que só geram intolerância, medo e milícias ilegítimas.

Inclusive, vi uma jornalista do SBT defendendo o ato dos “justiceiros” como “legítima defesa da sociedade”. A responsável por essa frase, além de se mostrar completamente boba, evidenciou que sequer se deu ao trabalho de estudar um pouquinho que legítima defesa só é assim classificada se a vítima se defender no ato contra o agente e de maneira proporcional ao ataque. Ela não perderia mais do que 5 minutos se procurasse no Google do que se trata.

Depois de muito tomar o tempo dos senhores aqui, falando em perder tempo estudando, sugiro que os leitores leiam o livro “Revolução dos Bichos”, de George Orwell. Ele não adotou nenhum bandido, não conhecia o Batman, não era ativista dos Direitos Humanos e também não tinha pena de ninguém. Portanto, antes de virem com esses clichês vazios, tentem perceber o perigo que é deixar para qualquer um legislar e punir sobre o que quiser. É juridicamente inseguro. É frágil demais deixar na mão de quem quiser o direito de julgar e punir pelo motivo que for conveniente. Pior do que isso: é perigoso.

Daqui a pouco, estaremos vendo gente sendo presa nua a um poste por escrever bobagem no Facebook.

Mas aí até que não seria má ideia.

6 Replies to “O Povo no Blog: “A vingança privada””

    1. Caro Junior Silva, sugiro ler com extrema atenção o oitavo parágrafo. Aproveite o tempo e vá também ao dicionário, lá na letra “I”, e veja o que significa a palavra “ironia”. Some uma informação à outra. Acho que vai ajudar a aumentar ainda mais a sua inteligente capacidade de compreender textos.

      Abraços

  1. Rodrigo, belo texto mas acho que o que mais deixa a maioria da população indignada é a vitimização e a “coitadização” do bandido por órgãos oficiais do governo como a SDH, políticos hipócritas, a OAB e Ongs ditas dos direitos humanos financiadas muitas vezes pelo governo federal. Acho que isso pesa muito em atitudes como ocorreu no Flamengo.
    Sds

  2. Outra bobagem que essa jornalista disse para justificar a barbárie é que qualquer pessoa do povo pode prender quem quer que seja encontrado em flagrante encontrado em flagrante delito, e para fingir que entende alguma coisa de direito, citou o artigo 301 do Código de Processo Penal.
    Ora, “prender” alguém significa imobilizá-lo e entregá-lo às autoridades competentes para abertura do devido inquérito ou processo, e não espancá-lo nu na via pública e deixá-lo acorrentado a um poste. Em qualquer caso, o condutor deve ser identificado, não pode ser um grupo de “justiceiros” que atue na calada da noite (art. 304). E é óbvio que, tendo as coisas ocorrido daquela forma, não restou nenhuma evidência de que o rapaz estivesse mesmo em flagrante delito.

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