Nesta terça-feira, a coluna do historiador Luiz Antonio Simas discorre sobre o clássico samba “Os Sertões”, escrito por Edeor de Paula em 1976 para a Em Cima da Hora, baseado na obra de Euclides da Cunha. A escola de Cavalcante vai reeditar a obra no Carnaval de 2014 na série Ouro.

O maior épico brasileiro

Os Sertões, o livro de Euclides da Cunha, é um calhamaço de mais de 500 páginas, dividido em três partes: a terra, o homem, a luta. Retrata, com a linguagem caudalosa do gênio, a Guerra da Canudos, ocorrida em 1897 no sertão da Bahia. Enviado ao cenário do conflito como jornalista, Euclides foi além dos limites da reportagem e escreveu uma obra maior da literatura universal.

Quando a Em Cima da Hora, a tradicional agremiação de Cavalcante, anunciou o enredo para o Carnaval de 1976, muita gente boa considerou a tarefa dos compositores de samba-enredo uma das mais complicadas da história dos desfiles: o tema era exatamente “Os Sertões”.

É possível sintetizar a obra de Euclides da Cunha em um samba? É viável carnavalizar um episódio dramático como a Guerra de Canudos, dos mais trágicos e impactantes da história do Brasil? Que diabos a Em Cima da Hora pretendia com os Sertões?

edeorQuanto à primeira tarefa, o resultado foi simplesmente o mais surpreendente da história da folia. O samba-enredo, composto pelo mecânico Edeor de Paula (foto), realizou certamente a mais bem-sucedida síntese da história da música brasileira em qualquer gênero e em qualquer tempo.

A primeira parte, em tonalidade menor (mais conveniente ao lamento da dureza da vida), caracteriza a aridez do cenário em versos curtos e geniais (“ó solitário sertão / de sofrimento e solidão / a terra é seca / mal se pode cultivar / morrem as plantas / e foge o ar / a vida é triste / neste lugar”), e define, no refrão do meio, o homem do sertão com a sentença mais famosa de Euclides da Cunha (“sertanejo é forte/supera a miséria sem fim/ sertanejo homem forte/dizia o poeta assim”).

A segunda parte, em tonalidade maior, mais adequada ao relato de um combate, remete aos lances dramáticos da guerra. Localiza Canudos no contexto da Primeira República, enfatiza a rebeldia mística de Antônio Conselheiro e termina com a exortação aos jagunços que defenderam o arraial. É uma aula! Não à toa, o samba é dos mais utilizados por professores de História que (como eu) trabalham a questão de Canudos com alunos do Brasil inteiro.

Em um livro que escrevi com Alberto Mussa, definimos o samba-enredo como um gênero épico. Ele não é lírico, subvertendo uma tendência universal da música popular urbana. A epopéia, por definição, é um longo poema ou narrativa em prosa, declamada ou cantada, que exalta os feitos memoráveis de um herói histórico ou lendário, representante de uma coletividade. É, ainda, o relato de um evento extraordinário, capaz de provocar surpresa e admiração. Ao contrário da lírica, nela não predomina o sentimento íntimo do poeta, mas o caráter de exaltação de grandes aventuras.

Os sambas-enredo constituem o corpo de uma grande epopéia brasileira. Homero cantou a Guerra de Tróia; Virgílio cantou os feitos de Enéas; Camões pediu licença às musas, bateu cabeça no congá de Netuno e Marte e retratou a viagem de Vasco da Gama às Índias. Canudos é a nossa Tróia. Os Sertões é a nossa Ilíada. O samba, batuque ancestral, é o nosso recitativo da aventura, para que a coletividade lembre-se sempre da trajetória de seu povo.

Sou, a princípio, refratário às reedições de sambas-enredo. A Em Cima da Hora reeditará “Os Sertões”. Acho que o samba-enredo interage com o tempo histórico em que foi composto e com um conjunto de códigos que, nas circunstâncias da composição, caracterizava as escolas de samba e seus componentes.

A despeito disso, o desfile da Em Cima da Hora é imperdível. Os Sertões, afinal, é daqueles sambas que conseguiram a proeza de ultrapassar a circunstância em que foram compostos e permaneceu. Feito o Alegro da Nona de Beethoven; o samba da Em Cima da Hora transcende ao tempo em que foi feito e não se restringe ao evento ao qual foi destinado. Isso é grande arte.

Os eguns de Canudos – miseráveis de nomes desconhecidos e vítimas do descalabro de uma guerra assassina – jamais receberam homenagem tão bonita. Que os tambores da Em Cima da Hora rufem de novo, transformem a avenida em um xirê de louvor e mostrem que o Carnaval não aliena. A festa, pelo contrário, educa.

Eu estarei lá, cantando como quem reza aos ancestrais.

Fotos: O Globo e Galeria do Samba

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