Nesta terça-feira, a coluna 457, do professor e dramaturgo Rafael Cal, relata o comportamento das pessoas durante uma viagem no metrô do Rio de Janeiro.

Da General Osório à Carioca: era só o metrô

A estação de metrô na General Osório foi reaberta e nem tinha me dado conta. Faz sentido o fato passar quase despercebido, visto que não sou exatamente um usuário do metrô, sou mais um observador. É isso: não gosto de andar de metrô, mas gosto de observar o comportamento alheio em todos os lugares. Inclusive no metrô.

Mesmo gostando, sempre tentei fugir dele. Nem sempre, porém, é possível, como neste ano. Tal fuga nada tem a ver com as habituais paranoias, nem as minhas nem as coletivas, sobre estar no subsolo, sem luz do sol e tal. Apenas, sempre que pego o metrô, está cheio, ainda que fora dos horários de pico, o que me faz desistir de usá-lo muitas vezes. Mas isso é outro assunto.

O fato que interessa particularmente é a possibilidade de entender o metrô do Rio de Janeiro, de alguma maneira, como um espaço para enxergar a cidade e seus contrastes. E talvez seja assim em todos metrôs e meios de transporte de todas as cidades do mundo. O que, entretanto, não deixa de ser atraente: um espaço tão longe da luz, que revela tantas nuances.

No dia em que descobri que a estação da General Osório estava aberta outra vez, aproveitei pra utilizá-la numa ida ao centro da cidade. Ao me aproximar das escadas de acesso à plataforma, uma tela anunciava o tempo que faltava para a próxima partida. Segundo a informação, cerca de um minuto e meio.

Desci as escadas, então, com alguma tranquilidade. Era um lance de escadas, coisa simples. Eu achava, pelo menos. Do meio da escada, antes de chegar à plataforma, o trem já tinha fechado as portas e estava partindo. Não, não demorei 90 segundos pra descer meia escada, posso garantir. E não, este texto não é sobre o sistema de transportes do Rio.

Esperei pelo próximo trem e entrei rapidamente, vai que as portas travam imediatamente e não consigo subir mais uma vez, né? Eu me acomodei num dos bancos e fui conferir umas anotações pra aproveitar o tempo da viagem. Enquanto isso, quatro jovens entraram com instrumentos musicais no vagão e ficaram próximos as duas portas centrais.

Alguns minutos depois (não saberia precisar, nem no meu relógio, nem no relógio do metrô), o trem partiu e, prontamente, os rapazes começaram a tocar bossa nova. Me senti como elenco de apoio de uma novela do Manoel Carlos. E uma comoção tomou conta do vagão. As pessoas, de repente, riam. Algumas cantavam. Ao chegar à estação seguinte, encerravam e eram aplaudidos. Trem em movimento, começavam outra vez.

Umas duas estações depois da partida, um dos rapazes, que tocava um pandeiro, virou seu instrumento ao contrário e passou recolhendo contribuições. A senhora sentada ao meu lado, olhos marejados quase, me cutucou pra dizer o quanto estava achando tudo lindo e que o marido e a filha também eram músicos e aquilo tudo era maravilhosos. Sorri, balançando a cabeça, como se concordasse. Na verdade, apesar de ser um entusiasta da arte de rua, acho bossa nova um negócio muito chato, não estava comovido e nem incomodado. Mas este texto também não é sobre música.

Naquele momento e pelo resto do dia, fiquei imaginando a reação das pessoas em situações parecidas, com sutis diferenças. Fiz pequenos exercícios de imaginação, nada cientifico, apenas considerando os comentários que escuta e leio com alguma frequência.

As estações iam passando e eu pensava na possibilidade de estar sentado no metrô e, de repente, entrar um grupo de samba. De pronto, uma senhorinha reclamaria da música. Cantarolo mentalmente “Madame diz que a raça não melhora / Que a vida piora / Por causa do samba” e rio. Fosse um grupo de jovens dançando break com música alta, talvez alguém dissesse que aquilo não era lugar praquele tipo de coisa. Preferi não imaginar o que aconteceria se fossem garotos cantando rap ou algum funk, enquanto estávamos parados no Largo do Machado e os quatro rapazes bossa-novistas eram aplaudidos outra vez.

metro2É, pode ser birra. Não tinha como estabelecer comparações ali, naquele instante, só tinha um lado da coisa toda. Nada contra os rapazes bossa-novistas. No entanto, é muito difícil não fazer as conexões com os preconceitos históricos da nossa sociedade ao considerar uma situação dessas. Pensar nos preconceitos de cor, de classe e mesmo a simples reprodução do discurso de preconceito, tão nociva quanto o próprio.

Na semana anterior, tinha acontecido o episódio com o Tinga, lá no Peru. Lembrei do racismo em campo no jogo contra o Real Garcilaso, mas também das declarações desastradas na tentativa de apoiar o jogador e atacar o preconceito no esporte. O episódio serviu pra mostrar que racismo existe e que, muitas vezes, tá inserido no discurso diário com tanta naturalidade que muita gente nem percebe mais.

Pra ilustrar o quero dizer, numa googlada rápida sobre o assunto, você vai encontrar gente defendendo o jogador com o argumento de que ele, o Tinga, tem “alma branca”. Teve uma atriz, em referência a um atleta do Fluminense do início do século XX, vítima de preconceito também, dizendo que ele “nem era negro, era mulato”. E teve uma enxurrada de jornalistas e até colegas dizendo “poxa, logo eles, os peruanos”. Como se algum desses caminhos fosse aceitável. Como se essas próprias palavras, ainda que de boa intenção (não questiono a boa vontade), não fossem o sinal de uma sociedade extremamente preconceituosa. Preconceituosa e que esquece rapidamente do assunto.

Uma sociedade, como a nossa, que diz que o racismo é velado, mas que tem elevador de serviço e que precisa de uma lei dizendo que não pode haver discriminação na hora de utilizá-los; que tem empregada-doméstica-vestida-de-branco-tomando-conta-das-crianças-enquanto-a-patroa-toma-sol, como num hipotético quadro do Debret; que exige “boa aparência” em entrevista de emprego, querendo, na verdade, dizer que só contrata gente branca. A obra da escravidão, nos falou dela Joaquim Nabuco, é difícil de superar. Não consigo entender o que seria não ser velado.

Penso também nas manifestações não-veladas de preconceito social nos aeroportos, nas falas sobre “aeroportos parecendo rodoviárias”, de uma galera que não consegue admitir que não pode mais monopolizar certos espaços. Ou nas falas sobre “normas de comportamento” de alguns outros. Ou ainda, carnaval se aproximando, é se preparar pra ouvir que “brasileiro é assim mesmo, só quer saber de carnaval e futebol, não se interessa por coisas importantes”. E, este ano, tem carnaval e Copa. Imagina.

Volto ao metrô. Os rapazes se despediram na Cinelândia. Quem sabe tenham corrido de volta para a novela do Manoel Carlos. Tomara que continuem tocando por aí e que mais artistas ocupem os espaços públicos com o máximo de coisas possíveis. A música devia ser boa, as pessoas estavam animadas no vagão.

Desci na estação seguinte. A observação estava terminada, ainda que não tivesse, nem tenha ainda, chegado a nenhuma nova conclusão. A cidade cheia de rachaduras históricas se encontra, ou finge, nos dias de Carnaval que estão próximos. Depois, volta ao estado de tensão muito ou nada discreta que vive no resto do ano. Talvez seja só birra minha. Era só o metrô, uns rapazes fazendo música e as pessoas achando legal. É melhor ir de ônibus da próxima vez e escrever um texto sobre música ou o sistema de transportes do Rio de Janeiro.