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(Imagem: Uol)

Na coluna de hoje o historiador Luiz Antonio Simas e suas “Histórias Brasileiras” retoma o tema do texto anterior para falar da Revolta da Vacina, episódio ocorrido em 1904, e suas implicações políticas e especialmente sociais.

A Revolta da Vacina

A Revolta da Vacina, famoso charivari que tomou conta das ruas do Rio de Janeiro no início do século passado, não se explica somente pelo temor que a população sentia da vacinação obrigatória contra a varíola, proposta pelo sanitarista Oswaldo Cruz e aprovada pelo Congresso Nacional em 31 de outubro de 1904.

A população da cidade, sobretudo a de baixa renda, tinha razões para estar enfurecida. Os aluguéis eram caros, o desemprego crescia, os salários diminuíam e, no meio de tudo isso, o prefeito Pereira Passos iniciara uma reforma urbana que visava transformar a cidade numa espécie de Paris tropical, com a demolição de cortiços e hospedarias, a abertura de largas avenidas e a expulsão das camadas populares do centro. A coisa, enfim, estava feia.

Nesse clima, a notícia de que todos deveriam tomar a vacina explodiu como uma bomba. Sem qualquer esclarecimento sobre a eficácia da vacinação, a população sabia apenas que brigadas de vacinadores, acompanhadas por policiais armados, teriam autorização para violar residências, vacinar as pessoas e prender os que se recusassem a tomar a danada. Até mesmo Rui Barbosa, considerado o sujeito mais inteligente (e empolado, diria eu) do país, declarou que ninguém teria o direito de contaminar o próprio sangue com um vírus. Imaginem então o que achava a população mais pobre e afastada da educação formal. Àquela época, o próprio princípio da vacinação era polêmico.

A revolta explodiu no dia 10 de novembro, quando um comício contra a vacina terminou com os oradores presos no palanque pelo efetivo policial. A população, a partir daí, literalmente quebrou a cidade. Teve de tudo: bondes incendiados (foto), lojas depredadas, postes de luz destruídos, palacetes art-noveau devidamente atacados e o escambau. Membros da elite, diante do fuzuê, se escafederam para seus palacetes de verão em Petrópolis e Teresópolis.

No meio do furdunço, como se a quizumba ainda pudesse ser maior, explodiu uma rebelião de cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha. Os jovens milicos resolveram atacar o Palácio do Catete e derrubar Rodrigues Alves, o presidente da República. Após intenso tiroteio, que varou a madrugada de 15 de novembro, o saldo do levante militar era inacreditável, com mais de 200 ‘presuntos’ estendidos no Largo do Machado.

Para piorar a situação, pais de família ameaçavam receber os vacinadores à bala, como o argumento de que a aplicação da vacina em braços e virilhas de donzelas era uma imoralidade capaz de despertar demônios adormecidos nas moças.

Moradores negros da zona portuária, que cultuavam os orixás africanos, evocaram a proteção de Omolu, o poderoso deus da peste e da saúde, e rufaram os atabaques durante a pancadaria. Omolu, afinal, é o senhor da varíola, e a atuação do poder público despertou a ira de seus devotos.  Operários anarquistas se misturaram ao povo do santo e ajudaram a erguer barricadas para proteger as casas de candomblé da repressão policial. No porto, onde vivia a população negra, a revolta foi mais efetiva.

A reação do poder público não tardou. O governo decretou Estado de Sítio e ‘sentou o cacete’ na população. Cortiços, hospedarias e favelas foram invadidos e milhares de moradores pobres foram detidos e enviados ilegalmente para campos de trabalho forçado nos seringais da Amazônia. A vacinação, interrompida no dia 11 de novembro, foi reiniciada e a varíola devidamente erradicada do Rio de Janeiro em pouco tempo.

Há historiadores, e eu sou um deles, que consideram que a vacinação obrigatória foi apenas um pretexto para um movimento que revelou o caráter tremendamente excludente e elitista da República dos cafeicultores. O próprio governo preferiu divulgar a versão de que a rebelião se limitava a contestar a campanha sanitária, para apagar as tensões sociais que evidentemente estavam explodindo naquele início de século. A vacina, quero crer, não foi o que mais importou naqueles dias.

O tema é polêmico. É evidente que a ideia de Oswaldo Cruz era rigorosamente correta; a vacinação era necessária. O decreto da obrigatoriedade, entretanto, expõe uma faceta tremendamente autoritária do regime republicano e deixa no ar algumas indagações: até que ponto o interesse coletivo deve prevalecer em detrimento das liberdades individuais? Ou a questão fundamental é outra: eram mesmo os interesses coletivos que estavam em questão?

Serei mais claro. A reforma sanitária se limitou a erradicar os focos das doenças ou tentou, na verdade, ir mais longe e excluir as camadas populares urbanas da sonhada Paris tropical – higienizando a cidade, modernizando a zona portuária para atender aos interesses dos exportadores de café e afastando os pobres das zonas privilegiadas do Distrito Federal?

A questão é complexa e, por isso mesmo, fascinante, mas acredito que o projeto de higienização dos primeiros senhores da República visava, sobretudo, limpar as zonas nobres da Cidade Maravilhosa (a expressão surgiu por essa época) dos pobres e das referências culturais de base africana. Eles, pobres e negros com seus batuques, eram, e continuam sendo para muita gente, a verdadeira epidemia a ser erradicada.

One Reply to “Histórias Brasileiras: “A Revolta da Vacina””

  1. Ótimo texto e visão sobre a revolta. Entretanto um professor de história meu me disse que um dos motivos que mais indignaram a população (que queria e entendia que a vacinação era benéfica) era que para as camadas pobres da sociedade o governo não fornecia materiais para a vacinação, com os agentes fazendo a inoculação da vacina com cacos de vidro, o que causava infecções, dores insuportáveis e etc.

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