Neste sábado, tal como avisado pelo colunista domingo passado, estreia a coluna de contos do compositor Aloisio Villar, a “Buraco da Fechadura”. O nome é uma homenagem ao dramaturgo Nelson Rodrigues (acima), um dos maiores escritores brasileiros.
A coluna terá periodicidade quinzenal e um texto bem rodrigueano na estreia. Vamos a ele.
Cerimônia de Casamento
A casa de Dr. Rodrigues estava em polvorosa. Uma bonita mansão na Barra da Tijuca com inúmeros quartos, banheiros, piscina, sauna, tudo de bom e do melhor que o dinheiro pode comprar.

Mas o dinheiro não compra a paz e aquela casa estava de cabeça para baixo. A confusão era tamanha que parecia a Central do Brasil sexta de manhã – com trem quebrado. Estavam na sala Dr. Rodrigues, sua esposa Leocádia e a filha Lurdinha.

Lurdinha: um doce de menina, dezesseis anos ainda, normalista, sonhava em ser professora. O docinho do papai, a lindeza da mamãe, o ‘cuty cuty’ dos avós.

E grávida…

Sim, a menininha da família, criada com tanto amor, carinho – quase em uma redoma – estava grávida. Foi deflorada por algum meliante qualquer e isso tinha a potência de um tiro de bazuca no coração já enfartado de Dr. Rodrigues, um poderoso empresário do ramo da construção. Nem desconfiara que estavam “construindo” em sua “nenenzinha”.

Rodrigues, furibundo da vida, interrogava Lurdinha sentada em uma cadeira em uma mistura de agente do DOPS com alemão da Gestapo. Queria que a menina dissesse quem era o energúmeno que a engravidara. Lurdinha com semblante estranho olhava para o nada e Leocádia pedia que o marido se acalmasse.

– Me acalmar? Como? Essa infeliz está grávida!!

A empregada trouxe água com açúcar para Rodrigues, que jogou o copo longe, Leocádia pediu então que trouxesse seu remédio enquanto ele continuava.

– Fale Lurdinha !! Quem é o infeliz??

Lurdinha nada falava. Olhava a janela e cantava baixinho. Leocádia pegou a água e o remédio da mão da empregada e entregou a Rodrigues que bebeu tudo de uma vez. Limpou a boca e vociferou.

– Você não terá esse filho, vou te levar no Dr. Peixoto, ele fará esse aborto e depois reconstituirá sua virgindade. Você parecerá uma menina recém nascida.

Leocádia interveio e disse que não aceitava. Era religiosa, seguidora das palavras de Deus e nosso senhor Jesus Cristo e não tolerava abortos em sua família.

Os dois discutiram com Rodrigues querendo o aborto e Leocádia não. A mulher insistia nos nomes de Deus e Jesus Cristo até que Lurdinha na cadeira começou a gritar.

– Deus !! Jesus Cristo !! Deus!! Jesus Cristo!!

Rodrigues e Leocádia pararam para olhar a filha que continuava gritando os nomes Divinos. Leocádia com o cuidado que uma mãe sempre tem chegou perto de sua filha e perguntou o que significava isso.

Lurdinha olhou para a mãe, levantou-se e pôs a mão na barriga dizendo…

– Meu filho é do Senhor, gerado por ele.

Rodrigues se irritou e começou a gritar que a filha era louca, enquanto Lurdinha respondia que seria mãe do Messias. Um barraco ‘daqueles’ até que Leocádia gritou que parassem.

Rodrigues falou pela última vez que a filha estava louca e que no dia seguinte mesmo levaria a um psiquiatra amigo dele.

Rodrigues levou Lurdinha ao doutor Brandão e ficou na recepção esperando e lendo revistas antigas. Na saída pediu que a filha esperasse e entrou no consultório para falar com o psiquiatra. Perguntou ao médico o que a filha contara e o homem respondeu que não poderia dizer porque o seu escritório era como um confessionário: o que era dito lá tinha que morrer lá.

Rodrigues insistiu. Então Brandão comentou que Lurdinha sustentava a versão que seu filho era do Espírito Santo: Deus a engravidara para que o novo Messias chegasse à Terra. Rodrigues sentou-se e falou que não sabia o que fazer com a filha: ela desde pequena apresentava problemas mentais, tomava remédios tarja preta e isso causava confusões em sua mente.

Brandão colocou a mão no ombro do amigo e aconselhou que casasse a filha. Rodrigues argumentou “mas como? Nem sei quem é o pai”! Brandão respondeu: “fabrique um”.

Enquanto Rodrigues passava por esse drama familiar, Acácio batia na porta de seu amigo e vizinho Carinhos. Sua luz fora cortada e ele não tinha como ver o jogo do Fluminense na tv. Carlinhos convidou o amigo para entrar e os dois sentados viam o jogo do Fluzão.

Dividiam uma cerveja enquanto Acácio lamentava o fato de estar desempregado e mais uma vez com a luz cortada. Carlinhos respondeu que o amigo tinha que dar um jeito nessa dureza, mas Acácio argumentava.

– Mas como? Já tentei de tudo? Distribuí currículos!!

Carlinhos, bebendo, respondeu brincando que talvez fosse o caso de assaltar. Foi brincadeira, mas Acácio começou a pensar no assunto.

A dureza era grande, tinha uma paquera, não era namorada ainda chamada Dorinha e nem conseguia sair com ela por nunca ter dinheiro. Tinha que dar uma solução naquela situação e arrumou uma arma emprestada com um primo. Iria assaltar.

Andou pela Barra da Tijuca, terra de grãs finos do Rio de Janeiro e conseguiu entrar em um condomínio de luxo. Andou através das ruas do condomínio esperando que algum ricaço desse mole e viu um carro chegando. Era o de Rodrigues.

Seria ele o alvo.

Acácio se aproximava devagar do carro com a arma na mão para render o empresário quando um bandido chegou antes dele com arma e mandou que Rodrigues descesse.

Acácio ficou sem reação vendo o bandido render Rodrigues e com arma apontada para o empresário, mandando que ele abrisse a casa. Mas o rapaz pensou rápido e numa mistura de ataque de honestidade e senso de oportunidade apontou a arma ao bandido e gritou.

– Parado aí!! Larga o cara!!

O bandido deu um tiro que acertou o braço de Acácio e saiu correndo. Os seguranças do condomínio correram para o local enquanto Rodrigues acudia Acácio perguntando se ele estava bem.

Uma ambulância foi chamada levando Acácio. Enquanto o rapaz era levado Rodrigues comentava com Leocádia.

– Corajoso, bem apessoado. É ele…

Rodrigues foi visitar Acácio no hospital e perguntou se o rapaz estava bem. Acácio, com o braço enfaixado, respondeu que sim e o empresário mandou que ele não se preocupasse: todas as despesas do hospital seriam por sua conta.

Encostou a porta, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama de Acácio dizendo que era um homem direto e assim seria direto no assunto fazendo a proposta.

– Eu quero que você case com minha filha.

Acácio riu e disse que a piada era boa, Rodrigues continuou.

– Minha filha é uma menina de família, um doce, minha filha única, portanto um tesouro que tenho. Sofreu um pequeno acidente e por isso precisa de um noivo.

Acácio tentava argumentar que o homem estava confundindo as coisas, mas Rodrigues emendava.

– Eu investiguei a sua vida rapaz, sei que você não tem onde cair morto. É dinheiro que você quer? Te dou muito dinheiro, muito!! Você vai ser rico, poderoso, vai trabalhar comigo em minha empresa. Dinheiro !! Dinheiro!!

Acácio sentiu-se ofendido com o jeito que Rodrigues falou e disse que não tinha dinheiro, mas tinha dignidade, aí Rodrigues jogou a pá de cal:

– Dignidade não paga conta de luz, não compra leite, nem pão. Você sabe onde moro.

E foi embora.

Acácio ficou com aquela história na cabeça e em um boteco com Carlinhos comentou com o amigo a situação. Carlinhos ouviu a tudo boquiaberto e perguntou o que faltava ao amigo para aceitar. Acácio falou em dignidade e que tinha a Dorinha. Carlinhos mandou que Acácio parasse de besteiras e aceitasse – nem namorado de Dorinha ele era.

Voltando para casa Acácio viu a mãe passando mal e correu com ela para um hospital. A mulher foi pessimamente atendida pelo serviço público e depois dele muito brigar e de uma espera de horas com a senhora passando muito mal, finalmente ela foi atendida. Acácio ficou esperando na recepção e teve a confirmação de que ela teve um derrame e teria de ficar internada.

Acácio saiu do hospital indo diretamente a casa de Rodrigues para dizer que aceitava a proposta.

Rodrigues, com sorriso nos lábios, abraçou seu futuro genro e mandou que ele entrasse. Apresentou-o à Leocádia e pediu que a mulher chamasse Lurdinha.

Lurdinha desceu e Acácio descobriu como sua futura esposa era linda. Jeitinho angelical, de menininha. Enquanto Acácio se extasiava com a beleza de Lurdinha, Rodrigues chamou a esposa para subirem e deixar os dois a sós para se conhecerem.

Acácio sentou-se com Lurdinha e perguntou se estava tudo bem com ela. Lurdinha com os olhos abaixados respondeu que sim e perguntou se era ele seu noivo. Acácio respondeu afirmativo e perguntou se a menina concordava com aquela situação.

Lurdinha sem olhar Acácio respondeu.

– Sim, o pai de meu filho não pode assumir a criança. Então eu concordo.

Acácio perguntou quem era o pai de seu filho e Lurdinha respondeu.

– O demônio.

Acácio ficou impressionado com aquele papo com Lurdinha e em casa conversava com Carlinhos sobre não ter certeza se aquela era a decisão certa. Carlinhos respondia que sim, era menina de família, com dinheiro e, pelo que Acácio respondeu, linda.

Acácio argumentou que ela era louca e Carlinhos revidou que um dia se fosse o caso ele a internava ou se separava dela, mas para isso ele devia exigir comunhão total de bens. Naquele instante Dorinha chegou ao apartamento de Acácio e Carlinhos contou que precisava ir embora.

Acácio chamou a moça para entrar e sentaram-se. Acácio contou toda a situação a Dorinha, que ouviu a tudo estarrecida.

No fim Dorinha, triste, disse não saber o que fazer ou pensar. Levantou-se para ir embora e Acácio segurou-a pelo braço tentando convencer a moça que só ficaria casado por um período e se separaria, que ela esperasse por ele e fosse sua amante enquanto isso.

Dorinha deu um tapa no rosto de Acácio contando que não era dessas – e foi embora.

Acácio e Lurdinha engataram namoro e Rodrigues deu uma grande festa para celebrar o noivado. Chamou o genro para seu escritório e deu um cheque de cem mil reais para Acácio contando que era seu presente de casamento. Acácio olhava o cheque, nunca vira tantos zeros em sua vida e agradecia ao sogro que se aproximou e bem sério, olhando para ele, disse que queria um favor.

Acácio perguntou qual era e Rodrigues respondeu.

– Quando eu morrer quero ser enterrado com uma bandeira do Fluminense sobre o caixão.

Acácio concordou e Rodrigues abraça o genro cantando o hino do Fluminense acompanhado por Acácio.

O casamento chegou. Primeiro casaram-se no civil com comunhão total de bens – como Acácio queria: faltava o casamento religioso. Toda a nata da sociedade foi convidada. Acácio procurou Dorinha e entregou um convite querendo que ela estivesse. Dorinha com lágrimas nos olhos pegou, agradeceu, mas disse que não iria porque lhe amava.

Acácio aturdido com essa revelação se arrumou e foi para a igreja. Pensava se realmente era o certo. Ele também amava Dorinha e abria mão desse amor por dinheiro. Será que o dinheiro comprava tudo mesmo? Até o amor verdadeiro?

Na casa de Rodrigues o mesmo já partira pro casamento enquanto Leocádia e as costureiras arrumavam Lurdinha. Todas foram para o carro quando Lurdinha pediu para ir ao quarto porque esquecera uma pulseira.

Lurdinha não sabia onde estava a pulseira e revirou o quarto todo – até que achou um par de algemas. Olhou bem aquelas algemas tentando lembrar porque estavam lá e imagens vieram à sua mente.

Uma noite a empregada de casa entregou seus remédios e ela bebeu. Depois Lurdinha não se sentiu bem, estava grogue como se recebera uma super dosagem e despediu-se dos pais para deitar.

Deitou-se em sono profundo e acabou acordando com seu corpo sendo tocado. Ela grogue, sem conseguir ver direito pedia para a pessoa parar até que a tal pessoa pegou as algemas e lhe prendeu. Com as mãos presas, grogue de medicação Lurdinha foi estuprada sem poder reagir, sem gritar, apenas balbuciava “canalha… canalha…”

Ao lembrar-se que balbuciou “canalha” Lurdinha lembrou-se do rosto do estuprador. Deu um grito de pavor e jogou as algemas longe. Foi até o escritório do pai, pegou um objeto e foi para o carro onde sua mãe reclamava da demora.

Acácio, ansioso, já esperava por Lurdinha quando ela entrou na igreja de braços dados com o pai. A menina guardava uma fisionomia tensa enquanto Rodrigues era só sorriso. Chegaram ao altar. Acácio desceu para receber a noiva quando Rodrigues feliz comentou: “cuide bem de minha filha”.

Rodrigues deu um beijo na testa da filha e quando se afastava para ir ao altar Lurdinha pediu: “espere.”

Rodrigues virou-se para a filha, que falou em seu ouvido:

“Canalha! Canalha!” Neste momento tirou um revólver da calcinha e atirou no pai.

Todos se assustaram na igreja e antes que esboçassem qualquer reação Lurdinha colocou o cano da arma na boca, atirando e estourando sua cabeça.

Os convidados entraram em desespero. Era uma daquelas tragédias que ganhariam primeira página nos jornais. Acácio não sabia o que fazer quando sentiu sua perna puxada. Era Rodrigues agonizando, pedindo que o genro abaixasse. Acácio abaixou e Rodrigues falou em seu ouvido: “a bandeira do Fluminense..”.

Rodrigues e Lurdinha morreram e Acácio caminhava na praia pensando em tudo que ocorrera. Era muita coisa para sua cabeça: tantas que apenas muito tempo depois, olhando o mar, lembrou-se que casara no civil com Lurdinha e em comunhão de bens.

Saiu correndo e foi à casa de Dorinha. Tocava a campainha com insistência e a moça assustada abriu e vendo Acácio a sua frente perguntou sem nada entender:

– Você não devia estar se casando agora?

Acácio sorridente respondeu:

– Virei viúvo…

Acácio pegou Dorinha e deu um beijo apaixonado na mulher, tipo de beijo que nem dinheiro compra.

Afinal de contas, beijo de amor não tem preço.

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