Semana de eleição, mais uma vez uma coluna “Samba de Terça” temática. Por isso que, pela primeira vez, repetiremos uma escola de samba sequencialmente em nossa coluna: o Império Serrano.

O ano era 1995. O Presidente Fernando Henrique Cardoso havia acabado de assumir o poder e já empreendia uma forte ofensiva contra os direitos dos trabalhadores, empreendendo uma campanha contra os sindicatos, em especial o dos petroleiros. O hoje Ministro do STF Gilmar Mendes jactava-se de ter “quebrado os sindicatos” como advogado geral da União. Iniciavam-se medidas a fim de estabelecer uma política de compressão salarial e os trabalhadores do Serviço Público e de estatais eram pintados como “inimigos da nação”. Começava um movimento de transferência de renda jamais visto entre o setor produtivo e o financeiro.O Brasil era um país onde a fome ainda era um problema grave. Cerca de 30 milhões de brasileiros aproximadamente sofriam de carências graves de nutrição – em português claro, passavam fome. Outro contingente tinha deficiências sérias de nutrição, com quantidade e qualidade insuficiente. Tanto que meu trabalho de pesquisa na antiga Faculdade de Economia e Administração da UFRJ (hoje Instituto de Economia) foi sobre a modernização conservadora da agricultura, e minha monografia final de curso sobre padrões alimentares.

Destacava-se o trabalho empreendido pela “Ação da Cidadania contra a Foma, a Miséria e Pela Vida”, comandada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Betinho tinha uma história de luta contra o Regime Militar e, posteriormente, pela qualidade dos bancos de sangue nacionais – ele e seus dois irmãos, o cartunista Henfil e o músico Chico Mário, eram hemofílicos e haviam contraído o vírus da Aids em transfusões de sangue sem o necessário controle de qualidade.

O trabalho desenvolvido pela “Ação da Cidadania” – do qual fiz parte por um breve período no final de 1993 – era no sentido de mitigar as deficiências nutricionais das camadas mais pobres e, concomitantemente, desenvolver ações de capacitação e de geração de emprego e renda. Betinho era o líder e o símbolo desta proposta de inclusão. Sua frase era lapidar: “democracia e miséria são incompatíveis”. Mesmo doente, fazia questão de liderar este processo, com outra frase lapidar: “quem tem fome tem pressa”.

Ele também liderou a campanha chamada “Natal sem Fome”, que consistia em arrecadar doações para que todas as famílias brasileiras tivessem o que comer na noite de Natal. Obviamente, com um governo que não possuía o menor compromisso com as classes mais pobres, era um trabalho notável, com pouquíssimo apoio governamental.

O Império Serrano vinha de um desfile desastroso em 1995, com um enredo sobre o tempo. Apesar de um bom samba, a escola tinha fantasias e alegorias muito ruins, e ainda levou o azar de vir após o sensacional – e roubado – desfile da Portela daquele ano, o que criou um efeito de comparação indesejado. Com isso, em um grupo inchadíssimo de 18 escolas, a escola obteve o décimo quinto lugar e somente não foi rebaixada porque caíram apenas duas escolas naquele ano.

Com isso a carnavalesca Lílian Rabelo foi dispensado pelo presidente recém empossado José Marcos dos Reis, mais conhecido como “Marquinhos dos Anéis” – pela quantidade de anéis e penduricalhos que ele utilizava. Para seu lugar, veio um carnavalesco que era “cria” da escola, andara afastado e que estava de volta: Ernesto do Nascimento. Junto com ele também veio Actir Gonçalves, para assinar em dupla o desfile da escola para 1996.

E onde se encontram Betinho e o Império Serrano ?

Ernesto e Actir propuseram o sociólogo e defensor das causas populares como enredo da escola para o ano seguinte, retomando uma antiga tradição imperiana de enredos populares e culturais – que, aliás, o mesmo carnavalesco retomaria em 2002, início de sua última passagem pela escola e cujo desfile já foi tema desta série.

O sociólogo concordou em ser o tema da escola, mas solicitou que a abordagem fosse menos pela sua vida e mais pelo trabalho desenvolvido pela “Ação da Cidadania”, no que foi atendido. O enredo abordaria as lutas populares brasileiras, a luta contra a fome e buscaria dar um grito de alerta contra a miséria e pela cidadania.

Os preparativos para o carnaval foram complicados. O Império Serrano estava em sérias dificuldades financeiras, com dívidas de anos passados e com uma diretoria não exatamente “zelosa” com os limitados recursos da escola – acho que os leitores entendem… Os carnavalescos optaram por um desfile calcado na emoção, com alegorias e fantasias simples, mas diretas. O mote do enredo poderia ser resumido por dois versos do samba: “quem é pobre tá com fome / quem é rico tá com medo”. O título do enredo era tirado de um verso do hino nacional, carregando o tema de simbolismo e de significado político.

Os leitores sabem que sou amigo da família do carnavalesco em questão – o Bruno, filho dele, é um de nossos comentaristas mais assíduos aqui no Ouro de Tolo. Eu acompanhei de perto aquele carnaval, indo frequentemente aos ensaios (saudades da cerveja estupidamente gelada em garrafa…) e vendo as dificuldades para a confecção do carnaval – além da carteirinha que ganhei naquele ano ter sido minha primeira ligação formal com uma escola de samba.

Não havia dinheiro para nada. O que foi para a avenida foi muito superior ao que se esperaria tendo-se em conta os recursos financeiros de que dispunha a agremiação. Para o amigo ter uma idéia, Jorginho do Império, o grande cantor, foi o puxador da escola, cantando de graça, pois o Império não dispunha de recursos para pagar um puxador.Ainda assim, o belíssimo samba caiu nas graças do povo, e toda a mídia gerada pelo enredo traziam uma boa expectativa para o desfile da escola. O homenageado a princípio não desfilaria, por estar com a saúde abalada, mas de acordo com a sua biografia – “Betinho: Sertanejo, Mineiro, Brasileiro”, infelizmente, ao que parece, esgotada – seu médico particular autorizou a participação no desfile alegando que o benefício da ‘injeção’ de reconhecimento e aplauso seria mais benéfico que o desgaste físico causado por sua presença.

Antigamente havia uma regra dando conta que as escolas classificadas imediatamente antes das rebaixadas seriam as segundas escolas a desfilar, tanto no domingo quanto na segunda feira. Com isso, o Império Serrano seria a segunda escola a desfilar na noite de 19 de fevereiro de 1996, uma longa noite de desfile com nove escolas. A escola logo cativou os espectadores na Marquês de Sapucaí. À medida que as alas passavam, o clima de emoção e a garra de seus componentes contagiavam os público e faziam a Passarela cantar. Víamos sem terra, víamos o combate à fome, víamos a luta de Betinho nas fantasias e alegorias e nos rostos e fantasias dos componentes.

Eis que, no último carro, vestido de branco, surge o homenageado. Frágil e ao mesmo tempo forte, emanando uma aura de fortaleza, solidariedade e compaixão, era o “grand finale” de um desfile apoteótico. Caros leitores, eu estava lá e vi: todo mundo chorou. À passagem do homenageado as pessoas se emocionavam e caíam no choro emocionadas, em uma torrente de emoções e de sentimentos que só quem gosta das escolas de samba pode explicar. Eu também chorei, antes que me perguntem.

O curioso é que não deveria ter assistido ao desfile ao vivo aquele ano, porque iria passar o carnaval de 1996 no Guarujá – eu tinha uma “paquera” por lá à época. Até hoje não conheço a cidade paulista, mas acho que me arrependeria amargamente se não tivesse visto ao vivo esta catarse de emoções – na prática, o “canto do cisne” de Betinho, que morreria no ano seguinte. A grande festa da solidariedade e da compaixão.

Apesar da simplicidade – e alguns problemas de acabamento – de alegorias e fantasias, e da perda de voz do puxador durante o desfile, a verde e branco da Serrinha saiu da passarela como muito cotada a ocupar uma das cinco vagas do Desfile das Campeãs – à época eram somente cinco escolas que desfilavam, porque as duas campeãs do Grupo de Acesso abriam o desfile. O prognóstico era de que a escola poderia ocupar o terceiro lugar, após apenas as favoritas Mocidade Independente e Imperatriz Leopoldinense.

Entretanto, a escola na abertura dos envelopes dos jurados obteve apenas o sexto lugar, com 294 pontos. Curiosamente, nunca mais o Império sequer repetiu esta colocação na história dos desfiles – o oitavo lugar em 2006 foi o melhor resultado desde então. Uma pena não termos visto o repeteco no Desfile das Campeãs. Outra injustiça foi a não conquista do prêmio Estandarte de Ouro de Melhor Samba Enredo, que, inexplicavelmente, foi para o samba da Imperatriz do qual ninguém se lembra hoje em dia.

Vamos à letra do samba, com versos fortes, poéticos e absolutamente adequados. Durante muito tempo me utilizei dele em minhas aulas de Economia e Agricultura que ministrava nos cursos da Igreja Messiânica.

Autores:
Aluísio Machado, Lula, Beto Pernada, Arlindo Cruz e Índio do Império

O povo diz amém
É porque tem
Um ser de luz a iluminar
O moderno Dom Quixote
Com mente forte vem nos guiar
Um filho do verde esperança
Não foge a luta, vem lutar
Então verás um dia
O cidadão e a real cidadania

Quero ter a minha terra
Meu pedacinho de chão, meu quinhão
Isso nunca foi segredo
Quem é pobre tá com fome
Quem é rico tá com medo

Vou dizer …
Quem tem muito, quer ter mais
Tanto faz se estragar
Joga lixo no chão, tem bugica pra catar
Senhor, despertai a consciência
É preciso igualdade
O ser humano tem que ter dignidade
Morte em vida, triste sina
Pra gente chega de viver a Severina
Junte um sorriso meu, um abraço teu
Vamos temperar
Uma porção de fé, sei que vai dar pé
Não vai desandar
Amasse o que é ruim, e a massa enfim
Vai se libertar
Sirva um prato cheio de amor
Pro Brasil se alimentar

Eu me embalei, pra te embalar
No balancê, balancear, vem na folia
Chegou a hora de mudar
O meu Império vem cobrar democracia

O curioso é que, hoje, podemos considerar que a fome é uma questão senão superada, atualmente menor, não constituindo a gravidade que havia em 1995/96. Logicamente ainda temos bolsões de miséria absoluta, mas para os leitores terem uma idéia o “Natal sem Fome” se redirecionou à obtenção de livros e brinquedos. Sem dúvida alguma, o país melhorou muito sob este aspecto, fruto das políticas de transferência de renda e de geração e criação de empregos.

 

2 Replies to “Samba de Terça – "Verás que Um Filho Teu Não Foge à Luta"”

  1. Foi um ano difícil para muitos mas O Império com pouco dinheiro e muita garra (característica desse sofrido povo brasileiro) desfilou sua glória e apresentou a luta de um brasileiro que jamais será esquecido.

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