[leia a primeira parte aqui ]

Assim que o caboclo do Manoelzinho chegou, com urros impactantes de bugre, a Dona Alcione – que nutria pela mediunidade do marido uma mistura de respeito e temor – estendeu as mãos espalmadas à frente e abaixou levemente a cabeça em forma de reverência. Todos os que assistiam a cena fizeram o mesmo gesto.

A entidade indígena continuou gritando por uns cinco minutos. Nesse espaço de tempo a fila de gente para tomar passes se formou e os palpites sobre que caboclo era aquele começaram. A lista de possibilidades era enorme: Seu Tupiara, Seu Tupaíba, Seu Aimoré, Caboclo Roxo, Seu Sete Flechas, Seu Cachoeirinha, Seu Tupinambá, Caboclo Lírio, Seu Junco Verde, Seu Rompe Mato, Seu Peri, Caboclo Sultão das Matas, Seu Mata Virgem, Seu Sete Pedreiras… houve quem apostasse até num boiadeiro, apesar da pinta de bugre com que a entidade se apresentou.

O Nilton, cumprindo com a maior seriedade as funções de cambono, aproximou-se do índio e fez a clássica pergunta:

– Qual é a sua graça, meu pai? O senhor quer dizer o seu nome aos filhos de Zâmbi? Quer riscar seu ponto com a pemba de fé?

O caboclo murmurou alguma coisa incompreensível. O Nilton se aproximou e o índio cochichou algo ao cambono, que anunciou ao povo:

– Ele disse que se chama Seu Cacique de Ramos.

Meu avô retrucou na lata, com a habitual elegância da gente de Guararapes :

– Não sacaneia, Nilton. Seu Cacique de Ramos? Não fode que isso nunca foi caboclo nem aqui nem na casa do caralho.

Na mesma hora o índio se ofendeu, deu um berro enfurecido, começou rodopiar feito doido e deu flechadas imaginárias em todo mundo, com cara de puto dentro da tanga. Alguém sugeriu cantar um ponto pra acalmar a entidade. Mas qual? Uma voz desconhecida mandou de prima: Sim, é o Seu Cacique de Ramos/ Planta onde em todos os ramos/ Cantam os passarinhos da manhã… O caboclo gostou e ficou mansinho.

Dona Alcione, nessa altura do campeonato, só queria que o índio fosse oló para retomar os planos do carnaval em Araruama. O bugre, então, pediu silêncio e anunciou:

– Caboclo só vai deixar cavalo na quarta-feira de cinzas. Num sobe antes, que caboclo vai salvar seus filho de Aruanda na fé de Zâmbi. Caboclo veio traze axé de pemba no carnaval.

– Não faz isso, meu pai. Seu cavalo tem que viajar. Retrucou o cambono.

Seu Cacique de Ramos não quis conversa. Armou uma beiçola enfurecida, enrugou a testa, cruzou os braços e balançou a cabeça em forma de negação. E arrematou:

– Mulé de cavalo vai, que caboclo não quer ver mulé triste. Caboclo fica com cambono nas encruzas. Caboclo vai fazê trabalho forte, vai riscá ponto em mil e duzentas esquinas e depois vai embora. Ordem de Zâmbi. E caboclo quer cocar e tanga!

Dona Alcione fez de tudo para demover a entidade. Chorou, ameaçou se separar do cavalo, duvidou da mediunidade do marido, se arrependeu da dúvida, pediu desculpas ao Seu Cacique, acabou tomando passe e o escambau. Ficou até comovida quando a entidade disse algo como meu cavalo ama muito mizifia e acabou partindo para Araruama com a trupe. O Nilton prometeu cambonar Seu Cacique de Ramos enquanto ele estivesse na terra. Meu avô, muito sério, disse também que ia comprometer o próprio carnaval para ser o cambono assistente.

Do jeito que Seu Cacique veio, ficou. Ficou e cumpriu a promessa – durante os dias de carnaval trabalhou duro, percorreu mil e duzentas esquinas com a pemba de fé – de cocar e tanga em vermelho, preto e branco – bebeu marafo e cerveja na cuia da jurema, comeu feijoada para louvar Seu Ogum Beira Mar, fumou charuto e bateu o recorde de passes nas filhas de pemba em toda a história da Aruanda. Foi oló na quarta feira de cinzas, depois de cumprir com êxito sua missão de paz na terra.

9 Replies to “UM MÉDIUM NO CARNAVAL – CONCLUSÃO”

  1. ERNESTÃO, a pemba é um objeto sagrado utilizado em rituais de umbnanda e encantaria. Ela é feita a partir da mistura do caulim [argila de cor branca], com água. Vira uma espécie de giz, que é utilizado para se riscar pontos [símbolos sagrados]e fazer outros babados. Marafo é a cachaça de Exu.

    Abração

  2. Luiz Antonio, depois do lançamento do dia 3, que tal pensar num romance incluindo dona Saquarema Marta, Manoelzinho Motta e outros suburbanos de boa pipa? Os personagens merecem.

    Abraço.

  3. Simas que máximo, arrumaram um Caboco do Cacique! Que crueldade cantar Doce Refúgio pra este cacique, aí é que ele não ia oló nem brincando. Suas histórias são fantásticas! Bjs!

  4. Porra Mestre, um detalhe do texto me fez lembrar de minha infância.
    Meu pai (saudades velho!) me levava pra receber passes de Seu Cachoeirinha no Centro de sua mãe-de-santo (dona Bambália) no Morro do Pinto em Santo Cristo. Recebi muita benção por lá.

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