[Originalmente publicado, de forma reduzida e sem a imagem do milagre, no Histórias do Brasil]
Minha família é, quase toda, chegada numa curimba. O que tem de macumbeiro não está no gibi. Fui criado pela minha avó, mãe de santo de um terreiro no Jardim Nova Era, em Nova Iguaçu, onde o coro comia quase todo sábado – com muita festa de encantaria e toque pros orixás [escrevi sobre essa infância na macumba aqui ].
Disse que quase toda família era do babado mas, em nome da verdade, preciso destacar que minha tia-avó , Dona Lita, era exceção. Católica fervorosa – de rezar o terço e assistir na sessão da tarde de todo dia 13 de maio um filme velho pra burro sobre o milagre de Fátima – queria porque queria que todas as crianças fizessem primeira comunhão e crisma.
Lembro, por exemplo, quando a tia tentou me ensinar a música tema do filme Marcelino Pão e Vinho e não se conformou quando eu disse que preferia cantar Perereca da Vizinha e Araruta, com o bunda bunda toma limonada pra cagar de madrugada no final.
A boa tia Lita também ficava chocada todo Natal, diante das porrancas formidáveis que meu avô tomava para comemorar o nascimento do menino Jesus. O dever de todo homem de bem, segundo ela, era estar com a família na missa do Galo, enquanto o vô preferia mandar bala na cana.
Parêntese: O argumento do velho para encher a caveira era teológico e infalível: Cristo, nas Bodas de Canaã, transformou água em vinho. Me aponte uma página da Bíblia em que ele tenha transformado vinho em água. E não havia como demover o Seu Luiz Grosso dessa convicção profunda – a de que o Filho do Homem era chegado nuns birinaites.
Fechado o parêntese, retomo o mote: A minha tia Lita era o clássico exemplo de beata. Suspeito até que fosse, e escrevo isso com o maior carinho, cabaço. Com todo respeito.
Qual não foi, portanto , minha surpresa com uma cena ocorrida durante a Copa do Mundo de 1978, envolvendo essa minha tia. Aos fatos.
Jogavam Brasil e Espanha. Jogo duro, o gramado mais parecendo um pasto, meu avô desfilando um repertório de palavrões contra o Coutinho -técnico do escrete -, quantidades industriais de cerveja, caldinho de feijão e, para quebrar o clima profaníssimo, tia Lita rezando o terço, pedindo aos céus pelo sucesso canarinho.
Segundo tempo, zero a zero nervoso, o Brasil sendo vergonhosamente pressionado, quando uma bola é alçada na nossa área. O Leão sai do gol catando borboletas e a bola sobra, cristalina , nos pés do centroavante adversário.
O espanhol se prepara para o arremate, num lance inapelável, com o goleiro batido. Subitamente, como num milagre, surge o Amaral, nosso zagueiro, que , postado debaixo do travessão, salva a nossa cidadela.
Meu avô ameaça infartar. Meu irmão faz, literalmente, cocô nas calças. O Manoelzinho Mota, aos prantos, repete – não entrou, não entrou. Minha vó faz breve comentário: Esse até eu faria. E minha tia, a beata, joga o terço pro alto e grita :
– Foi ele! Foi ele! Obrigado. Obrigado.
Eu, ainda sob efeito do lance, fiz a pergunta:
– Ele quem, tia Lita, Jesus Cristo?
– Que Jesus Cristo, menino. E Jesus Cristo quer lá saber de jogo? Jesus Cristo porra nenhuma.
– Quem foi então?
– O Exu Tranca Rua, é claro!
Meu avô quase infartou de novo:
– Foi quem, Lita?
– Seu Tranca Rua. Eu vi Seu Tranca Rua do lado da trave, protegendo o gol do Brasil. Eu vi!
E, dizendo isso, a velha começou a cantar, acompanhada, sem sacanagem, por todo mundo:
Seu Tranca Rua é homem
Promete pra não faltar
Catorze carros de lenha
Pra cozinhar gambá
A lenha já se acabou
E a gambá
Tá pra cozinhar
Senhoras e senhores, não estou mentindo, que eu não vou brincar com Seu Tranca nem a pau. A minha velha tia, beatíssima, afirmou de fato, com convicção, que Exu Tranca Rua tinha defendido a seleção brasileira.
Meu avô, impressionadíssimo, repetia :
– É coisa séria. É coisa séria. Traz um copo de cachaça pra botar do lado da televisão.
O Manoelzinho Mota, devoto do Homem da Rua, afirmava com absoluta certeza que Seu Tranca tinha baixado no Amaral, o zagueirão.
O fato é que o Brasil, com um zagueiro desse porte, não levou gol naquele jogo.
No dia seguinte, minha tia voltou a rezar o terço, me chamou num canto e disse a mesma lenga-lenga de sempre:
– Você tem que aprender a rezar, menino. Não vai atrás dessa família, não, que macumba não dá camisa a ninguém. Só existe uma verdade, Jesus Cristo.
Sem entender patavinas, perguntei pra velha:
– Mas tia, e Seu Tranca Rua?
E ela, de bate-pronto, na base do esporro:
– Lava essa boca, menino, que isso não existe! Fica andando com macumbeiro e dana de falar besteira.
Brasil-sil-sil !
O lance que originou o furdunço, o milagre de Amaral e do seu Tranca, é esse:

Saravá

7 Replies to “SEU TRANCA RUA, O ZAGUEIRO – A PROVA DO MILAGRE”

  1. Lula tia Lita andava com o terço realmente,empregava a religião catolica e frequentava a igreja da Gloria, vivi com ela após a subida de papai, você sabia que ela nunca largou um bonequinho (diabinho com chifre e tudo)de arame envolvido com lã preta e vermelha que ela chamava de Traca Rua, ela pedia para quando desencarnar-se queria levalo com ela na mão esquerda, e assim foi feito por Beta e Sandra. Na realidade eu sempre acreditei que ela era a maior devota de Tranca Rua.

  2. Gente, fala serio, esse Blog e’ uma delicia!!! Nao perco um so’ post, de jeito nenhum … devota fiel. Grande tia Lita! Abracos, professor.

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