(Maurício Neves de Jesus é escritor, professor universitário e advogado. Nasceu no dia 7 de abril de 1973, pouco antes de o Flamengo enfrentar a Portuguesa no Maracanã. Zico estava no banco e, quando entrou no jogo, Maurício nasceu. Ele não acredita em coincidências e nem no Facebook.)

O romantizado ano em que o Flamengo em dezembro botou os ingleses na roda não teria acontecido sem Domingo Bosco, o aparador de arestas. Enquanto o time demorava a engrenar, a ponto de a revista Placar sacramentar que era o fim do “ciclo de glórias”, com a manchete em dramática caixa alta: CAIU UM IMPÉRIO.

O texto assinado por Marcelo Rezende, que anos antes do “corta pra mim” era um notável repórter esportivo, relatava um torcedor queimando a camisa de Tita e encerrava de modo preciso: “Resta ao Flamengo reerguer seu império desmoronado”.

“Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós estão olhando para as estrelas”, poetizou Oscar Wilde. Era o que fazia Domingo Bosco naquele mês de abril. Ao ser questionado pelos radialistas o que Flamengo precisava para sair da crise, sorriu e disse: “Pequenos ajustes”.

Ante a perplexidade, vaticinou: “Este time é cheio de craques. A maior constelação desde o Santos de Pelé. Quem disse que é ruim o Tita querer o lugar do Zico? Só um grande craque pode querer isso. A receita já existe. A seleção de 1970 saiu do Brasil em crise. É só encontrar o jeito de os craques jogarem juntos e felizes. Desde quando é problema ter muitos craques? O problema no futebol é o perna-de-pau”.

Dentre os pequenos ajustes, a troca de Dino Sani por Carpeggiani. O time que já havia demonstrado no quadrangular de Nápoles que era world class entrou na forma para se tornar world champion.

O choro de Bosco após o apito final em Tóquio era pura felicidade. Não era um desabafo de quem sabia dos bastidores e das desavenças, não era um a resposta para quem havia duvidado publicamente do seu trabalho, não era nada além de amor por aquele time, aquelas cores, aqueles craques. Era Domingo Bosco em estado puro, tão cheio de vida que até hoje é difícil acreditar que em um pouco mais de um ano ele estaria morto.

Ainda sob a supervisão e sobre o caminho sólido pavimentado por Bosco, o Flamengo foi campeão brasileiro em 1982 assinando páginas memoráveis do futebol brasileiro. Venceu duelos contra o São Paulo de Serginho, o Corinthians de Sócrates, o Inter de Mauro Galvão, o Santos de Chicão, o Guarani de Jorge Mendonça e o Grêmio de Leão.

O Flamengo chegou ao Olímpico duas horas antes da final. O primeiro a entrar no vestiário foi Bosco, para examinar todos os detalhes. Aparentemente tudo certo, mas sob a mesa repousava um enorme bule azul, com café fresquinho, oferecido pelo Grêmio.

Excesso de cautela ou não, o café foi descartado e Bosco substituiu o bule pelas térmicas trazidas do hotel, com o café feito sob sua supervisão. Depois do jogo, na euforia do título, ele fez um anúncio quase tão festejado quanto o gol de Nunes: dez dias de folga para todos. Merecido descanso para um time que entregou tanto, sendo desafiado a cada rodada sob a pergunta “quem pode parar os campeões mundiais?”

Na volta para o trabalho, apenas alguns amistosos. A bola de verdade só voltaria a rolar três meses mais tarde, após a Copa da Espanha, com o campeonato estadual. Havia um clima de estranheza no país do futebol, uma tristeza que demorava a dissipar após a derrota para a Espanha. Talvez por isso tenha se demorado a perceber que alguma coisa não ia bem com Domingo Bosco. Abatido, fadiga aparente, dores nos braços, o lenço branco a secar da testa o suor febril. Era a endocardite desprendendo coágulos da válvula mitral, disparando êmbolos que viajavam pela corrente sanguínea.

No começo da tarde de 7 de dezembro de 1982, um dia após a perda do estadual para o Vasco, Bosco concedeu entrevista na Gávea para afastar os rumores da substituição de Carpegiani por outro treinador. “Ele sabe tudo de futebol, e depois de Coutinho é o melhor com quem eu trabalhei. Um pequeno tropeço não atrapalha nada. Ele fica, e junto seremos de novo campeões brasileiros em 1983”.

O conteúdo era enfático como sempre, mas as olheiras, a respiração ofegante e os nove quilos a menos já não podiam ser atribuídos ao desgaste da perda do bi da Libertadores. À noite, ao invés de ir para a cerimônia de casamento de Tita, Domingo Bosco foi internado para retirar um coágulo que obstruía a artéria braquial.

O procedimento foi bem-sucedido. De volta para casa, Bosco descumpriu as ordens de repouso absoluto. Ouvia o noticiário, lia os jornais e, pelo telefone, tentava articular o Flamengo de 1983.

Porém, na noite de 19 de dezembro uma dor de cabeça crescente o fez parar. Recusou-se a ser internado. “Ele estava certo de que o coágulo desta vez estava alojado no cérebro e que não havia nada a fazer”, disse o vice-presidente do Flamengo, Adoniran Araújo. A manchete da capa do caderno de esportes do Jornal do Brasil de 21 de dezembro trouxe a notícia que os rubro-negros se recusavam a acreditar: Trombose cerebral mata o supervisor Bosco.

Pouco se fala dele, diante da importância que teve. Se Zico e Junior nunca tiveram sucessores à altura, Bosco também não. A obsessão por detalhes de Jorge Jesus, 37 anos depois, faz aumentar a saudade de Bosco. Chego a imaginar que ele gostaria de ver este Flamengo de 2019, com um técnico detalhista e um punhado de craques. Mas não sei se esse futebol cheio de aspones, zonas mistas e chuteiras coloridas o agradaria. Talvez sim, eis que era um homem a frente de seu tempo.

Jamais saberemos. Aos 51 anos, Domingo Bosco deixou chorosos a viúva Eli, os filhos Eduardo e Elaine, o neto Rodrigo e mais trinta milhões de rubro-negros, para ir ao encontro de Cláudio Coutinho.

O homem responsável por tantos domingos perfeitos foi velado na sede do Morro da Viúva, com a faixa de campeão do mundo sobre o peito. Afinal, vivo ou morto, ele não era um Domingo qualquer.