Voltando à tradição da série, fecharemos a Justificando o Injustificável com o quesito Enredo. Gosto de encerrar as séries com este quesito pois com a extinção do quesito conjunto este é o que mais se aproxima de julgar o desfile em sua completude.

Também é bom lembrar que este quesito também é dividido em dois sub-quesitos: concepção e realização, ambos variando entre 4,5 e 5 pontos.

Módulo 1/2

Julgador: Johnny Soares

  • Império – 9.6 (concepção 4.8 e realização 4.8)
  • Viradouro – 10
  • Grande Rio – 9.8 (concepção 4.9 e realização 4.9)
  • Salgueiro – 10
  • Beija-Flor – 9.8 (concepção 4.8)
  • Imperatriz – 9.7 (concepção 4.8 e realização 4.9)
  • da Tijuca – 10
  • São Clemente – 9.8 (concepção 4.9 e realização 4.9)
  • Vila Isabel – 9.9 (concepção 4.9)
  • Portela – 10
  • Ilha – 9.8 (concepção 4.8)
  • Tuiuti – 9.8 (realização 4.8)
  • Mangueira – 10
  • Mocidade – 9.9 (realização 4.9)

Johnny já teve uma mega polêmica em 2014 quando cometeu um erro matemático na nota do Império da Tijuca, depois teve cadernos muito complicados nos anos seguintes. Esse ano não é diferente e há algumas justificativas complicadas.

Começo com o Império Serrano. O julgador descontou um décimo em concepção porque “a ordenação das alas no setor 2 demonstra um certo equívoco ao colocar o ‘Islamismo’ (ala 03) anterior ao ‘Cristianismo’ (ala 06), quando, historicamente, tal religião é posterior a esta última”.

É a velha mania dos julgadores em querer exigir ordem cronológica sem justificativa. Ele julga apenas o desenvolvimento teórico apresentado pela escola, a densidade cultural, a clareza e coerência na roteirização do desfile.  

Ou seja, só se pode exigir cronologia onde ela realmente influa no argumento do enredo. Lendo a sinopse do Enredo do Império disponibilizada no abre-alas fica claro que a intenção do setor religioso é apenas apresentar, descrever, demonstrar as diferentes teorias, lendas, preceitos ou ideologias de cada religião para tentar explicar a existência humana.

Se a ideia é apenas apresentar, qual é a diferença para o argumento do enredo em colocar o islamismo na frente do cristianismo ou o budismo atrás de ambas? Absolutamente nenhuma, até porque as filosofias, eu diria até teologias, trazidas pela escola no Livro Abre-Alas para explicar o islamismo e o cristianismo nada tem a ver uma com a outra. São duas religiões de bases bastante diferentes. Portanto a não observância da ordem cronológica de surgimento nesse caso, em nada atrapalhou o desenvolvimento do enredo da escola e não poderia ser despontuado. Pior: por esse critério, o budismo e o judaísmo também são muito anteriores ao islamismo e sequer foram citadas na justificativa.

Já na São Clemente, ele descontou a escola por um mero achismo. Pior, um achismo infundado. Segundo o julgador “… a ala 13 (‘A Rainha paga para reinar’) parece deslocada na roteirização tendo feito mais sentido na narrativa se viesse após a ala 08 ‘Quer pagar quanto’, já que ambas conjugam da mesma proposta”.

Só que as alas não comungam da mesma proposta e isso está claro na descrição de ambas as alas no Livro Abre-alas. A ala 08 mostra a mercantilização do carnaval, a cobrança de preços altos para os ingressos da Sapucaí e o afastamento do povão da passarela de desfiles por conta disso (além de mencionar a inacreditável anacronicidade da LIESA de ainda exigir fax para pedidos de camarote e frisas), logo ela está muito bem posicionada junto com os dirigentes poderosos e a imprensa, exatamente entre as alegorias “Nosso povão ficou fora da jogada” e “Hoje o samba é dirigido com sabor comercial”.

Já a ala 13, por mais que tenha uma leve pegada do “dirigido com sabor comercial” da alegoria que logo a antecede, tem muito mais a ver com a vaidade dos carnavalescos e destaques. Mais exatamente o fato de que as rainhas pagam pelo posto simplesmente para ganhar espaço na mídia e fazerem suas carreiras pessoais em cima da escola, muitas vezes não fazendo a menor da ideia do que é o carnaval ou o que são as escolas de samba. Justamente por isso, essa ala está entre a alegoria 03 já citada e a 04 “Carnavalescos e destaques vaidosos”. Afinal, na prática a rainha de bateria também é um destaque da escola.

Já na Tuiuti ele tirou um décimo de realização pois “…alegorias 03 e 05, pouco criativas e com impacto visual/comunicacional aquém das apresentadas em outros setores”. Realmente criatividade está nos critérios do quesito, mas do ponto de vista de contar o enredo, não na formulação da alegoria, como parece na justificativa. Impacto visual também não deve ser julgador em Enredo, mas em Alegorias e Adereços, cabendo ao julgador de enredo julgar apenas a comunicação do enredo.

Mesmo na comunicação, não foi gasta uma palavra sequer em descrever os problemas comunicacionais gerados pelas alegorias, o que deixa a justificativa solta, parecendo o “motivo qualquer” para descontar décimo. Além disso eu pergunto: como então justificar o 10 da Viradouro em enredo? É quase unanimidade que a comunicação da argumentação do enredo da Viradouro foi bem inferior à da Tuiuti.

Para finalizar, ele descontou a Mocidade por “… o desfile careceu de maior ousadia, criatividade e apuro estético nas alegorias 05 e 06, configurando-se um desfile um tanto monótono e desigual.” Mais uma vez ele flerta demais com uma justificativa de Alegorias e Adereços e não de Enredo pelos motivos já explicados.

Como disse acima, esse julgador teve uma enorme polêmica em 2014, um caderno apenas razoável em 2015, um caderno absolutamente desastroso em 2016, em 2017 foi reserva (por isso não podemos saber como foi), outro caderno complicado em 2018 e mais esse caderno altamente complicado em 2019. O que ele ainda está fazendo no corpo de julgadores?

Retomando minha crítica/sugestão dada ao fim de Evolução esse ano, duvido que um “acadêmico” do samba faça um caderno pior que esse. Muito provavelmente um Simas faria algo muito melhor.

Módulo 3

Julgador: Pérsio Gomyde Brasil

  • Império – 9.8 (concepção 4.8)
  • Viradouro – 10
  • Grande Rio – 9.9 (concepção 4.9)
  • Salgueiro – 10
  • Beija-Flor – 9.8 (concepção 4.9 e realização 4.9)
  • Imperatriz – 9.8 (concepção 4.9 e realização 4.9)
  • da Tijuca – 10
  • São Clemente – 10
  • Vila Isabel – 10
  • Portela – 9.9 (concepção 4.9)
  • Ilha – 9.9 (concepção 4.9)
  • Tuiuti – 10
  • Mangueira – 10
  • Mocidade – 10

Pérsio é um julgador altamente experiente e conceituado. Por mais um ano, teve um bom julgamento com justificativas muito bem explicadas e pertinentes. Infelizmente minha única dúvida não poderei tirar pois a nota máxima não é justificada: qual coesão ele viu no enredo da Viradouro para dar nota 10 (como todos os outros julgadores) em um enredo que não ficou claro para nenhum “mortal” que assiste a folia?

Módulo 4

Julgador: Artur Nunes Gomes

  • Império – 9.7 (concepção 4.9 e realização 4.8)
  • Viradouro – 10
  • Grande Rio – 9.9 (concepção 4.9)
  • Salgueiro – 10
  • Beija-Flor – 9.8 (concepção 4.9 e realização 4.9)
  • Imperatriz – 9.8 (concepção 4.9 e realização 4.9)
  • da Tijuca – 10
  • São Clemente – 9.8 (concepção 4.9 e realização 4.9)
  • Vila Isabel – 10
  • Portela – 10
  • Ilha – 9.9 (concepção 4.9)
  • Tuiuti – 9.9 (concepção 4.9)
  • Mangueira – 9.9 (realização 4.9)
  • Mocidade – 10

Escrevo neste módulo por mera oportunidade, mas fiquei impressionado que todos os quatro julgadores tiraram décimo da Grande Rio pelo mesmo motivo: o Enredo queria mostrar que a educação acadêmica seria a solução para os problemas de falta de educação mostradas no desfile.

Porém a educação nesse sentido formal em nada altera a tendência da falta de modos. Creio que esse desconto unânime mostra bastante o momento que o país vive; afinal temos mostras da falta dessa correlação todos os dias, especialmente nos noticiários.

Nesse sentido também noto a despontuação de todos os julgadores de enredo ao deslocamento da alegoria 4 da Imperatriz (A Bolsa de Valores) que, realmente, deveria estar no setor 4 e não no setor 5; à falta de apresentação de Rachel de Queiroz e José de Alencar na Ilha e à falta de entendimento da alegoria 2 da Beija-Flor (A Raposa e as Uvas). Neste último caso também todos os julgadores de alegoria também despontuaram tal problema.

Já na São Clemente ele também este julgador despontou o pretenso deslocamento da ala 13 (A Rainha Paga pra Reinar). Já escrevi bastante sobre isso no primeiro julgador deste quesito e refaço aqui a mesma crítica.

Na Tuiuti, ele despontuou o excesso de referências a cidade de Fortaleza, “o que promove um hiato na narrativa, fazendo com que o subtema se imponha sobre o tema central, a saga do bode ioiô”.

Só que o bode Ioiô está no âmago do folclore fortelezense e toda a lenda do bode envolve vários pontos da cidade de Fortaleza e sua história. É difícil falar do bode e não fazer muitas referências à Fortaleza. Mas essa é uma justificativa pertinente ao quesito e faz parte haver diferentes visões subjetivas em alguns pontos.

Por fim, ainda admitindo a liberdade da subjetividade aqui também, a justificativa para o desconto do enredo da Mangueira é polêmico: “A proposta… tem em alguns momentos, sua materialidade comprometida pelo exagero no tom de denúncia, utilizando linguagem visual antagônica, muitas vezes, ao espírito carnavalesco. Exemplo disso são as representações iconográficas presentes na alegoria n° 02, onde caveiras ensanguentadas ocupam parte considerável dela, sob o pretexto de denunciar o ‘genocídio indígena no Brasil’ e na alegoria 05 que trouxe ‘corpos mortos’ sendo pisoteados por homens que representavam o Padre Anchieta e o Duque de Caxias.” [1]

O enredo da Mangueira foi feito para denunciar, foi feito para desconstruir, foi feito para mostrar o “outro lado que não nos contam”. Como fazer isso sem iconografias que chocam? O resultado do desfile fala por si e, creio, as outras 3 notas 10 para a escola no quesito (e no desfile inteiro com 270 pontos exatos) também.

Um bom caderno apesar de algumas possíveis polêmicas.

Módulo 5/6

Julgador: Marcelo Antônio Masô

  • Império – 9.8 (concepção 4.8)
  • Viradouro – 10
  • Grande Rio – 9.9 (concepção 4.9)
  • Salgueiro – 10
  • Beija-Flor – 9.9 (concepção 4.9)
  • Imperatriz – 9.8 (concepção 4.9 e realização 4.9)
  • da Tijuca – 10
  • São Clemente – 10
  • Vila Isabel – 9.9 (concepção 4.9)
  • Portela – 10
  • Ilha – 9.9 (concepção 4.9)
  • Tuiuti – 10
  • Mangueira – 10
  • Mocidade – 10

Outro julgador que adora escrever. De início, uma ligeira curiosidade: o julgador escreveu “a Império Serrano” na justificativa por duas vezes. Normalmente a escola é referida com o artigo masculino.

Quanto às justificativas, apenas ressalto que o mesmo foi o único a achar um erro histórico no enredo da Imperatriz: o mesmo no setor 2 afirma que as primeiras moedas foram cunhadas na região da Lídia “no século VII”. Tal versão está registrada nas alas 03 e 04 do desfile. Porém há relatos de moeda quase mil anos antes dessa moeda da Lídia. O julgador relata as ‘moedas faca” chinesas, que inclusive estão expostas no CCBB do Rio de Janeiro. Acrescento que há outros metais como reserva de valor ainda na época do Crescente Fértil.  

O que se conceitua ter surgido na Lídia é a moeda circular com cunhagem real. Isso a justificativa do enredo não conta. Mas, o pior de tudo é que a Imperatriz esqueceu de acrescentar o “a.c” logo após o século VII no abre-alas. Ou seja, passou para os julgadores que a moeda só fora criada na Idade Média, quando na verdade ela teria sido criada em 600 ANTES DE CRISTO.

Ou seja: um esquecimento de duas letrinhas fez a data ser deslocada por mais de um milênio no tempo e provavelmente criou um desconto desnecessário por um erro na feitura do Livro Abre-Alas. Mais um para o vasto arsenal de erros bobos de Livro Abre-alas que a Imperatriz coleciona nas quatro edições desta série.

Na Vila Isabel, assim como Johnny Soares, despontuou de forma bastante pertinente o enredo da Vila Isabel por inverter a ordem cronológica entre a Proclamação da República (1889) e a Abolição da Escravatura (1888), sendo que esta última foi o setor que encerrou o desfile. Diferente do enredo do Império Serrano, este sim sempre pretendeu ser um enredo histórico e a inversão dos setores atrapalhou a argumentação do mesmo e o entendimento do enredo pelo público.  

De resto foi um excelente caderno, mas usando justificativas bastante pertinentes e que já foram relatadas nos três módulos anteriores, portanto deixo de comentá-las aqui. Só faço a mesma ressalva de todos os outros 3 julgadores sobre o 10 da Viradouro.

Apesar de ainda haver alguns problemas, especialmente no primeiro julgador, é inegável a evolução do julgamento do quesito Enredo. Não houve esse ano descontos ridículos e infundados for “falta de setorização”, “falta de síntese do setor na alegoria” ou erro no entendimento da setorização proposta pela escola como ocorreu a esmo no ano do São Jorge da Estácio. O quesito, de forma geral, premiou os melhores enredos e puniu adequadamente os problemáticos, com uma exceção talvez.

Não farei aqui o tradicional texto de encerramento da série pois teremos uma novidade este ano: quinta-feira haverá uma coluna especial fazendo tal encerramento e dando sugestões para a melhora dos julgamentos futuros.

[N.do.E.: desconfio que o jurado em questão tenha tirado este décimo da Mangueira por conta de eventuais posicionamentos políticos pessoais. PM]

Imagens: Ouro de Tolo

One Reply to “Justificando o Injustificável 2019 – Enredo”

  1. 1 – Sei que é repetitivo, mas as quatro Notas 10 da Viradouro reforçam, mais uma vez, a necessidade de incluir no regulamento a justificativa para o dez.

    2 – Por outro lado, como mostra a conclusão do texto, o julgamento do quesito melhorou extraordinariamente, apesar do Johnny Soares. Os jurados não mais se limitam fazer apenas um checklist com o Livro Abre-Alas, julgamento realmente a proposta apresentada pelo carnavalesco.

    3 – Tive essa mesma impressão em relação ao jurado que tirou ponto da Mangueira, Pedro! Nesses tempos então… Ainda bem que não influenciou em nada, a escola garantiu os 30 pontos no quesito, mas e se perde o título com uma justificativa dessas?

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