(por Fellipe Santos, especialista em Relações Internacionais)

Desde o fim do Regime Militar no Brasil, os movimentos populares estão cada vez mais inofensivos. Na melhor das hipóteses, legitimam articuladores políticos a levarem adiante interesses escusos através da retórica legitimada por panelas ou por balões vermelhos.

Em períodos anteriores, a desobediência civil era um recurso dos movimentos sociais liberais, anarquistas, nacionalistas, fundamentalistas entre outros. Hoje, no Brasil, é uma forma bastante incomum. O interesse desse texto é entender o motivo dessa abdicação do direito de desobedecer. Essa interpretação será realizada ante a metodologia dialética, fazendo dialogar anarquia, ordem, desobediência e obediência.

O estado moderno e a ordem

Na concepção sociológica de Max Weber, o Estado é a entidade detentora do monopólio legítimo do uso da força. Essa centralização do poder permite ao Estado promover políticas públicas visando ao controle social e à ordem política.

O emergente aparato burocrático das sociedades industriais era justificado, como argumento de autoridade, pela sua racionalidade moderna (MAYER, 1985). Portanto, para o pleno funcionamento do Estado, é necessária a presença concomitante do monopólio do uso da força e da legitimidade.

De acordo com a Teoria Formal do Estado, são necessários quatro elementos constitutivos: população permanente; território reconhecido; governo aceito; e soberania. A soberania é prerrogativa exclusiva do exercício da capacidade de mando, em última instância, do Estado nacional reconhecido.

Tem base no jus in bellum (direito de declarar guerra e paz no sistema internacional), no jus tractum (direito de negociar tratados e atos internacionais), no jus legationis (direito de legação diplomática, ou seja, enviar e receber representantes oficiais), no jus petitionis (direito de atuar jurisdicionalmente em tribunais e foros internacionais), e, por fim, no jus representationis (direito de se representar em organizações internacionais) (CASTRO, 2012). Destarte, a soberania estatal é dada tanto no âmbito externo quanto no interno.

Na lógica deôntica do “dever ser”, o Estado deve garantir a segurança, a liberdade, a ordem e a justiça, e o bem-estar da população. Esses fins, na ótica contratualista, legitimam a existência e atuação do Estado.

Dessa forma, essa entidade jurídica abstrata responsabiliza-se por identificar a Ordem pública de fato e promover políticas públicas para alcançar a Ordem pública como fim, ou seja, como situação de plena satisfação das necessidades da população.

Como tese inicial, podemos adotar o pensamento hobbesiano, de que os homens, na ausência do Estado, tendem à guerra de todos contra todos. Então, faz-se necessária a presença do Leviatã para regular as relações entre os homens e cessar a anarquia.

A anarquia do estado de natureza, no modelo hobbesiano e a guerra de todos contra todos constitui a primeira tese deste texto. A proposta de Hobbes de um Estado regulador constitui a antítese. A síntese é a responsabilidade estatal em assegurar os direitos fundamentais da população, como exposto anteriormente, e, também, a reação quanto à eficiência do Estado no cumprimento de suas tarefas por parte da população, que pode decidir manter o contrato com o Estado, ou rompê-lo.

A desobediência civil

Em um processo dialético, a manutenção do pacto entre Estado e indivíduo passa a ser, além de síntese, tese. A situação de fato se torna uma relação perfeita ou imperfeita entre Estado e indivíduo, no que tange às responsabilidades daquele para com este.

Historicamente, os Estados nunca atenderam, de maneira perfeita, à totalidade de demandas da população. Por conseguinte, a tese necessita de uma antítese. Nesse caso, a antítese é a insatisfação dos indivíduos.

No modelo contratualista, o indivíduo abre mão de parte de suas liberdades políticas, econômicas e jurídicas, e em troca reivindica direitos fundamentais. Assim, para manter a legitimidade do Estado – retomando o modelo weberiano -, é necessário que as necessidades sejam suficientemente atendidas para que a população continue legitimando a existência e atuação do Estado. No momento que o indivíduo se percebe prejudicado, a legitimidade é abalada, e a obediência civil, consequentemente, também.

Quando a obediência civil fica fragilizada ante o descontentamento coletivo (antítese) com a Ordem pública vigente, intensifica-se a possibilidade da emergência da desobediência civil. De acordo com Bobbio (1998), “Desobediência civil é uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o fim mediato de induzir o legislador a mudá-la”.

Para justificar a desobediência civil é necessária uma das três condições possíveis, pelo menos: uma lei injusta, uma lei ilegítima (feita por quem não tem o direito de legislar) ou uma lei inválida (inconstitucional).

Para que a desobediência civil se efetive, são necessários alguns condicionantes. Em primeiro lugar, o indivíduo deve ter consciência de sua condição no contrato social, ou seja, deve compreender os dividendos do Estado e seus deveres como cidadão.

Em segundo lugar, o indivíduo deve querer desobedecer com o fim mediato de induzir o legislador a mudar as leis. Por fim, deve haver liberdade – na concepção de ausência de impedimentos para a ação – para que o indivíduo exerça sua desobediência.

Obediência civil

Nas últimas décadas, os movimentos de desobediência civil no ocidente foram bastante pontuais, e de pouco impacto político. Há, inevitavelmente, apenas duas situações possíveis para explicar essa constatação: ou o Estado está cumprindo com todos os seus deveres de forma muito satisfatória, ou a população não está aderindo à desobediência civil, mesmo que seus direitos não sejam amplamente atendidos.

Diante do aumento da desigualdade no mundo, das crises migratórias, das diversas guerras civis na Ásia e na África, dos problemas não resolvidos acerca do meio ambiente, da desigualdade social que aflige minorias em muitos países e do o terrorismo que ameaça a segurança global, a possibilidade de o Estado estar cumprindo plenamente com todos os seus deveres é excluída.

Portanto, é necessário compreender por que a população, mesmo com seus direitos não sendo totalmente atendidos, não recorre à desobediência civil.

Chris Hedges, em Empire of Illusion, demonstra como a indústria cultural promove espetáculos de ilusões para a população. As propagandas, cada vez mais, estão voltadas para os desejos dos indivíduos, inclinados, inevitavelmente, para o consumo.

Todos os dias, a cultura do consumo é reafirmada, dizendo como se vestir, como se alimentar, como estudar, como ser feliz. Esses estímulos produzem graves conseqüências. A mais nítida dela é a individualização da sociedade, apontada por Zygmunt Bauman em Sociedade Individualizada. As pessoas passam a olharem para si mesmas, não se importando com o entorno.

Esse movimento se estende para o que Richard Sennett cunhou de Declínio do Homem Público (1999): é o esvaziamento da esfera pública que decorre da supervalorização da intimidade, da privacidade e do indivíduo. Isso deriva, em grande parte, do modelo burguês de ascensão, fundado, em grande parte, na ética protestante analisada por Weber (2006). O burguês procura sua ascensão individualmente, pois é merecedor, sozinho, dos louros do progresso. Dessa forma, a coletividade entra em declínio.

Com o foco voltado para os desejos individuais, o espaço público é abandonado, e as reivindicações sociais só acontecem quando as vontades da população não são atendidas, principalmente no que se refere ao consumo. Portanto, a proposta de antítese da desobediência civil é substituída pela obediência civil, mesmo em um cenário político fragilizado.

Segundo Henry Thoreau (2012), “aqueles que, embora desaprovando o caráter e as medidas de um governo, empenham a ele sua obediência e seu apoio são sem dúvida seus defensores mais conscienciosos”. Etienne de La Boétie chamou esse estado de alienação de servidão voluntária.

Mesmo que o indivíduo sofra das mazelas produzidas pelo Estado patológico, ele está iludido por uma indústria cultural que obscurece esses problemas profundos, fazendo com que o cidadão não perceba, de fato, a alienação de seus direitos. Assim, ele continua a ser um servo do Estado, mas de forma voluntária, pois não se rebela contra a ordem estabelecida. Destarte, a antítese que prevalece não é a da desobediência, mas a da obediência alienada.

O Estado, na visão contratualista, é constituído como um contrato social entre ele e o indivíduo. Os indivíduos abdicam de parte de suas liberdades para que o Estado garanta seus direitos fundamentais.

No Estado contemporâneo, estes são: a segurança, a liberdade, a ordem, a justiça e o bem-estar. Na plenitude do cumprimento das atribuições de cada parte, estabelecer-se-á a obediência civil. Essa fase constitui a tese abordada.

Todavia, nas condições observadas do Estado contemporâneo, os direitos fundamentais não são atendidos universalmente, portanto, a desobediência civil deveria tomar lugar da obediência civil, e isso constitui a antítese.

Entretanto, a indústria cultural promoveu, junto com as mudanças nas relações pessoais da sociedade industrial, uma queda do homem público, que não mais reivindica questões sociais e políticas que não estejam vinculadas à sua ascensão social através do consumo. Por essas razões a desobediência civil entrou em declínio nas sociedades ocidentais do mundo coetâneo.

BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1998.

LA BOÉTIE, Étienne. Discurso sobre a Servidão Voluntária. Tradução: J. Castella JR. e Agnes Cretella. 2.” ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais Ltda.2003.

CASTRO, Thales. Teoria das Relações Internacionais. Brasília: FUNAG, 2012

HEDGES, Chris. Empire of Illusion: the end of literacy and the triumph of spetacle. New York: Nation Books, 2009.

MAYER, Jacob Peter. Max Weber e a política alemã: um estudo de sociologia política. Brasília: UnB, 1985.

SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. Tradução: Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. Penguim Companhia, 2012.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo; Revisão e Edição de Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Imagens: Globo, G1, Reprodução

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