(Felipe Alves é especialista em Relações Internacionais)

Donald Trump surpreendeu o mundo e será o novo presidente dos Estados Unidos a partir do dia 20 de janeiro desse novo ano. A surpresa levantou a necessidade de compreender, e um dos pontos fundamentais da retórica do republicano durante sua campanha foi o discurso antiglobalista.

Em qual contexto histórico esse discurso se insere? Quais são os cenários aproximados da política externa americana para os próximos quatro anos? Essa duas perguntas serão objetos de reflexão deste texto.

Tradição na política externa americana

No começo do século XX, Theodore Roosevelt solidificou, na política externa americana, uma postura que serviria de referência para muitos dos presidentes que viriam depois. Para ele, apenas sonhadores e intelectuais acreditavam que a paz era a condição natural do homem, e que poderia ser mantida por um diálogo honesto.

A paz era inerentemente frágil, e deveria ser preservada por uma intensa vigilância, força bélica, e alianças pragmáticas. Speak softly and carry a big stick (fale suavemente e carregue um grande porrete). O papel dos Estados Unidos era de ser um farol que guiaria o mundo.

Por outro lado, Woodrow Wilson firmou as bases do idealismo liberal, após a Primeira Guerra Mundial. Para este, o papel dos EUA era messiânico: o país tinha a obrigação moral de disseminar seus princípios pelo mundo. Princípios estes: democracia; julgamento ético dos Estados com o mesmo critério usado para julgar indivíduos; adesão ao direito internacional.

A política externa americana de todos os presidentes desde 1921 pode ser enquadrada entre Roosevelt e Wilson. Isolacionismo e messianismo. A premissa comum aos dois é a superioridade moral dos EUA. Uma constante no século XX. Seja com Kennedy em 1961 afirmando que o país pagaria qualquer preço e suportaria qualquer fardo para garantir a liberdade, seja com Reagan e a missão da América em acabar com o comunismo.

Ascensão e queda do otimismo liberal

Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos restam como uma das duas grandes potências do sistema internacional, e passa a construir sua própria ordem mundial para competir com o modelo soviético. São criados a ONU, o FMI e o Banco Mundial. Lançam o Plano Marshall, o programa de recuperação europeia.

Surgem as bases, então, da ordem liberal, guiada pelos Estados Unidos, fundada na cooperação e no desenvolvimento econômico.

Entre 1961 e 1973 (primeiro choque do petróleo), o PIB per capita saiu de US$3.066,53 para US$6.741,33, um aumento de 119%. Se levarmos em conta que a desigualdade no país, medida por Gini, passa a aumentar, em primeira instância, na década de 1990, nota-se que a classe média foi uma das grandes beneficiárias da ordem liberal. Todavia, esse quadro mudou no século XXI, principalmente após a crise de 2008.

Entre 2003 e 2015 (12 anos de intervalo também), o PIB per capita foi de US$39.677,20 para US$56.115,72, um aumento de 41%. Em 2004, o crescimento do PIB per capita foi de 2,83%, e caiu gradativamente para -3,62% em 2009, no auge da crise. Entre 2010 e 2015, a média de crescimento do PIB per capita foi de 1,36%, um crescimento bastante baixo.

E há um agravante: os 5% mais ricos ganharam 9,3 vezes mais do que os 20% mais pobres em 2014. Antes da crise de 2008, essa proporção era 8,5 vezes. Portanto, o pouco crescimento per capita americano ocorre nas mãos de poucos, e a maior parte da população está estagnada economicamente.

Qual a consequência disso? A classe média, principalmente, está cética em relação à ordem mundial liberal. O livre mercado está em descrédito nos Estados Unidos, e parcerias como a Trans Pacific Partnership são mal vistos pela população, que teme pela concorrência já exacerbada pelo fator China.

Ceticismo ao globalismo, resgate identitário

A descrença na ordem liberal e na globalização gera uma necessidade do sujeito retornar a bases sólidas; é um dos pontos fundamentais para o conservadorismo. A liquidez pós-moderna gera insegurança, e o resgate de uma identidade aparentemente sólida é o porto seguro dos novos tempos.

De forma concreta, o cidadão do meio-oeste americano prefere afirmar-se como americano, não como cidadão global. Também entende que os Estados Unidos são para os americanos, não para estrangeiros. A migração e o terrorismo fortalecem a retórica conservadora fundada no nacionalismo (base da identidade americana, por exemplo).

A necessidade percebida de proteger a economia domesticamente aliada à necessidade percebida de proteger a identidade nacional, resultou em Donald Trump.

Wisconsin, Michigan e Pennsylvania — estados de confiança dos democratas — , entraram nessa retórica e surpreenderam Hillary Clinton, por exemplo. Esses estados somam 46 votos no colégio eleitoral, o suficiente para reverter o placar de 304 x 227 pró-Trump para 258 x 273 pró-Hillary.

Trump e a ruptura

As mudanças conjunturais — economia e política — aliadas à estrutura cultural americana produziram o fenômeno Trump. E o que isso representa historicamente em política externa?

Dentro do diapasão isolacionista-messiânico de Roosevelt e Wilson, Trump se aproxima mais do primeiro. Discurso nacionalista, focado na segurança do país. Todavia, há uma diferença significante. Roosevelt acreditava que os Estados Unidos deveriam servir como um farol que guiaria o mundo, sendo exemplo de democracia, liberdade e prosperidade econômica. Reagan, em seu discurso de posse, além de enfatizar a necessidade de “enxugar o Estado”, ressaltou que “nós seríamos novamente o modelo de liberdade e o farol da esperança para aqueles que não têm liberdade agora”. O republicano, que disse se inspirar nesse discurso, não deu sinais de preocupações com a liberdade global. O isolacionismo prometido por Trump ultrapassa Roosevelt.

O que esperar?

Em primeiro lugar, é necessário dizer que a incerteza é o único padrão na construção de cenários em política internacional. No atual contexto, marcado pela instabilidade — materializada pelo Brexit, Guerra na Síria, crise de refugiados — , a perplexidade revela a complexidade dos fenômenos, e os cenários se tornam conjecturas. Destarte, não há a pretensão, aqui, de prever o futuro, mas refletir acerca de possibilidades cheias de incertezas.

O novo presidente representa uma ruptura, e, geralmente, rupturas não são bem-vindas em política externa. A burocracia responde com conservadorismo, e releva sua incrível capacidade de absorver as novidades de forma estrutural. Trump pode ser limitado no sistema de pesos e contrapesos, e acabar adotando uma postura tradicional de um isolacionista republicano. Esse é um primeiro cenário.

Um segundo cenário é o caos doméstico. O presidente eleito indicaria novos nomes para entrar na burocracia, gerando um conflito interno intenso entre o tradicionalismo e a novidade. São três os possíveis resultados desse cenário: vitória de Trump e política externa radicalmente imposta; vitória da burocracia e boicote ao executivo; acordo entre as partes após grave desgaste.

O último cenário é o caos internacional. Trump conseguiria fazer o que prometeu, sem grandes resistências. Unilateralismo; desvalorização dos ideais democráticos liberais, dos direitos humanos e da ONU; abandono de acordos multilaterais como o acordo de Paris. Grandes rupturas que demandarão reações do sistema internacional, que aumentam ainda mais as incertezas.

O republicano será testado, principalmente em sua habilidade — ou não — estratégica. Os atores internacionais agirão com cuidado para saber o quanto podem forçar e quando devem relaxar em relação ao novo presidente. Putin acomoda-se, haja vista que, pela primeira vez em décadas, o presidente dos Estados Unidos não entende ser um guardião da liberdade no mundo, e, dessa forma, não procurará interferir em assuntos internacionais não relacionados à nação.

Cabe sempre lembrar: toda projeção em relações internacionais é delicada, e a história costuma surpreender. Há grandes incertezas acerca da política externa e doméstica de Trump, e os atores estão apreensivos. Apesar do discurso radical, a estrutura do sistema leva bastante tempo para mudar, e a euforia não deve proclamar antecipadamente uma “Novíssima ordem mundial”. Levará tempo para compreendermos as reações internacionais ao sucesso ou à falência do novo projeto americano.

Imagens: Arquivo Ouro de Tolo

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3 Replies to “Trump e o Antiglobalismo”

  1. Muito bom! Só não concordo com a classificação de “isolacionista” para descrever a política de externa de T. Roosevelt. Depois de G. Washington os EUA gostaram de se descrever como “isolacionistas” querendo significar isolamento dos conflitos EUROPEUS, mas como se o resto do mundo fosse um terreno baldio em que as frequentes intervenções não entravam na conta. Como chamar um presidente que praticou a política do “big stick” de isolacionista? Como descrever assim um governo que esmagou a resistência nas Filipinas, que se meteu até na Guerra dos Boxers e que desmembrou a Colômbia em duas para construir um canal de navegação?

  2. Sobre a discordância do Gustavo em relação a classificação de T. Roosevelt, concordo plenamente.

    Quanto a tentar traçar cenários, nesse momento acho que é inútil. A probabilidade de não dar nenhum dos 3 previsto é alta na minha opinião. Provavelmente ocorrerá algo no meio do caminho dos três e há até uma boa possibilidade de surgir um novo cenário que ninguém previa após ocorrência de algum fato imprevisto.

    Também acredito que qualquer consequência a médio e longo prazo da política externa americana passará pelo resultado da discussão em torno da derrubada ou não do Obamacare e, caso isso ocorra, se algo entrará em seu lugar.

  3. Gustavo e Rafael, obrigado pelos comentários! Acredito que tenha faltado um esclarecimento sobre o isolacionismo de Roosevelt, que, como o Gustavo disse, isolava-se da balança de poder europeia.

    Quanto aos cenários, é tudo muito obscuro ainda. Alertei no próprio texto acerca da incerteza que permeia as análises, e que esta é uma constante. A intenção é levantar conjecturas que permitam imaginar novas possibilidades.

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