Essas cinzas de agosto que nos acompanham são sinal de que algo deu certo nos Jogos que chegaram a ser amaldiçoados. Quem esteve em uma arena, quem assistiu a um evento, de qualquer esporte, não passou incólume ao tal do espírito olímpico.

Foram dias de reencontro do torcedor com sua cidade e seu país. Dias em que se enrolar numa bandeira não ganhou viés político do contra ou a favor de determinada pessoa ou partido. O nosso jeito de torcer foi estranhado, criticado, aplaudido.

Mas foi o nosso jeito. Que precisa, sim, não de uma reeducação, porque essa palavra parece medida para campos de concentração, mas de um maior contato, de vivência com outras modalidades. Mas, por outro lado, não temos do que nos envergonhar se somos mais apaixonados, teatrais às vezes, melodramáticos, se tomamos partido em um jogo de esgrima ou num combate do tae kwon do.

20160817_221835Olimpíadas são intercâmbio cultural, ué. Se os Jogos Olímpicos tiverem deixado uma semente de interesse do brasileiro por outros esportes além do futebol, terá sido uma jornada valorosa.

Por falar em futebol, que momento único ter estado no Maracanã. Tanto reclamamos de uma torcida fria e passiva em jogos da seleção. E o que vi foi uma multidão participativa, empurrando o time, pressionando os alemães, sem querer comparar ou se vingar pela goleada de 2014. Querendo, apenas, vibrar, descer a rampa do Bellini cantando e festejando a alegria de um título.

Como ficou evidente, mais do que a burrada, o crime cometido com o futebol brasileiro a ausência de partidas da seleção no Maracanã no último Mundial. Teria sido diferente? Nunca saberemos. O que se sabe – o que deveria ter virado lição – é que o Brasil não pode jogar tantas vezes longe de seu maior palco.

20160815_195452Thiago Braz nos surpreendeu, o vôlei de praia e o judô confirmaram suas vocações, a vela nos brindou com uma regata com emoção digna de disputa nos pênaltis, Isaquias nos representou, o vôlei masculino repetiu o roteiro das meninas em Londres e saiu da quase eliminação para a glória.

A tal meta do “top ten” não veio, mais até uma consequência de resultados pulverizados do que de um fracasso de preparação. A equipe brasileira, batizada pelo COB com um estrangeirismo do qual não sou fã, o “Time Brasil”, fez uma boa preparação e teve um bom desempenho, sim. No geral, sim.

Mais medalhas, mais finais, mais avanços.

No entanto, assim como o exagero nas críticas e a má vontade não podem levar a uma avaliação pessimista, alguns números não podem mascarar problemas.

20160808_214455Nos dois esportes mais concorridos e, por que não, importantes das Olimpíadas – o atletismo e a natação, nossas performances foram abaixo do aceitável para um país anfitrião. Abaixo do aceitável, também, pelo volume de investimentos recebidos nos últimos ciclos olímpicos. E, se acredito na competência e no trabalho desenvolvido por gente muito boa dentro do Comitê Olímpico – como o pessoal da análise de desempenhos e alto rendimento -, creio que não se criaram as condições para o desenvolvimento de uma verdadeira política esportiva de base no país. Apostamos e investimos nos atletas de ponta. E não temos um rumo bem definido com relação ao futuro.

Para tomar a natação como exemplo vemos as principais potências com atletas incríveis forjados nas escolas e universidades. E, por mais que tenhamos esforços louváveis no intuito de fortalecer as disputas estudantis, não dá para comparar.

Se o legado imaterial, que é a inspiração olímpica disseminada para as futuras gerações, virou uma semente plantada nos corações de milhões de crianças, na herança material são poucos os motivos para a comemoração. Por mais que, numa iniciativa elogiável, várias arenas sejam transformadas em escolas ou transportadas para áreas carentes, é inegável que as grandes construtoras e uma região já valorizada da cidade saem beneficiadas dos Jogos.

20160819_135107Uma vila olímpica que vira condomínio de luxo não condiz exatamente com o conceito que considero válido para legado humano. O mesmo se aplica ao campo de golfe. O projeto do metrô, por mais “primeiro mundista” que seja, não esconde a demora e os custos astronômicos de uma obra que não integra a cidade como poderia ou deveria. As mentiras de nadadores americanos não podem servir como desculpa para a falta de uma política mais eficaz e democrática de segurança pública.

E o sentimento de carioquismo militante, de querer defender a nossa terra, é uma grande bobagem se não adotarmos postura reflexiva sobre o que foi feito em nosso nome sem que tenhamos autorizado ou sem a nossa concordância enquanto cidadãos e eleitores.

Portanto, a sensação é de tristeza e saudade. Por tudo o que vivemos. E até pelo que não vivemos e poderíamos ter vivido. O sentimento é de alegria, pelo mundo ter visto nosso melhor lado, alegre, hospitaleiro, brincalhão, sacana, todos aquelas características do brasileiro, e do carioca em particular, que inúmeros sambas enredo em homenagem ao Rio nos cansam de lembrar em tom até ufanista.

20160813_114001E, por fim, o sentimento precisa ser também de vigilância, de lucidez, de respeito ao próximo e a nós mesmos. Curtir e cuidar do que fica de bom, como o Boulevard Olímpico, algumas melhorias no transporte, a revitalização da Praça Mauá, a integração humana de gente que nunca sonhou passar perto da Central do Brasil se dando conta que andar de trem pode ser super normal.

Depois de 2016 teremos um outro Rio. Certamente não aquela Barcelona tropical que nos prometeram. Certamente não aquela tragédia humana e social que profetizaram. Teremos um Rio com a experiência de ter sido capital do mundo por duas semanas. Orgulhoso e esperto. Sem querer abrir mão de suas conquistas. Sem se deixar enganar por quem quiser tirar proveito delas. Aqui tudo acaba em samba, sim. Mas é aqui, também, que o que é sério é Carnaval.

Imagens: Ouro de Tolo

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27 Replies to “As Cinzas de Agosto”

  1. Foi uma Olímpiadas “à brasileira”, com todos os defeitos e qualidades que isso significa. Porém, ao contrário da Copa do Mundo, acredito que é muito mais claro que existe um “legado”, a transformação que fizeram no Centro e no Porto do Rio foi incrível, o metrô foi caro mas saiu, enfim, agora temos que fiscalizar e dar continuidade à essa transformação. E que sirvam de inspiração a vontade de praticar esportes nos mais jovens, mais importante do que metas é o esporte virar uma política educacional no Brasil.

    1. O próprio BRT pode ser considerado um legado interessante, ainda mais em áreas densamente povoadas onde desapropriações para o Metrô seriam inviáveis

  2. Parabéns pelo texto. Ler aumenta ainda mais a SAUDADE desse evento. Acho que a cidade vai mudar de patamar a partir de agora. Afinal o Rio sempre será uma cidade olímpica. Resta a população sempre exigir mais pois essa cidade e população merecem tudo de bom.

  3. Espetacular o texto. O clima aqui é de uma quarta de cinzas de um carnaval que não voltará no ano que vem. Foram inúmeros os sonhos realizados.

    Um abraço!

    1. Exatamente isso.

      Aliás, por falar em carnaval, a ginástica rítmica me fez entender a sensação de um gringo aterrissando na Sapucaí de paraquedas no desfile…

      1. hahahaha
        Bem que poderia rolar um “roteiro dos desfiles” na ginástica rítmica né? rs

        Mas ginástica à parte, eu que fiz uma verdadeira maratona de esportes alternativos achei sensacional a postura dos locutores das arenas desses esporte. No Hóquei, por exemplo, logo que ocorreu o primeiro penalty-corner o narrador explicou o que era, por que existia, como se batia, etc. Explicou tbm que ele acontece com muitas vezes por jogo e que certamente veríamos outros naquela partida.
        No final do jogo houve um penalty-corner que entrou mas o juiz não deu o gol, ao perceber que o público brasileiro ficou confuso ele explicou o motivo do gol ter sido invalidado. Ao perceber que a torcida estava mandando o Brasil chutar de qualquer lugar (Britânicos estavam com goleiro-linha)ele explicou que só vale gol de dentro da área. Aproximando sempre o público do esporte.
        O mesmo aconteceu em todos os esportes em que o público brasileiro tem pouco contato, Tiro com arco, BMX, Levantamento de peso, etc.

        Sem falar no Mountain Bike, Vela e Maratona aquática, onde havia um telão com narrador e comentarista narrando e analisando o evento como se fosse pra televisão mesmo.
        Achei um golaço da organização!

        1. Aliás, os jurados estavam fazendo com as ginastas não europeias o mesmo que fazem com a escola que vem do Grupo de Acesso: enfiando a faca sem dó nas notas… risos

  4. Excelente texto! Foram duas semanas inesquecíveis! Um amigo disse nas redes sociais que segunda-feira foi a pior quarta-feira de cinzas da história, pois era a ressaca de uma festa histórica que provavelmente nossa geração não viverá novamente…

    Quanto a análise das competições, só acrescentaria a felicidade pelo futebol brasileiro, além de ganhar o ouro e mostrar um jogo animador, voltar para sua verdadeira casa, o Maracanã, depois da COVARDIA feita na Copa do Mundo!

    1. Aliás, na hora dos pênaltis a gente via exatamente quem tinha hábito de frequentar estádios e quem não tinha…

  5. Muito importante essa questão do crescimento do interesse dos brasileiros por outros esportes, muita gente entende legado só como as obras que são feitas na cidade, mas vai ser importante manter vivo o interesse dos mais jovens pelos esportes olímpicos, daí podem surgir novos medalhistas como o Isaquias.

    1. Exatamente. Se o Ginásio Olímpico na Arena Carioca 3 for à frente mesmo, como prometido, pode ser de grande ajuda nisso.

  6. Falou tudo Carlos! Excelente texto! Realmente, que semanas inesquecíveis e saudosas..rs
    Fico muito contente pelo evento que apresentamos.
    Acho que ficou sim um legado muito importante ainda mais na questão do transporte.
    Espero que o Brasil continue investindo cada vez mais no esporte para termos dias ainda mais felizes e comemorativos!

    1. As perspectivas de investimento no esporte com este (gulp) governo, infelizmente, são as piores possíveis.

  7. Ótimo texto. Refletem de maneira bastante abrangente o modo como eu também penso. Para mim foi especial no sentido de variedade esportiva. O que aconteceu aqui nessas últimas semanas ficarão marcadas para sempre na memória. Partilhei muito mais momentos positivos do que negativos nesses dias.

  8. Gil,
    Muito bom o texto. Transcreve com particular habilidade todas as emoções que vivemos ao longo de 16 dias muito intensos.
    O esporte é maravilhoso porque, na sua essência, conta histórias. Histórias de superação, de exemplos de como lidar com a vitória e também a forma digna de lidar com as derrotas.
    Além do legado intangível de formar novos ídolos, exemplos etc, vejo um legado claro e irrefutável sim em mobilidade urbana. Falo com a propriedade de alguém que em mais da metade dos dias olímpicos cruzou zona sul / Barra usando transporte público.
    No plano de estado de virar uma potência olímpica estamos no caminho e a tendência é evoluir mais e mais.. Não podemos esmorecer. Agora é rumo a Tóquio!!!
    E que as olimpíadas tragam um incentivo a mais cobertura de esportess olímpicos na mídia. Ano que vem é um ano cheio de mundiais. Diversão não vai faltar!
    Um abraço,

  9. Para quem nasceu ou adotou o Rio sabe o quanto a Olimpíada foi importante para a autoestima do morador da cidade. Este é um outro legado intangível. Gostaria muito de acreditar que será, para muitos, um ponto de virada na maneira como se cuida do ambiente onde se vive. Queria que os conceitos de cidadania e civismo se reforçassem. Que procurássemos sujar menos, poluir menos, respeitar mais, nas pequenas ações do dia a dia. Moro numa rua às vezes intransitável para o carrinho de bebê da minha filha porque as calçadas – estreitas – estão repletas de cocô de cachorro. Isso não é uma besteira. É algo que influencia no cotidiano, é algo que se ensina, que pode ser mudado. Não adianta criticar a poluição da Baía de Guanabara e fazer de conta que não viu seu totó emporcalhar a portaria alheia. Espírito olímpico não é só sair por aí enrolado na bandeira. É exercício diário.

    1. Gil, posso ser ácido?

      A grande verdade é que temos uma elite de merda, que só pensa nela e não enxerga 1 metro à frente do nariz. Se a elite é assim, o restante da população não irá se sentir compelido a estas atitudes diárias. E olha que vejo mais compreensão destas questões pertinentes que você escreveu no seu comentário em lugares muito mais humildes…

  10. Ótimo texto! Fazia tempo que não visitava o blog, devido aos dias intensos de Olimpíadas e de viagem. Bate uma nostalgia de quando conheci o blog e os textos do Migão. O “a conferir”, utilizado quando algum ponto ainda não estava esclarecido, agora não existe mais. Ficam as cinzas de agosto, o saudosismo, as memórias e as alegrias da participação em um momento tão único. Que a Rio 2016 tenha sido um ponto de mudança para a cidade, para o país e para todos que, de alguma forma, acompanharam e participaram dos Jogos.

    1. Mas a vida no blog segue, embora, por questões que aqui não vem ao caso, não esteja podendo abordar assuntos como política e economia.

  11. Parabéns pelo belo texto. Ah, essas cinzas deste agosto que não param de fazer meus olhos lacrimejarem de saudades…

  12. Realmente não esperava que sentiria tanta falta dos Jogos Olímpicos essa semana. Segunda feira então, quase chorei de saudade. Fico vendo reprises nos momentos livres e me jogo no trabalho pra tentar esquecer essa falta e esses dias memoráveis.
    Desde pequena acompanhava olimpíadas pela tv e nunca me imaginava presente em uma tão cedo e ainda mais na minha cidade e com a torcida toda a nosso favor.
    Que ia conhecer pessoas ainda mais apaixonadas por esportes como eu no grupo do OT, e que me encorajaram ainda mais a ir nos jogos e que foram amigos que eu fiz pra vida. Pessoas do Brasil todo unidas por um propósito e comemorando medalhas dos atletas como se fossem conquistas nossas. Gritando, xingando, torcendo.
    Enfim, guardarei para sempre esses momentos. E agradeço a você acima de tudo por ter criado o grupo e passado dicas tão valiosas quanto chances de medalhas, como chegar nas competições e quando abririam os ingressos. Pois muitos ingressos consegui graças ao grupo.
    O boulevard olímpico também estava lindo e espero que não seja degradado daqui para frente, pois faltava um novo espaço aberto e gratuito para os cariocas levarem suas famílias.
    E a torcida da final do futebol masculino realmente foi muito boa, com muitas musiquinhas criadas na hora e empurrando o time, o que faltou na Copa do Mundo.
    Agora, o que espero é que os investimentos no esporte não fiquem aqui no Rio somente e que sirva de inspiração para uma constante evolução daqui pra frente, assim como os britânicos fizeram, pois potencial temos de sobra, como vimos no caso do Isaquías e do Thiago Braz, por exemplo.
    abs

    1. Eu vejo com bastante pessimismo a evolução do nosso esporte pós Rio 2016. Se o governo atual (gulp) cortou verbas de saúde e educação, vai manter para o esporte? Espero estar enganado, mas sinceramente não acredito.

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