A Globo exibiu neste início de ano (4 a 15 de janeiro) uma elogiada minissérie que adaptou As Ligações Perigosas, o grande romance epistolar de Choderlos de Laclos, para o Brasil de 1928. É mais uma prova da fecundidade desta obra escrita em 1782, que nos últimos 30 anos tem recebido no mundo inteiro diversas adaptações para cinema, teatro, televisão, rádio, ópera e balé.

A trama do romance é conhecida: dois aristocratas libertinos, o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil, dedicam a vida a seduzir e manipular vítimas ingênuas, até que o Visconde se apaixona por uma delas, a doce Presidenta de Tourvel. Envergonhado de seu sentimento, repudia o objeto de seu amor, pelo que caem ambos em desgraça. Ao fim, descobre que fora ele próprio manipulado pela Marquesa.

Os protagonistas são nobres antissociais que ilustram o preconceito corrente na burguesia da época segundo o qual a classe aristocrática seria imoral e dissoluta. Já a personagem feminina idealizada é uma burguesa de rígidos padrões morais que, por inexperiência e fidelidade aos próprios sentimentos, vê-se enredada numa trama sórdida que a conduz à desonra e à morte.

O livro é um marco do moralismo burguês, um conjunto de valores que emergiu no século XVIII, atingiu seu ponto culminante na Inglaterra Vitoriana e ainda hoje permanece influente. Seu ideal é o cidadão virtuoso, que está excluído dos assuntos do Estado e se foca em sua vida privada e na sua família.

Talvez a mais refinada expressão estética deste código moral tenha sido a Tragédia Burguesa, um subgênero dramático que floresceu na Alemanha e teve em G.E. Lessing seu maior representante. Lessing era um entusiasta do homem comum (e principalmente da mulher comum) como protagonista de suas peças: “Se um rei tem a empatia do público, é como ser humano, não como rei”.

emiliagalotti_3211_presseEm sua obra mais emblemática, Emilia Galotti (1771), a virtuosa Emilia é alvo da cobiça do inconstante Príncipe Gonzaga. Enquanto nas Ligações a Senhora de Tourvel parece indefesa diante dos nobres degenerados, na Emilia há uma clara justaposição da torpeza da corte à integridade da família burguesa dos Galotti. Nesta, o maior modelo de austeridade é o pai Odoardo.

A fim de impedir que o príncipe alcance seu intento perverso, pai e filha, de comum acordo, decidem que a última deveria morrer, o que se realiza numa cena tétrica na qual homicídio e suicídio se confundem. O pai até hesita em pôr seu plano em prática: “E se ela não for digna do que pretendo fazer por ela?” Mas felizmente Emilia mostra-se digna, e o drama pode chegar à sua sangrenta conclusão.

O mais lúgubre é que Emilia opta pela própria morte não porque temesse ser violentada pelo Príncipe, mas porque receava ser seduzida por ele – seu verdadeiro medo era o de acabar cedendo por vontade própria: “Tenho sangue, tão jovem e quente quanto possível, e meus sentidos são sentidos. Não garanto nada… Conheço a Casa dos Grimaldi, é a casa do prazer, e foi o bastante passar uma hora lá para que se formasse um tumulto em minha alma que os mais rigorosos exercícios da religião mal conseguiam dominar!”

O amor verdadeiro, como expressão mais sublime do subjetivismo que marca o homem moderno, é um valor supremo. É a presença deste sentimento que absolve as faltas da Madame de Tourvel. A jovem Emilia estava ciente de seu poder. Sintomático que a Rainha Vitória, que viria a ser associada a uma versão inflexível do moralismo burguês, tenha se casado “por amor”, algo extremamente incomum para um monarca até então.

Na Era Vitoriana a nobreza ainda era a classe dominante nos negócios públicos e privados do Império Britânico, mas a burguesia (classe média) gradualmente passou a impor seus valores como universais. De modo geral, na Europa do Século XIX não apenas os costumes da aristocracia eram percebidos como decadentes, mas a classe trabalhadora, fornecedora de inesgotável material humano para as casas de prostituição, tinha fama de ser moralmente ignóbil.

corrupcaoNa segunda metade do Séc. XX o decoro sexual caiu em desuso no Ocidente, mas a pequena burguesia não renunciou à prerrogativa da superioridade moral, da qual se acredita a guardiã. Os pecados mortais passaram da vida privada para a pública: A corrupção nos grandes negócios é normalmente identificada como uma deformação da classe alta (agora não mais a nobreza, mas os próprios burgueses mais ricos), enquanto o banditismo vulgar é entendido como um vício dos pobres.

É da lógica do moralismo burguês que a classe média se sinta oprimida pela desonestidade dos grupos que a circundam: de um lado, a corrupção dos ricos inescrupulosos; de outro, os crimes violentos dos pobres. Nos EUA a discussão é bastante franca, não sendo poucos os que argumentam que, para superar a pobreza, bastaria que os pobres adquirissem “valores de classe média” (middle-class values). No Brasil o senso comum se inclina na mesma direção, embora sofra de uma carência crônica de recursos teóricos.

Em verdade, a associação da moralidade na vida privada com a moralidade na vida pública não é recente. Tome-se a revolução burguesa por excelência, a Revolução Francesa. Robespierre, o mais histérico porta-voz da moral jacobina, entrou para a história como “o incorruptível”; também era, provavelmente, celibatário. Maria Antonieta respondeu, no mesmo processo, por conspiração contra a pátria, desvio de recursos públicos, participação em orgias e incesto. Contra Luis XVI, uma das acusações foi a de ter distribuído dinheiro aos pobres a fim de cooptá-los para seu partido.

Como todo discurso ideológico, o moralismo burguês depende da aceitação axiomática de um pano de fundo tido como natural. A suposta honestidade da classe média só se sustenta enquanto a alta corrupção lhe é inacessível e enquanto a opção da criminalidade se lhe apresenta com uma relação de custo-benefício desvantajosa.

Como mostra fartamente o noticiário, a baixa burguesia só se mantém impoluta até ascender à posição de lidar com grandes negócios ou até descer a um nível perigoso de convivência com o mundo do crime. Em um país de moral lassa como o Brasil, muitas vezes nem estas circunstâncias precisam estar presentes.

Imagem de Capa: GShow