(Por João Gustavo Melo, Jornalista e Diretor Cultural do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro)

Entre os anos 1950 e 1960 foi publicada na França e na Bélgica uma série de histórias em quadrinhos intitulada “O Pequeno Nicolau”, criada por René Gosciny e ilustradas por Jean-Jacques Sempé. As peripécias do menino em idade escolar foram um sucesso estrondoso de público. Logo vieram os livros e, décadas mais tarde, dois filmes distribuídos no mundo inteiro. Enquanto isso, aqui no Brasil, outro menino levado, o nosso Nicolau carioca também fazia arte. Não teve oportunidade de estudar. Mas isso não impediuque ele se tornasse o maior vencedor de sambas de enredo da história da Academia de Samba do Salgueiro. Seu nome completo era João Nicolau Carneiro Firmo.

O apelido Bala, como ficou para a posteridade o gigante Nicolau do Salgueiro, veio da velocidade com que driblava os adversários nas peladas do morro tijucano. “Chegou a trabalhar como pedreiro e estucador. Mas foi como engraxate que ganhou a vida, em diversos pontos da Tijuca: passou pelo Café Éden, pelo Tijuca Tênis Clube e pelo Bob’s da rua General Roca. Aos clientes, de vez em quando dava o prazer de ouvir uma melodia sua, já que costumava trabalhar cantarolando”, explica o jornalista e escritor Leonardo Bruno, autor do livro “Explode Coração: Histórias do Salgueiro”.

Foram nada menos que 12 sambas, o primeiro deles conquistado ainda em 1955, no segundo carnaval dos Acadêmicos do Salgueiro. Portanto, não é exagero afirmar que a história da agremiação alvirrubra passa obrigatoriamente pela poesia d”O” Bala – assim mesmo, sujeito determinado por artigo definido por todos os que o conheceram e o admiraram.

Patrimônio tijucano que durante décadas engraxou os sapatos de muitos senhores distintos no Roquinha, ponto de encontro de sambistas e boêmios da Tijuca, na esquina da General Roca com Barão de Mesquita. “Dizem então, dizem então” que os calçados por ele polidos saíam batucando sincopados pela cidade após o brilho que o poeta dava nos tais pisantes. É história… beirando a poesia.

O destino, porém, reservou a Bala o caminho da consagração.O carnaval de 1969 pode ser considerado como um ponto de virada da carreira do poeta. Ao lado do parceiro Manuel Rosa, Bala compôs, com sensibilidade sobrenatural, o inesquecível “Bahia de Todos os Deuses”, mesmo sem nunca ter colocado os pés na “terra da felicidade”.

Os versos do samba que ecoaram na avenida Presidente Vargas numa manhã ensolarada de segunda-feira de carnaval inspiraram o produtor Jotair Assad, do departamento de jornalismo recém-fundada da TV Globo de televisão, a levar o poeta à Bahia pela primeira vez. “O sucesso que o samba alcançou (…) proporcionou-lhe a oportunidade de ir até lá conhecer os locais citados na composição e receber pessoalmente os agradecimentos da imprensa, do povo e das autoridades baianas”, escreveu o biógrafo da escola, Haroldo Costa, no livro “Salgueiro: Academia do Samba”.

A arte do Bala era tão pujante, que ele também ficou conhecido por um samba derrotado.O carnaval de 1971 se aproximava. O enredo era “Festa para um Rei Negro”. A disputa com a obra de Zuzuca – que ficou para sempre conhecida como “Pega no Ganzê” – dividiu a agremiação. De um lado, a comunidade do morro do Salgueiro estava fechada com o Bala e parceiros. Do outro lado, a cidade inteira conhecia e cantava o samba de Zuzuca. Bem, o resultado, muitos já sabem: deu Zuzuca e os versos “Pega no Ganzê, Pega no Ganzá” foram imortalizados.

Por outro lado, quem é da antiga até hoje cantarola “Senhor, oh, senhor, agora eu sei… que eu também tenho um rei”. Trecho de magnífico poder de síntese que descreve o sentimento dos negros escravizados que trabalhavam nas lavouras de cana-de-açúcar, no século XVII. Nesse período, Maurício de Nassau governava Pernambuco e chamou à capital Recife um grupo de reis e príncipes africanos para tratar de assuntos diplomáticos. Imaginem o impacto dos irmãos de cor ao verem que também tinham sua realeza! Daí a magia do samba derrotado. A obra apresentava tanta qualidade musical que Jair Rodrigues a registrou em um compacto. O samba ganhou, enfim, a posteridade merecida.

Depois do revés de 1971, vieram muitas vitórias marcantes. “E a natureza, com seu cenário multicor” abriu-se para ver o Bala vencer em 1979. “Botou banca na avenida” em 1983, com “Traços e Troças”; ressurgiu feito um “ciclone feiticeiro”, com “Vento Sul… Anos 30… Vargas”, de 1985; clamou a todos para “ver felicidade, salgueirando a humanidade”, com “E Por Que Não”, de 1987; espalhou na avenida um suave aroma de café, com “O Negro que Virou Ouro Nas Terras do Salgueiro”, de 1992.

Até que no ano seguinte fez a avenida explodir de emoção com a mais consagradora apresentação de um samba na avenida: “Peguei um Ita no Norte”, de obra contestada na disputa ocorrida na quadra, passou a ser considerado um dos maiores hinos do carnaval brasileiro. Mas não antes sem “deixar essa cidade louca, com água na boca” no ano seguinte, 1994, com “Rio de Lá Pra Cá”.

Peripécias de um gênio que nos deixou na manhã de um domingo nublado. Por ironia do destino, uma semana após o Salgueiro ter escolhido o 63º samba a levar para a avenida. Na festa ocorrida na quadra na noite de 11 de outubro, foram cantados muitos sucessos inesquecíveis do gigante Nicolau. O menino veloz, irrequieto e talentoso, que fez o povo cantar em tantos carnavais, caloua voz na manhã nublada do domingo, 18 de outubro. Dia em que o morro fez silêncio para ouvir seu poeta entoar a dissonante melodia do adeus.

Ao Bala, nosso gigante Nicolau do Salgueiro, nosso eterno muito obrigado!

João Gustavo Melo

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