Todo mundo sabe a hora que nasceu. Eu nasci às 23:50hs de uma segunda-feira, 9 de agosto de 1976. Mas o nascimento de nosso corpo não é o único nascimento que temos na vida.

Passamos por vários deles, até mesmo perto da morte, e entre esses nascimentos tem o nosso como cidadãos. Lembro bem do meu e ele se iniciou com uma frase do porta voz e futuro governador do Rio Grande do Sul Antonio Britto..

“Lamento informar que o senhor Tancredo de Almeida Neves acaba de falecer.”

Não lembro bem o restante da frase. Para dizer a verdade, acho que nem ouvi tamanho o choro e desespero que tomou conta da sala de minha casa.

Lembro onde estava sentado. Sofá perto da televisão. Eu era o mais próximo da tv naquele fim de domingo 21 de abril de 1985, quando passava o Fantástico. Atrás minha avó, mãe e tia. Quando começou o pronunciamento alguém disse “morreu” e depois foi aquele choro delas, se abraçando e chorando por alguém que nunca viram na vida. Eu, com oito anos de idade, entendi nada.

Trinta anos depois entendo.

Tancredo_Neves_e_Aécio_NevesPois é… Trinta anos se passaram. Quando somos novos trinta anos parece uma eternidade, coisa de gente velha e saber que lembro tão bem de algo que ocorreu trinta anos atrás me faz sentir velho. Mas ser velho tem essas vantagens como ver a história ser feita. Não precisar do YouTube para assisti-la.

Com oito anos só queria saber de brincar e ver desenhos, mas não tinha como ficar alheio ao que ocorria. Lembro vagamente do movimento das Diretas Já (anos depois conheci Dante de Oliveira e apertei sua mão) e lembro de estar no dentista no dia da eleição indireta. Das pessoas embaixo da bandeira do Brasil em dia de chuva, lembro tudo isso.

E evidente, da via crucis de Tancredo.

Uma doença estranha que acometeu o presidente eleito na noite anterior de sua posse e acompanhada com tensão por todo o país. Lembro de uma revista Manchete com ele vestido com um roupão e médicos em volta. Lembro de um dia na roda de amiguinhos entre nossos papos sobre brincadeiras comentarmos que se ele morresse os militares continuariam no poder.

chagas freitasLembro muito pouco da ditadura militar, não tive nenhum problema com ela. A única coisa que eu relaciono ao regime era uma brincadeira que os mais velhos ensinaram de chamar o governador do Rio Chagas Freitas (acima) de “Cagas Freitas”, mas me imploravam para nunca repetir isso na frente de estranhos.

Acho que era medo.

Só tinha conhecido um presidente na vida, Figueiredo, só um tipo de governo, com militares e não tinha noção do quanto a vida daquele homem era importante e a confusão que sua morte poderia trazer.

Acho que todo esse “por trás” que fez minha família chorar. Que fez o país chorar e ir para as ruas homenagear o presidente que nem chegou a assumir em cenas inesquecíveis e comparadas ao funeral de Ayrton Senna.

A vigília de dias em frente ao Instituto do Coração em São Paulo virou a dor do luto pelo caminho do caixão e por todo o Brasil. Segunda 22 foi a única vez na vida que não tive aula por luto. Sergio Chapelin de plantão com “Coração de estudante ao fundo” e voz embargada dizendo que a esperança de um novo Brasil, uma nova República não morria com Tancredo. Tudo muito chocante. Tudo histórico.

Pra aumentar a carga dramática o mineiro Tancredo morreu no mesmo dia que o mineiro Tiradentes morreu lutando pela liberdade. Coincidências que nem um novelista poderia imaginar.

Não era a morte de Tancredo em si que causava aquilo tudo. Eram os vinte e um anos de silêncio, de amarras, de dor que um regime podia causar que transbordou vendo aquele que nos “salvaria” daquele tempo de terror tombado em um caixão. Tancredo acabou virando símbolo. Um mártir que pagou com a vida o sonho de um povo de viver numa democracia.

A morte fez nascer um mito. Não acho que Tancredo seria um presidente muito melhor que foi Sarney. Tancredo Neves era um político como qualquer outro que o Brasil já teve, mas com uma grande habilidade política. Eram muitos os problemas do país, muitas caixas pretas militares para se abrir e assim como Sarney acho que em poucos meses seu castelo de areia ruiria.

Mas não ruiu. Assim como Senna morreu liderando uma corrida Tancredo morreu no auge. Não passou por inflação, desemprego ou despertar de um sonho.

Tancredo foi aquele que nunca foi, mas poderia ter sido. O “poderia”, a dúvida, lhe dão a eternidade. Tancredo é o melhor presidente que o Brasil não teve em sua história.

Muito se diz daquele período de drama. Que Ulysses Guimarães não permitiu um novo golpe e assim mesmo com o trauma da perda o castelo da democracia, esse sim sem ser de areia, começou a ser construído.

Talvez não apenas eu nasci como cidadão ali.

Talvez o Brasil ali nasceu como país.

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