A contribuição de jornalistas, antropólogos, sociólogos, economistas e aficionados, independentemente da formação, é fundamental para se construir dinamicamente a memória do samba carioca.

Sinto, porém, a necessidade de ver mais gente da História trabalhando essas temáticas e dialogando com o povo de outras áreas, sobretudo naquilo que os historiadores mais gostam de fazer: fuçar arquivos, trabalhar com fontes de época e discutir do ponto de vista teórico os alcances e limites da História Oral e da Micro-História, um campo relativamente recente da historiografia que me parece ainda cheio de possibilidades para ser discutido e explorado pela turma do samba.

Apenas para ressaltar como a questão requer atenção constante, pesquisa sistemática e cotejo de fontes; faço três pequenas observações para evitar pequenos erros que li em alguns textos que andam circulando e, sobretudo, relativizar algumas verdades aparentemente indiscutíveis:

1- A primeira mulher a puxar um samba na avenida não foi a Surica, no desfile em que a Portela apresentou as Memórias de um Sargento de Milícias. Também não foi a Elza Soares (conforme afirma equivocadamente a Wikipédia). As fontes disponíveis – e novas fontes e arquivos podem indicar futuramente algo distinto – indicam que a pioneira foi Carmem Silvana, do Império Serrano, que levou no gogó o mítico “Aquarela Brasileira”, em 1964. Carmem, aliás, gravou nos anos sessenta um LP chamado “O rouxinol do Império” que hoje é raridade.

Dona_Ivone_Lara_Foto2- Dona Ivonne Lara não foi a primeira mulher a fazer um samba-enredo cantado em desfile. Carmelita Brasil – fundadora, presidente, carnavalesca e compositora da Unidos da Ponte – abriu essa porteira em 1958, quando a escola desfilava em São João de Meriti. Em 1959 a Ponte passou a desfilar no Rio de Janeiro e Carmelita foi autora de todos os sambas da agremiação até o carnaval de 1964: Revista Brasileira (1959); Exaltação ao Estado do Rio de Janeiro (1960); Exaltação à Guanabara (1961); Homenagem ao Pai da Aviação (1962); Homenagem ao Barão de Mauá (1963); e A Escravidão (1964).

A primeira referência a uma mulher compositora de escola de samba é ao nome de Amélia Pires, que na década de 1930 era compositora da turma da Unidos da Tijuca. Por enquanto não há, todavia, referência de que Amélia tenha feito samba-enredo. Dona Ivonne (ainda conhecida na época como Ivonne dos Santos) foi a primeira a assinar um samba de grande escola, o que já é muita coisa, sobretudo se lembrarmos de que estamos falando dos Cinco Bailes da História do Rio.

IsmaeSilva13- A historiografia não permite afirmar que Ismael Silva (foto) inventou a expressão escola de samba em virtude da existência da escola de normalistas do Largo do Estácio. Essa versão – propagada pelo próprio Ismael, que além de gênio gostava vez por outra de contar vantagens – é contestada por alguns depoimentos de pioneiros daquela época.

Uma forte probabilidade é que a expressão tenha se inspirado no lema do Ameno Resedá, que se definia como “rancho escola”. Outra hipótese é a levantada pelo radialista, pesquisador e cantor Almirante. Segundo ele, o termo teria sido adotado por conta da popularização do “tiro de guerra”, modalidade de prestação do serviço militar que, em exercícios públicos na região do Estácio, teria trazido para as ruas o brado de comando “escola, sentido!”

Em se tratando de cultura oral, dificilmente poderemos cravar que alguma versão é a verdade indiscutível (coisa em que não acredito) nestes casos. A oralidade pressupõe confronto de versões, elaboração e difusão de mitos e a necessidade de se entender a História como um saber que demanda a análise e interpretação dos fatos; menos em busca da verdade do que em busca da construção dinâmica e provisória do conhecimento sobre uma das maiores aventuras civilizacionais do povo do Rio de Janeiro: a criação das escolas de samba e seus desfiles.

Imagem Capa: UFF

One Reply to “Verdades Provisórias”

  1. Muito bom texto. É interessante ver como informações e fatos são propagados como se fossem verdades absolutas. E realizar pesquisas, concordo, não com o intuito de buscar verdades, mas estudar todo o processo.

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