Assim que foi reeleita no pleito de 26 de outubro, a Presidenta Dilma Rousseff, em entrevista ao SBT, destacou a iniciativa de propor ao Congresso Nacional um marco regulatório econômico para o mercado de mídia no Brasil. Setores da imprensa e da oposição trataram de desqualificar a proposta, chamando-a de “censura”. Entretanto, no que consiste este marco regulatório econômico, que hoje inexiste no país – sendo o único setor econômico a estar nesta situação de ausência total de normas?

Darei dois exemplos ao leitor, ambos esportivos, para mostrar ao leitor que a falta de uma regulação econômica do mercado de mídia impacta muito mais o seu dia a dia e passa completamente ao largo da “censura” que alguns querem fazer crer:

1) quando a seleção brasileira de handebol foi campeã mundial ano passado, os assinantes da Net e da SKY, as duas principais provedoras de tv a cabo brasileiras, foram impedidos de assistir à conquista histórica. O Mundial foi transmitido pelo canal Esporte Interativo (EI), que não está no “line up” das duas operadoras, segundo o próprio canal e fontes de mercado, por pressão da Globosat – provedora de conteúdo através de canais como o SporTv, Globonews e outros.

A novela tende a se repetir em 2015, pois o EI comprou com exclusividade os direitos para a transmissão da competição de futebol entre clubes mais importante no planeta, a Liga dos Campeões da Europa (Champions League), a partir da temporada 2015/16. Ou seja: se nada mudar, os assinantes de tv a cabo das duas principais operadoras estarão impedidos de ver a competição.

PFC2) quem é assinante do Premiere, o sistema de “pay per view” (PPV) televisivo do Campeonato Brasileiro de Futebol, sabe que a qualidade das transmissões vem caindo nos últimos tempos, com narradores, comentaristas e repórteres, em média (sempre há exceções), sem o preparo necessário para capitanear uma transmissão deste porte e qualidade de imagem muito aquém do que se é alardeado. Um bom exemplo é a partida entre Flamengo e Criciúma, no último domingo, onde, apesar de anunciada a transmissão em HD, a qualidade de imagem parecia dos primeiros tempos de televisão em cores no Brasil. Fora que a equipe destacada cometeu diversos erros na transmissão.

Como não há concorrência e nenhum tipo de regulação a fim de determinar um requisito mínimo de serviço, o consumidor fica na mão do monopolista, que não precisa oferecer um serviço de qualidade ao telespectador.

Dei dois exemplos, mas poderia citar inúmeros casos de situações onde a falta de um marco regulatório prejudica o consumidor e o faz ter serviços de pior qualidade por preços maiores, isso quando tem. Há canais abertos em UHF que deveriam estar no line up destas operadoras e não estão, como ocorre em certas regiões do país com o canal de notícias Record News.

rm__getulio---manifesta__o_tratada__watermarkOutra questão é a excessiva concentração de mercado em um mesmo grupo, no caso as Organizações Globo: o grupo tem posições dominantes nos mercados de tv aberta, tv fechada, internet, impressos (em alguns lugares) e rádios (idem). É um virtual monopólio de informação, pelo menos ao grande público, além de ser um caso típico de “propriedade cruzada” de meios de comunicação.

Ou seja: o grupo detém posições dominantes em todos os meios de comunicação, seja de forma direta ou associada. Aqui no Rio, por exemplo, o grupo detém o principal jornal impresso e uma das rádios líderes de audiência, além da posição dominante em tv, em tv a cabo e na internet. A TV Globo detém cerca de 60% da audiência de televisão, o portal de internet mais acessado após Google e Facebook e os canais da Globosat, provedora de conteúdo em tv fechada, também são líderes de audiência. Além disso, embora tenha vendido suas participações, o grupo ainda mantém poder na gestão das operadoras de tv a cabo Net e Sky.

Com isso, o grupo recebe o grosso das verbas publicitárias e, além disso, consegue impor barreiras à entrada de novos competidores. Vale lembrar, fazendo um parêntese, que o conceito de “liberdade de imprensa”, no Brasil, se confunde com o de “liberdade de empresa” – especialmente o Grupo Globo, mas não somente ele.

O leitor deve estar se perguntando: como funciona no restante do mundo?

Nos Estados Unidos, por exemplo, existe o controle dos meios de comunicação por meio do FCC – Federal Communications Commission. Em artigo do site “Observatório da Imprensa”, temos uma descrição das atividades do órgão:

“O órgão, criado em 1934, incentiva, fiscaliza e regulamenta o setor de mídia eletrônica. É uma agência independente do governo que concentra a sua atuação nas áreas de tecnologia e economia. Diferente das outras agências de regulamentação no mundo, a FCC combina em sua jurisdição telefone, rádio, TV aberta, por cabo e satélite, conexões sem fio e internet.

20131105_185439A comissão é formada por cinco conselheiros indicados pelo presidente dos Estados Unidos e confirmados pelo Senado americano.”

A chamada propriedade cruzada – quando um mesmo grupo detém posições em diversos tipos de mídia – é proibida, com pequenas e limitadas exceções em mercados menores. Os provedores de tv a cabo são obrigados a colocar canais locais em suas line ups e e os canais de televisão são obrigados por lei a ter três horas de programação educativa infantil por semana.

A França, que talvez tenha um dos marcos regulatórios mais antigos do mundo (1881), proíbe que um grupo tenha mais que 30% dos meios de mídia impressa. Além disso, há um órgão regulatório de mídia audiovisual, que controla as outorgas de licenças de tv e estabelece limites e normas às televisões. Entre elas, a representação de todas as correntes políticas no país e de minorias. Além disso, as rádios são obrigadas a ter ao menos 60% de música francesa em suas programações.

Na Inglaterra, em 2013 foi aprovado um novo marco regulatório, após o escândalo de escutas telefônicas capitaneado pelos jornais do Grupo Fox. Artigo no site Carta Maior explica o sistema aprovado:

“O novo sistema, consensuado pelos três principais partidos políticos, substitui a Comissão de Reclamações sobre a Imprensa, que se mostrou totalmente inoperante durante as duas últimas décadas, cenário dos escândalos envolvendo a família real e, finalmente, o das escutas telefônicas. (…)

banca-de-jornal(…) A velha Comissão de Reclamações sobre a Imprensa era um mecanismo de autorregulação sim poderes de investigação ou sanção da imprensa e com um código de ética brando que ninguém respeitava. O atual sistema propõe a criação de um órgão regulador, nomeado pela própria imprensa, mas sem editores ou membros de diretorias de publicações, e um painel ouvidor que cuidará com que o regulador respeite o código de ética e se comporte de maneira independente. (…)

(…)Em uma tentativa de garantir a liberdade de imprensa e a não interferência política, o órgão supervisor não poderá ser integrado por jornalistas, políticos ou funcionários públicos.(…)”

Aqui do lado a Argentina aprovou em 2009 – e a Suprema Corte local decidiu em 2013 que a lei era constitucional – a chamada “Ley de Medios”, que visou quebrar o virtual monopólio de que o grupo “Clarín” desfrutava no país. Pela legislação, cada grupo econômico pode ter, no máximo, 24 licenças de tv a cabo e 10 dos chamados “serviços abertos” (rádio e televisão). Para o leitor ter uma ideia, o Grupo Clarín terá de vender algo em torno de 150 destas licenças a fim de se adequar à lei, ou seja, a Argentina, a médio prazo, tende a sair de uma posição monopolista para um sistema mais democratizado e, portanto, mais plural. O  leitor que quiser se aprofundar mais sobre a “Ley de Medios” encontra aqui outro artigo dedicado ao tema.

ar_clarin.750Fazendo um parêntese, vale lembrar que o governo argentino comprou os direitos do futebol local, antes concentrados pelo mesmo grupo e em um formato que limitava bastante o acesso dos consumidores. Em artigo do ótimo – e infelizmente extinto – site “Impedimento”, se relata que, controladas pelo grupo Clarín, as partidas eram restritas à tv fechada e ao PPV. Além disso, mesmo os gols e melhores momentos da rodada somente poderiam ser mostrados nos demais veículos após a meia noite, quando terminava a principal mesa redonda da tv do grupo.

Hoje todas as partidas são transmitidas em tv aberta, no chamado “Fútbol Para Todos”. Pode-se discutir se este modelo adotado é o melhor para o futebol argentino – particularmente, acho que não, mas é outra história – mas é um bom exemplo de iniciativa tomada a fim de coibir monopólios privados.

Até porque, retornando ao caso brasileiro, esta é uma questão existente hoje no Brasil: o monopólio de grandes eventos e a prática de comprar direitos de eventos e competições simplesmente para impedir que a concorrência o faça, mas “engavetando” ou transmitindo apenas resumos.

Um bom exemplo é o do MMA, que quando era transmitido pela Rede TV tinha todo a sua programação de lutas transmitida e, hoje, nas mãos da Globo, tem apenas a luta principal mostrada em canal aberto – e muitas vezes com “delay”. Ou o próprio desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, que até 2014 era transmitido para fora do Rio de Janeiro apenas a partir da segunda escola – para 2015, a Liesa, entidade que organiza os desfiles, alterou o início do desfile para que isso não ocorra. Em 2013 o desfile das Campeãs não foi transmitido por decisão da emissora dona dos direitos e, em 2014, passou para a tv fechada.

Ou ainda o caso do já citado Mundial de Handebol, que foi comprado pelo SporTV. Já se espera que a cobertura ao vivo se restrinja à seleção brasileira. Também o quase total monopólio das transmissões de futebol brasileiro é algo que, se não impedido, precisa ter uma regulação de forma a não deixar os telespectadores ao comando do bel prazer dos executivos dos canais – movidos pelo lucro. Sobre o caso específico do futebol, escrevi artigo no final de julho analisando o tema.

image275-600x337Além disso, o marco econômico, ao combater o monopólio e a propriedade cruzada, possui a capacidade de democratizar não somente os meios de comunicação como a própria difusão da informação. Com mais grupos detendo fatias de audiência – ao contrário da esmagadora liderança que se vê atualmente concentrada em um único grupo – e mais segmentos da sociedade tendo espaços de difusão ampla de suas ideias se consegue defender de forma mais adequada o pluralismo da sociedade, com uma representação mais parecida com a encontrada no país.

O marco regulatório também teria o poder de normatizar situações como a já descrita do EI no início do texto ou a da “comprar para não passar”: neste caso, uma possibilidade seria a cessão dos direitos à TV Brasil, à TV Cultura ou outra que se interesse.

Como o leitor pode ver, em nenhum momento se fala em censura ou em regulação de conteúdo. Pessoalmente acho que a questão do direito de resposta precisa ser melhor definida, especialmente em termos de espaços igualitários e rapidez na concessão, mas este não é um aspecto que necessariamente faça parte de um marco regulatório da mídia.

Finalizando, espero que em seu novo mandato a Presidenta Dilma Rousseff cumpra a promessa e envie o marco regulatório ao Congresso Nacional. Sabemos que esta legislatura eleita em 5 de outubro é extremamente conservadora, mas o debate precisa ser estabelecido.

3 Replies to “A necessidade de regulação econômica da mídia no Brasil”

  1. Perfeito!!

    Saudades de quando a Copa do Mundo de 1998 foi transmitida por Globo, Manchete, SBT, Band e Record (TV aberta) e SporTV e ESPN (TV fechada). Concorrência!

    E aí cada emissora que faça o melhor para angariar telespectadores e ouvintes.

    Dou outro exemplo: o esporte a motor. MotoGP, GP2, Stock Car… todas essas poderiam ser transmitidas em TV aberta, mas a Globo compra todas, não deixa as outras emissoras transmitirem e pior: não transmite! Somente em TV fechada.

    Foi o maior pecado a Record não peitar a Globo com as Olimpíadas!!

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