A História oferece um mecanismo de análise política sempre subvalorizado, principalmente em épocas de acalorado debate eleitoral. É uma pena, um desperdício das experiências passadas.

“Agosto” é um bom romance histórico escrito por Rubem Fonseca e publicado em 1990. Conta a sequência de fatos políticos ocorridos em agosto de 1954, e que levaram ao suicídio de Getúlio Vargas. Virou uma razoável minissérie na Globo em 1993 – destaque para Tony Tornado no papel de Gregório Fortunato. A Globo retomou o tema no filme “Getúlio”, com performances elogiáveis de Tony Ramos no papel-título e Alexandre Borges, surpreendente como Carlos Lacerda. Cada uma das adaptações na tela tem um enfoque diferente e, por isso mesmo, são complementares, conquanto longe de serem exaustivas do tema.

Há que se estabelecer diferenças entre a visão romanceada dos fatos em obras de semi-ficção, como as duas citadas. Isso não as invalida como apresentação do panorama político de então.

O caráter popular e progressista do governo Getúlio em seu período democrático (1951-54); a necessidade de governar com base parlamentar, convergindo forças políticas diversas e, por vezes, incoerentes; a defesa governista de conquistas nacionais, tais como a Petrobrás, e o ataque oposicionista a estas conquistas; a irresponsabilidade e a parcialidade da imprensa corporativa; a manipulação da opinião pública através desta imprensa pouco factual e muito opinativa; o denuncismo hipócrita e vazio da oposição entrincheirada na UDN liderada por Carlos Lacerda; o caráter elitista e excludente da ordem social que passou a ser confrontada pelo governo; a óbvia intenção golpista da campanha oposicionista, por emparedar um governo que, pelo calendário, já corria mesmo para sua reta final; a linha auxiliar às causas conservadoras realizada pela chamada esquerda “dogmática”, “doutrinária”, “revolucionária” e, por que não dizer, meramente oportunista, adepta da teoria do “quanto pior melhor”, pregando utopias sonháticas irrealizáveis e esperando o caos como ponto de partida.

Jornal Extra morte de GetulioAlém disso, a estima inabalável do povo por um Presidente que soube defender uma agenda de governo apoiada nos interesses da maioria; o desprezo inabalável das classes dominantes por esta agenda; a conexão entre a oposição e os interesses imperialistas, refletidos na chamada “teoria da dependência”, pela qual restaria ao Brasil um papel secundário na geopolítica mundial, atrelado à liderança norte-americana; a pressão do poder econômico sobre a vida política e social; o alinhamento geral da maioria das lideranças militares, religiosas, industriais, agrárias, do setor de comunicação e da elite financeira a este ideário colonialista e conservador, portanto, contrário ao governo; o alinhamento geral da maioria de sindicalistas, trabalhadores, lideranças sociais e estudantes às propostas progressistas do governo; a dificuldade da oposição em conquistar a adesão das massas a partir de seu ideário antipopular e sua retórica elitista, por natureza, ruim de voto; a falta de alternativa aos portadores deste ideário antipopular que não fosse partir para o linchamento moral, o endurecimento do tom, a utilização da mentira como arma política, o denuncismo retórico, a tentativa de associar a corrupção – um mal endêmico e perene em todos os aspectos da vida nacional desde a primeira caravela aportada em Cabrália – não a um sistema político corrompido e corrompedor, mas especificamente ao adversário-alvo.

Manobra hipócrita e rancorosa, uma vez que esta mesma oposição moralista encontrava-se atolada em um mar de lama mais fétido e profundo.

Está tudo lá, senhoras e senhores, preservado na vitrine da História, observável de um ponto de vista calibrado pelo distanciamento temporal. Cada um desses fatores um pouco mais ou menos nítidos em cada uma das produções, também vislumbráveis (mais claramente) em documentários, livros e matérias infindáveis sobre aquela época. Lembrem-se: estamos falando ainda de 1954.

É um exercício fascinante ver a Globo, herdeira de uma vasta tradição do péssimo jornalismo de sempre e de então, alicerçada no mesmo jornal O Globo que era bastião inexpugnável da ardilosa campanha antigetulista (na verdade – e este é o ponto – antiprogressista e colonialista), esta mesma Globo sentir-se à vontade para dar depois ao mundo duas versões menos sórdidas daqueles tempos. Assim, sem mais, como se o tempo perdoasse o erro passado, mesmo que ele volte a ser cometido depois, e eternamente.

Vargas, e tudo o que ele representou, mesmo com suas intensas contradições, com seus erros de avaliação e gestão, entrou para a História inquestionado como um dos maiores Presidentes, senão o maior. Seus ferrenhos adversários viveram sua queda e, contraditoriamente, foram vencidos por ele. As causas populares, mesmo que inevitavelmente transcorram o caminho tortuoso do universo possível e pragmático, sobrepõem-se às mesquinharias daqueles que escondem-se nas mentiras, na injúria e na propagação do ódio.

Havia então uma dicotomia ou, para usar a linguagem das ruas, um FlaxFlu, entre os conservadores e os progressistas. Entre aqueles que sonhavam um Brasil independente e os adeptos da “teoria da dependência”. Entre os que achavam que o grande mal nacional era o imenso fosse social dos que sempre detiveram dinheiro e poder em relação às massas de despossuídos e os que desejavam aprofundar este fosso. Entre senhores e escravos. Entre colonizadores (ou seus representantes nativos) e colonizados (com ambições de independência). Entre submissão e destino histórico de grande Nação.

E nem era uma dicotomia entre “esquerda e direita”, termos já então comumente utilizados de maneira torta e oportunista por todas as facções. O verdadeiro sentido histórico da oposição entre direita e esquerda, nascido décadas antes do marxismo durante a Revolução Francesa (voltaremos ao tema numa coluna futura), este raramente é utilizado no debate político contemporâneo. Vargas nunca foi nominalmente “de esquerda”, mas certamente seu trabalhismo era uma versão nacional de princípios jacobinos, qual seja, o entendimento que o Estado deve servir à maioria desprovida da população.

JOAO-BELCHIOR-MARQUES-1962-2-size-598A mesmíssima dicotomia – com a mesma retórica agressiva UDNista-lacerdista – se deu nos movimentos golpistas contra os governos de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, nos dez anos seguintes. Nem JK nem Jango eram efetivamente “de esquerda”, segundo o uso rasteiro do termo. Mas eram acusados de “vermelhos”, “comunistas”, “radicais” e sempre, sempre, sempre mais uma vez…

Corruptos.

Na falta de argumentos, na falta de recursos para defender diante do eleitorado uma pauta antipopular e antinacional, a estratégia UDNista sempre se resumiu à mesma ladainha pseudomoralista sobre corrupção, como se um único partido ou corrente de pensamento pudesse posar, em toda a longa história política brasileira de vestal, de puro, de incorruptível e, por fim, dissociado da estrutura política que facilita e alimenta a corrupção endêmica na máquina pública.

E, no mais das vezes, estes hipócritas que denunciam seletivamente apenas os adversários como corruptos, são, eles próprios, muito mais envolvidos nesta prática. Enquanto os progressistas, nos raros momentos em que estiveram no poder realizando, ainda que timidamente, as mudanças profundas na relação entre Estado e sociedade brasileira, sempre foram todos, sem exceção, perseguidos pela mesma retórica oposicionista, e emparedados por uma imprensa eternamente aliada à pauta conservadora. E não que não houvesse, igualmente, casos (e até ondas) de corrupção durante estes períodos progressistas. Havia, até porque infelizmente esta prática está enraizada na gestão pública brasileira e, também, até nos mais diversos aspectos privados da vida. Combater a corrupção é uma proposição séria, que deve ser assumida de forma suprapartidária, sem interesse de uso eleitoral. É estrutural, não pode ser fulanizada nem instrumentalizada na busca pelo poder. Isso é imoral.

Talvez seja o caso para os mais interessados pesquisarem quais governos, em quais períodos, tomaram e propuseram medidas de efetivo combate a este mal. Os mais curiosos poderão descobrir que aqueles que mais apontam o dedo numa cruzada denuncista quando eram oposição são os mesmos que, quando assumem o governo, deixam de tratar do caso, interrompem e varrem investigações para debaixo do tapete, mais corrompem e são corrompidos.

lacerdaA pergunta necessária é: pode-se fazer um paralelo entre agosto de 1954 e outubro de 2014? Não é apenas é possível fazer este paralelo: é obrigatório. E, da mesma forma que se escolhia democraticamente um lado naquela época, pode-se escolher agora. O que não é possível é ignorar que os lados desta dicotomia estão definidos desde então. Desde antes, se for dado um mergulho na formação do Estado e da sociedade brasileira. Sempre existiram inconfidentes e colonizadores, desde o Brasil Colônia. Existiram senhores de escravos e abolicionistas no Brasil Império. Existiram tenentistas e adeptos da Velha República e, finalmente, progressistas e conservadores. A linha divisória na sociedade brasileira não foi criada nem inventada por ninguém, ela existe historicamente. Os interesses do colonizador português eram distintos e opostos aos dos índios ou, depois, dos escravos. A diferença nasce daí. E, em 514 anos, isso nunca mudou significativamente, apenas trocou de roupa.

Num mundo complexo, ninguém é totalmente associado a um ou outro lado mas, majoritariamente, cada pessoa, partido, grupo ou corrente ideológica associa-se a um ou outro lado. E, através de séculos, seja pela força, seja por ardis, o lado dominante foi o do colonizador, do escravagista, do conservador. O mesmo lado. Do banqueiro, do grande investidor, do falso puritano, do elitista, do proprietário, do americanófilo, do coxinha, do entreguista, do antipatriota, do cara que tem e professa o complexo de vira-lata, do racista, do homofóbico, do liberal econômico, do rentista, do grande herdeiro, do privilegiado, do falso meritocrata que se beneficia de sua posição herdada ou conquistada por influência de amigos poderosos, do playboy que chama trabalhadores de vagabundos, do analfabeto histórico.

Você é um ser humano do século XXI, é complexo, tem direito às suas contradições. Provavelmente, você não se identifica com tudo isso ao mesmo tempo, nem refuta tudo isso no mesmo pacote. Mas você certamente tende para um lado, assume uma posição geral sobre estes conceitos. A isso se chama ideologia.

Você tem todo o direito de se aliar ao lado conservador e elitista da história. É uma maneira válida de ver a vida, principalmente se você tem interesses pessoais envolvidos. Não vamos condenar o moralismo e sermos, nós mesmos, moralistas aqui. Você tem o direito de votar pelos interesses do seu bolso, da sua classe social. Mas tenha a decência de assumir isso com todas as letras. Não se esconda atrás de subterfúgios, não use desculpas esfarrapadas, não acuse nos outros aquilo que você está careca de saber que há entre os seus escolhidos. Assuma que você teria lutado pela permanência do estado de colônia portuguesa, se pudesse. Que teria tido escravos, se isso estivesse ao seu alcance. Que iria às ruas contra Vargas, contra JK, contra Jango, que teria apoiado mais de duas décadas de ditadura militar corrupta e entreguista.

É digno, muita gente assume isso. Você tem à mão não apenas um, mas dois candidatos, ambos defensores de uma agenda conservadora, de uma gestão economico-financeira liberal, de um “banco central independente”, de arrocho especulativo, fiéis à teoria da dependência, francamente submissos a interesses imperialistas americanos, candidatos do mercado financeiro, envolvidos pessoalmente até a raiz dos cabelos com a mesma corrupção que você usa como desculpa. Vá à luta, vote em um deles.

Mas também é possível, e até mais provável, que você se identifique com as causas progressistas. Que você reconheça que, com todos os defeitos e acidentes de percurso, com todas as concessões exigidas pelo mundo real, há um governo há 12 anos comprometido com causas que são notoriamente progressistas como o acesso de camadas mais profundas da população a serviços e produtos aos quais elas ficaram impossibilitadas por séculos; que deu acesso efetivo à educação superior ao dobro de brasileiros, principalmente de classes sempre antes excluídas da universidade, a única maneira de mudar o perfil social do Brasil de forma segura e permanente; que valorizou o trabalho, aumentando o poder de compra da massa salarial; que implementou política de pleno emprego, mesmo sob um clima global de recessão; que ampliou as possibilidades e horizontes comerciais do País, deslocando-se de eterna dependência e passando a ser reconhecido como uma importante liderança regional e entre os países em desenvolvimento.

Qque retomou a iniciativa do Estado como indutor da economia; que blindou e valorizou riquezas e empresas nacionais emblemáticas; criou novos meios de combate à corrupção e enviou ao Congresso projeto de reforma política; que aumentou o lucro e o valor de entes públicos da importância do BNDES, Banco do Brasil, Caixa, Petrobras; triplicou o PIB; baixou à metade a relação entre PIB e dívida pública; dobrou a produção de veículos e a safra agrícola; triplicou o número de passagens aéreas; reduziu pela metade as taxas de mortalidade infantil e de pobreza e a um terço a taxa de extrema pobreza; avançou no índice de desenvolvimento humano; multiplicou por sete os investimentos em educação e por quatro os gastos em saúde pública; multiplicou por cinco o número de varas de Justiça Federal; e também por cinco o valor das exportações nacionais; baixou pela metade a taxa de juros Selic; multiplicou por DEZ as reservas internacionais, blindando a economia das oscilações externas que frequentemente abalavam a estabilidade interna; e por aí vai.

BxrB6ptIEAErst8.jpg largeE eu deixo para fechar o que é mais importante: o Brasil, em 12 anos, diminuiu a fome em 75%, saindo pela primeira vez do mapa da fome da FAO-ONU, estando em vias de erradicar o pior dos males que pode afligir uma população. Isso não tem preço e eu, pessoalmente, daria o que me fosse pedido a favor de uma causa dessas.

Perceba que nem todas estas coisas fazem parte daquilo que se convencionou chamar de agenda “de esquerda” hoje em dia. Vão muito além disso, são temas importantes para o pensamento PROGRESSISTA, comprometido com um modelo de país menos desigual, mais independente, que valorize o trabalho e o trabalhador. Este não é um projeto de quatro anos, não é um projeto de um partido ou de uma pessoa, é um projeto histórico de 514 anos que, em pouquíssimas oportunidades durante mais de cinco séculos, esteve no poder. E que, nestes últimos 12 anos – o mais longo período progressista de todos os 514 anos de História – mostrou que é possível construir um país nestes termos.

Apesar deste caminho apontar para a reeleição de um governo ora no poder, não é um projeto continuísta. Continuísmo é insistir num modelo que prevaleceu em quase 500 dos 514 anos do Brasil e que não deu certo.

A escolha é sua, eleitor: é avançar ou recuar. É escolher se Vargas merecia a perseguição que levou-o ao suicídio, ou se é o vulto histórico que transformou o Brasil. É escolher se JK era um louco mergulhado em corrupção, ou se era um visionário que impulsionou a industrialização; é escolher se Jango era um incendiário dominado por comunistas, ou se o Brasil estava avançando em questões sociais inalienáveis do capitalismo moderno, de cunho social e valorização do trabalho. É escolher se o Brasil mereceu 21 anos de obscurantismo, burrice, truculência e entreguismo da Ditadura Militar ou se o Brasil deveria ter usado estas duas décadas para ter continuado avançando. É a escolha entre uma economia tocada de acordo com os interesses do mercado financeiro, ou dos setores produtivos e dos trabalhadores assalariados. É escolher entre as dezenas de conquistas que eu elenquei ai acima, ou o retrocesso. É escolher entre a erradicação da fome ou a volta da fome endêmica.

jk-e-seu-papel-no-desenvolvimento-do-brasilCampanhas políticas são importantes para a democracia, ou deveriam ser. Foi bom discutir os erros de quem majoritariamente acerta, e até os eventuais acertos de quem vive do erro e da mentira. Foi bom obrigar a todos a revelarem suas incoerências e encararem as críticas justas ou injustas. Foi bom discutir projetos, utopias, sonhos, demagogias, acusações, ainda que eu pense que os temas mais importantes tenham sido atropelados pelos subsidiários.

Foi bom, mas agora é a escolha. A mesma escolha de sempre, a escolha entre Vargas e Lacerda, entre o trabalhismo e o elitismo UDNista reencarnado em cavalos pangarés. Como disse o filósofo e teórico da Comunicação Roland Barthes, forma e conteúdo complementam-se, reafirmam-se, são “duas faces constitutivas do mesmo fenômeno”. Ao abrirem mão do debate propositivo e escolherem o tema monocórdico da acusação seletiva da corrupção, Marina e Aécio irmanam-se, revelam-se complementares e aliados espirituais da UDN e de Carlos Lacerda.

Nada pode ser mais velho e arcaico na política brasileira que o discurso hipócrita e falsamente moralista da UDN. Ecos de Lacerda espalham-se pelo ar, travestidos em vozes novas e antigas. Agosto de 1954 é aqui e agora. Escolha.

E boa sorte a todos nós.