Já se falou tanto da goleada histórica da Alemanha sobre o Brasil que preferi mudar de assunto e tratar da Argentina, que sofreu uma derrota honrosa na Final. Uma das coisas que mais impressionou (e incomodou) os brasileiros nesta Copa foi a cantoria dos hinchas, mas seu maior hit era, mais que uma provocação, um grito de desespero:

“Brasil, decime qué se siente / Tener en casa tu papá / Te juro que aunque pasen los años/ Nunca nos vamos a olvidar/ Que el Diego te gambeteó / Que Cani te vacunó / Estás llorando desde Italia hasta hoy / A Messi lo vas a ver / La Copa nos va a traer / Maradona es más grande que Pelé.”

Ou: “Brasil, diga-me como se sente / Em ter em casa o seu papai / Te juro que ainda que passem os anos / Nunca vamos nos esquecer / Que o Diego (Maradona) te driblou / Que Cani(ggia) te ‘ferrou’ / Estás chorando desde a Itália até hoje / O Messi tu vais ver / A Copa irá nos trazer / Maradona é maior que Pelé.”

Argentina Gustavo3Por trás do tom jocoso, esconde-se no hino um sofrimento mal disfarçado. Analisemos a letra. A canção celebra a vitória por 1 x 0 sobre o Brasil nas Oitavas de Final da Copa do Mundo de 90 como se fosse o maior feito da história do futebol, e só nas últimas três linhas muda de assunto: promete que Messi venceria esta Copa de 2014 para a Argentina e finaliza com a obsessiva comparação que eles não cansam de fazer entre Maradona e Pelé.

Comecemos pelo fim: é claro que Lionel Messi é um jogador excepcional, mas quando a torcida confia que ele “trará” a Copa para a Argentina, o que fica mal dissimulada é uma profunda desconfiança em relação ao resto da seleção, que de fato não é lá essas coisas. Resta claro que todas as fichas estavam apostadas em que o raio de 86 cairia pela segunda vez.

Sobre Maradona ser “maior que Pelé”, não é difícil entender a razão de eles insistirem tanto nessa hipótese. Antes de Messi, el pibe havia sido o único grande astro do futebol platino. Di Stéfano poderia ter sido outra lenda, mas, insatisfeito com os salários pagos na liga argentina, preferiu naturalizar-se colombiano e, mais tarde, espanhol, adotando as seleções desses dois países e, por conseguinte, recusando-se a vestir a albiceleste. Entrou para a história não por sua origem argentina, mas como o jogador-símbolo da fase de ouro do Real Madrid.

Argentina Gustavo 2Por 70 anos, a Argentina não teve ninguém que se comparasse a Leônidas, Zizinho, Didi, Nilton Santos, Garrincha, Gérson, Tostão, Jairzinho, Rivellino, Zico, Sócrates, Falcão, Romário, Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho. Só Maradona. Não surpreende que eles não considerem vantajoso comparar o conjunto de seus “craques” com os brasileiros. Um sinal claro disso é que o terceiro jogador citado na cançoneta, além de Messi e Maradona, é o apenas mediano Claudio Caniggia.

Também não é de estranhar que evitem comparações entre as conquistas deles e as nossas. Cinco títulos mundiais contra dois é só uma forma de simplificar. A classificação para a Semifinal de 2014 colocou a Argentina entre os quatro melhores de uma Copa pela quinta vez na história, mesmo número de Holanda e Uruguai. Ao mesmo tempo, o Brasil alcançava pela 11ª vez a façanha. Já chegamos entre os oito primeiros 17 vezes, mesmo número da Alemanha; os argentos estão num patamar abaixo: chegaram 10 vezes, mesma quantidade de Itália e Inglaterra.

Em 20 Mundiais – o deste ano incluído –, o Brasil somou muito mais pontos que o rival (227 x 140), com uma média de 2,18 pontos por partida (contra 1,84 da Argentina). Marcou muito mais gols (221 x 131), e obteve um saldo muito melhor (119 x 47). A Canarinho venceu muito mais vezes (70 x 42) e perdeu menos (17 x 21) que a Albiceleste. Em todas estas estatísticas, o Brasil é líder no quadro geral, enquanto a Argentina fica em quarto, depois de Alemanha e Itália, nossos verdadeiros rivais em Copas do Mundo.

A parte mais esquisita do grito de guerra platino é a exaltação da magra vitória de 1990. Em princípio, aquela Copa seria para todos esquecerem: teve a menor média de gols, e possivelmente a pior qualidade técnica de todos os tempos. Foi por causa do baixo nível daquele torneio que a FIFA proibiu o recuo de bola com os pés dos zagueiros para os goleiros e acabou com o impedimento quando o atacante está na mesma linha do último defensor.

O elenco argentino era decididamente fraco, ainda mais dependente de Maradona que o de 86, e em 90 os dias de glória do pibe de oro já estavam ficando para trás. Chegaram ao vice-campeonato aos trancos e barrancos, numa campanha de 2 vitórias, 2 derrotas e 3 empates. Fizeram apenas 5 gols em 7 partidas, um recorde negativo para um finalista de Copa, e também foram os únicos finalistas da história que dependeram de duas disputas de pênaltis para avançar.

Perderam para Camarões na estreia, empataram com a Romênia de forma dramática e se classificaram em terceiro lugar na fase de grupos: até para isso precisaram contar novamente com a “mão de Deus” de Maradona, que “defendeu” uma bola da URSS em cima da linha do gol argentino, para desespero dos soviéticos e desconfiança geral, pois o juiz estava a poucos metros do lance.

Argentina Gustavo 4O Brasil tinha um time nada memorável, mas venceu os três jogos da primeira fase, e nas Oitavas ficou claro que era muito superior ao argentino. A pressão brasileira durou os 90 minutos, em que pese os portenhos terem vencido graças a um lance isolado e a mutretas sem fim, a destacar a vergonhosa “água batizada” que seu staff ofereceu a Branco.

E, afinal, os argentinos perderam aquela Copa. A vitória do Brasil sobre a Argentina em 82 foi, esta sim, acachapante, mas os brasileiros não se vangloriam dela, pois sabem que, no caminho para o título, tropeçaram na Itália. Então, por que tanta euforia deles com uma vitória de Pirro?

Aquele jogo foi o canto do cisne de Maradona e do futebol do Rio da Prata. Desde o fatídico gol de Caniggia a Argentina nunca mais venceu outra seleção grande em um Mundial e, até semana passada, nunca mais chegara às Semifinais. Depois daquela tarde em Turim, foram 7 derrotas, 7 empates – e 18 vitórias contra os nada temíveis: Japão, Coreia do Sul, Irã, Nigéria, Costa do Marfim, Jamaica, México, Bósnia, Sérvia, Croácia, Grécia, Suíça e Bélgica. Já o Brasil teve 6 derrotas, 6 empates e 26 vitórias, algumas sobre Alemanha, Inglaterra e Holanda.

Quem, então, está “llorando desde Italia hasta hoy?” O Brasil, que de lá para cá conquistou 2 Copas do Mundo, 4 Copas das Confederações e 4 Copas América? Ou a própria Argentina, que venceu sua última Copa América em 1993, e desde então – há mais de 20 anos – não conquistou nenhum título internacional?

Argentina Gustavo 5Aliás, fica mais fácil entender a idolatria dos muchachos por Maradona quando percebemos que o único período em que as conquistas argentinas suplantaram as brasileiras – os quinze anos de 78 a 93 – coincidem com o tempo de atividade do gorduchinho. Lio talvez seja melhor (na minha opinião, é), mas não logrou livrar os portenhos de sua sina.

Refletindo bem, há uma beleza latente naquela cantiga debochada. Nela ressoa, para quem consegue escutar, toda a melancolia do tango: a nostalgia de glórias passadas, o ressentimento do orgulho ferido e, acima de tudo, a dor do amante traído: abandonado pela própria glória, que resolveu aninhar-se nos braços do maior rival.

A ironia é que o futebol argentino, ao longo dos últimos vinte anos, não foi realmente mau. Cada um dos times levados a Copas de 94 em diante era muito melhor que aquele de 90. Exatamente nos anos em que o Brasil venceu (1994 e 2002), o conjunto argentino parecia ser superior, assim como com certeza era em 2010, uma Copa que eles desperdiçaram estupidamente, por insistir na idolatria hagiológica por Maradona.

Entregaram a seleção que tinha o melhor jogador do mundo a um técnico amador, que nada tinha a oferecer além de bravatas sobre seus anos dourados. Quando no comando da Albiceleste, Don Diego gostava de contar, em meio a gargalhadas, como gambeteó Dunga (então técnico da seleção brasileira) no famoso lance de 90. Os argentinos adoravam. A Alemanha, indiferente a essa história velha, atropelou seu time por 4 x 0.

Não chores por mim, Argentina. Chora por ti mesma, seca as lágrimas e mira o futuro. O vice-campeonato deste ano não é tudo que la Celeste y Blanca queria, mas já é um bom recomeço.

Imagens: Fifa.com