O leitor que acompanhou a cobertura especial sobre os 20 anos de morte de Ayrton Senna talvez não saiba que na data de hoje, 05 de maio, também se completam 20 anos de falecimento de um dos gigantes da cultura brasileira: Mário Quintana.

Nascido em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 30 de julho de 1906, Quintana passou quase a totalidade de sua vida como poeta, cronista e tradutor em Porto Alegre, capital gaúcha. Da terra do minuano empreendeu obra fundamental àqueles que gostem de poesia em língua portuguesa. Faleceria também na capital gaúcha, aos 87 anos.

Gramado_Porto Alegre 01_2012 521Pessoa extremamente solitária, Quintana viveu desde 1968 em hotéis da capital gaúcha. Os hotéis Majestic (ao lado), Royal e Porto Alegre Residence foram o refúgio do poeta até sua morte. Quintana passaria por dificuldades financeiras ao final de sua vida, mas soube contar com a gratidão em vida daqueles que o reverenciavam.

O Majestic, onde o poeta viveu de 1968 a 1980 – quando foi fechado – foi adquirido pelo governo do estado, reformado e transformado na “Casa de Cultura Mário Quintana”, inaugurada em 1990. No local há espaços para exposições, teatro, shows, cinema, uma biblioteca e um breve memorial do poeta, além de uma sala (abaixo) que reproduz fielmente o quarto onde ele viveu ali. Também há uma exposição permanente dedicada à cantora Elis Regina, também gaúcha e falecida precocemente em 1982.

Quintana tentou três vezes se eleger à Academia Brasileira de Letras, sendo inacreditavelmente derrotado em todas as oportunidades. Em uma quarta ocasião, quando havia o compromisso que ele seria eleito por unanimidade, Quintana simplesmente recusou a indicação.

Após a terceira derrota, em 1978, o poeta escreveria aquele que é um de seus poemas mais famosos, o “Poeminha do Contra”:

“Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!”

Gramado_Porto Alegre 01_2012 526O “eu passarinho” pode definir a vida de Quintana. Morando em hotéis, sem bens materiais, adotou a liberdade como norma e a escrita como patrimônio. Era um passarinho da poesia, era um passarinho em sua vida. Vida e obra dedicadas à simplicidade.

Pessoalmente sou fã de Mário Quintana desde muito jovem, e por anos e anos alimentei o sonho de um dia conhecer a casa de cultura dedicada à sua memória. Finalmente pude realizar isso em janeiro de 2012, onde passei uma tarde visitando o centro – as fotos do post são deste dia.

Confesso que achei o espaço dedicado à memória do poeta bastante tímido, apesar de algumas relíquias. Não se pode entrar no quarto que foi recriado à moda do que vivia o poeta, até pela necessidade de preservar a memorabília do desgaste natural e especialmente de furtos. Mas há uma janela bastante ampla que permite saciar a curiosidade do visitante.

Mário Quintana também é nome de um bairro em Porto Alegre, capital gaúcha.

Enfim, nesta data em que se marcam duas décadas da morte de Quintana, nada melhor que relembrá-lo a partir do que ele nos deixou como legado a jamais ser olvidado: sua obra. Seleciono abaixo alguns trechos de poemas: os que o conhecem, relembrem; os mais jovens, descubram.

Viva Quintana!

Emergência

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo —
para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

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Os Poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
 
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…
 

Segunda canção de muito longe

Havia um corredor que fazia cotovelo:
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro…
Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa…
 
Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.
 
Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas…
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos…
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras…
 
Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar o Toutinegra do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!…
A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!
 

Relógio

O mais feroz dos animais domésticos
é o relógio de parede:
conheço um que já devorou
três gerações da minha família.
 

Quintana por ele mesmo, em 1984:

“Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro — o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu… Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! Sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros? Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Verissimo — que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras”.

Fonte: “Os dez maiores poemas de Mário Quintana”;

Imagens: Arquivo Pessoal

4 Replies to “Duas Décadas sem Mário Quintana, o poeta passarinho”

  1. Quintana gostava da solidão, viveu em hotéis, mas negava o título de ‘tímido’: “Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?”. No blog Shereland, a gente publicou uma entrevista fictícia com o poeta, espero que goste: http://bit.ly/1ikyRSy

    1. Bem bacana, Gabriela. Impressionante como a data passou praticamente em branco, à exceção da lembrança de alguns abnegados como eu e você.

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