Retornando após um período sabático, a coluna de Fabrício Augusto Souza Gomes, – professor e doutorando em História – retorna ao blog, nos contando um pouco sobre a ditadura argentina e, especialmente, dos métodos cruéis de tortura empregados pelos militares – marcas dolorosas que resistem ao tempo.

Os anos de chumbo na Argentina: crimes e contradições

Este ano completam-se 50 anos do golpe empresarial-militar no Brasil. Um golpe que inaugurou um regime de exceção que durou 21 anos – e a durabilidade da ditadura militar no Brasil ainda é tema controverso, seja pelos crimes ainda não investigados pela Comissão Nacional da Verdade, seja pela própria razão de ser e objetivos dessa comissão; e também pelo tempo de duração da ditadura. Para alguns, esta se encerrou em 1979, com a Anistia; para outros, em 1988, com a Constituição daquele ano; e por fim, há quem defenda a idéia de que a ditadura só foi embora com a primeira eleição direta para presidente da República, em 1989.

Mas quando falamos em ditadura militar, acabamos por dar destaque apenas ao caso brasileiro. Muitos esquecem que tivemos várias ditaduras militares em nuestra América, entre as décadas de 1960 a 1980. Mesmo assim, quando estas são citadas, muitos o fazem apenas para equivocadamente compará-las com a ditadura brasileira. Definitivamente não houve a famigerada “ditabranda”, como alguns historiadores revisionistas e polemizadores gostam de afirmar. E ainda assim é possível encontrar pragmáticos defensores de ditaduras, infelizmente.

Vamos então analisar o caso argentino. A Argentina, nossa vizinha. Em dezembro de 2013 celebraram-se os 30 anos do fim da ditadura militar argentina, com a posse do presidente civil Raúl Alfonsín em 10/12/1983. Um tema pouco explorado – embora agora, com os processos investigativos em andamento, tenhamos farto material surgindo à respeito desse doloroso tema – diz respeito aos crimes cometidos durante os anos de chumbo naquele país.

Vamos então relembrar os métodos de tortura utilizados na ditadura argentina, bem como alguns casos emblemáticos de torturados, e os nomes de torturadores – lembrar para nunca mais esquecer e para que nunca mais aquele período de trevas se repita.

Um dos instrumentos de tortura utilizado pelos militares argentinos foi a picana elétrica. Criada nos anos 1930 por Leopoldo Lugones Hijo – filho do escritor nacionalista L.Lugones – a picana era um instrumento para assustar o gado com choques elétricos nos currais e, assim, direcioná-lo para o abate ou embarque. Aplicado a seres humanos, tornou-se no instrumento preferido de tortura na Argentina.

Outra tática de tortura utilizada era o “submarino molhado”: consistia em afundar a cabeça de uma pessoa em uma tina d’água. Ocasionalmente a tina também estava cheia de excrementos humanos. Já o “submarino seco” consistia em colocar a cabeça de uma pessoa dentro de um saco de plástico e esperar que ela ficasse quase asfixiada.

O “rato no cólon” consistia na colocação de um rato, faminto, no cólon de um homem. Nas mulheres, o rato era colocado na vagina.

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Mulheres e homens foram estuprados sistematicamente pelos militares e policiais argentinos. As mulheres ocasionalmente recebiam a opção de serem estupradas ou de serem eletrocutadas na parte interna da vagina e ânus. Havia também a opção de “esfolamento” (prática talvez inspirada nos índios mapuches, que vieram do outro lado da Cordilheira dos Andes e arrasavam os tehuelches, esfolando os seus pés): amarravam um prisioneiro em uma mesa e começavam a esfolar a pele da sola dos pés com uma gilette ou bisturi.

Alguns homens foram empalados pelas forças de segurança com cabos de vassoura (durante a ditadura de Juan Manuel de Rosas, no século XIX, torturavam os opositores introduzindo um sabugo de milho no reto anal). Discursos de Hitler embalavam sessões de tortura da ditadura argentina (judeus foram atacados com mais sadismo).

Um dos casos mais sinistros de torturas foi o do adolescente Floreal Avellaneda, sequestrado no dia 15 de abril de 1976. Filho de um casal de sindicalistas militantes do Partido Comunista, Floreal tinha 14 anos quando foi seqüestrado. O menino sofreu torturas nas mãos e genitais. Depois, foi empalado vivo. Uma semana depois, a polícia uruguaia encontrou em uma praia perto de Montevidéu o cadáver de um jovem violentamente torturado com a marca de uma tatuagem com as letras “FA”. Posteriormente, com a volta da democracia, a mãe de Floreal pode confirmar que tratava-se de seu filho. Ele havia sido arremessado de um dos aviões que realizavam os “vôos da morte” sobre o rio da Prata.

A lista de torturadores argentinos é extensa. O  capitão de corveta Jorge “Tigre” Acosta foi um dos criadores dos “voos da morte”. e uma das “estrelas” da Escola de Mecânica da Armada (ESMA), o maior centro de torturas da Argentina, a 700 metros do estádio Monumental de Nuñez, do River Plate, e palco da final da Copa do Mundo de 1978, naquele país.

O oficial, que falava sozinho à noite, em delírio místico, explicava aos colegas e prisioneiros que mantinha longas conversas noturnas com “Jesucito” (O pequeno Jesus). Ele perguntava a “Jesucito” qual dos prisioneiros deveria torturar no dia seguinte e jogar dos aviões. Famoso pelos requintes de crueldade que aplicava aos detidos, Acosta também foi um dos principais sequestradores dos bebês de prisioneiras da ESMA (ali nasceu maioria crianças desaparecidas).

Julio Simón – “El Turco Julián” –  foi chefe dos interrogadores do centro de detenção “El Olimpo“. Sua diversão era jogar água fervendo em cima de seus prisioneiros políticos. Deleitava-se em torturar os deficientes físicos, jogando-os do alto de uma escada. Além disso, saboreava cada minuto no qual estuprava a esposa de um prisioneiro na sua frente. Ele ostentava uma suástica no uniforme argentino e tinha especial irritação com José Poblete – um jovem militante peronista que havia perdido ambas as pernas em um acidente. Simón lhe havia retirado a cadeira de rodas e as pernas ortopédicas, e divertia-se – às gargalhadas – jogando-o para cima ou obrigando-o a desfilar na frente dos outros policiais arrastando-se sobre os tocos de seus membros.

O ex-policial foi condenado pelo seqüestro e torturas infligidas ao casal Gertrudis Hlaczik e José Poblete Roa em 1978. Ele também foi considerado culpado do seqüestro de Claudia, o bebê de apenas oito meses do casal, e do ocultamento de sua identidade. Ele fazia Gertrudis andar nua pelos corredores, enquanto que José, sem as pernas, devia se arrastar com as mãos pelo chão. Simón e os outros guardas o chamavam de “cortito” (curtinho), por causa da ausência dos membros inferiores. O torturador também costumava jogar Poblete do alto de uma escada.

Os casos de delitos sexuais transcorreram majoritariamente nos campos de detenção de “Club Atlético”, “El Olimpo” e “Banco”. Os envolvidos estupraram – segundo as denúncias – centenas de mulheres detidas nos centros de tortura. Geralmente elas eram amarradas nuas nas camas nas celas. Primeiro eram torturadas com choques elétricos nos mamilos e nos órgãos genitais. Posteriormente eram penetradas por um ou mais policiais e militares. Para os estupros, os militares e policiais costumavam preferir as estudantes universitárias jovens. Freqüentemente, quando um casal era detido, os seqüestradores violavam a esposa na frente do marido.

Além de ter sido a mais sanguinária, a ditadura argentina foi um fracasso tanto na área militar como na esfera econômica. Protagonizou vários “fiascos” militares. Entre 1976 e 1978, a ditadura colocou quase a totalidade das Forças Armadas para perseguir uma guerrilha que já estava praticamente desmantelada desde um ano antes do golpe de 1976, em 1975.

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Em 1978, a Junta Militar argentina levou o país a uma escalada armamentista contra o Chile. Em dezembro daquele ano, a invasão argentina ao território chileno foi detida graças à intermediação do Papa. O custo da corrida armamentista colocou a Argentina em graves problemas financeiros. Em 1982, perante uma crise social, perda de sustentabilidade política e problemas econômicos, o então ditador Leopoldo Galtieri – famoso por seu intenso “approach ao scotch” – decidiu invadir as ilhas Malvinas para distrair a atenção da população. Resultado: após breve período de combate e levar uma colossal (e previsível) surra, as forças do ditador renderam-se às tropas britânicas.

Em sete anos de regime de exceção, a dívida externa subiu de US$ 8 bilhões para US$ 45 bilhões. A inflação do governo civil derrubado pela ditadura, que era considerada um índice “absurdamente alto” pelos militares, havia sido de 182% ao ano. Mas este índice foi superado pela política econômica caótica da Ditadura, que encerrou sua administração com 343% de inflação anual.

A pobreza durante a ditadura disparou de 5% da população argentina para 28%. A participação da indústria no PIB caiu de 37,5% para 25%, o que equivaleu a um retrocesso dos níveis dos anos 1960. Além disso, a ditadura criou uma ciranda financeira, conhecida como “la plata dulce”, ou, “o doce dinheiro”. Ao mesmo tempo em que tomavam medidas neoliberais, como a abertura irrestrita das importações, os militares continuavam mantendo imensas estruturas nas empresas estatais, que se transformaram em cabides de emprego de generais, coronéis e seus parentes.

Os militares também estatizaram US$ 15 bilhões de dívidas das principais empresas privadas do país (além das dívidas das filiais argentinas de empresas estrangeiras) No meio desse caos econômico, os militares provocaram um déficit fiscal de 15% do PIB. A repressão provocou um êxodo de centenas de milhares de profissionais do país. Os militares, em cargos burocráticos, exacerbaram a corrupção na máquina estatal.

Recentemente os senadores argentinos aprovaram a promoção do general Milani – que foi escolhido por Cristina Kirchner para ser chefe do Exército – ao posto de tenente-general. Ele é acusado de ter ‘desaparecido’ pessoas na ditadura argentina, nos anos 1970. Paradoxal. As Mães da Praça Mayo da província de La Rioja, onde Milani agiu na ditadura, marcharam para exigir a remoção do general. Sem efeito.

A política externa da ditadura argentina foi confusa e incoerente. Pediu – e obteve – respaldo a Cuba durante a Guerra das Malvinas. Acreditou que os EUA ficariam ao seu lado na Guerra das Malvinas, já que a ditadura havia sido um bastião anticomunista na América do Sul, e até havia colaborado na guerrilha dos ‘contras’ na América Central (exportação de know-how, digamos assim). Os militares não levaram em conta que pesaria mais a velha aliança EUA-Grã Bretanha por motivos históricos (além da participação dos dois países na OTAN, claro).

A ditadura tinha um discurso anticomunista, mas continuou vendendo trigo para a URSS, e não aderiu ao boicote estadunidense contra os Jogos Olímpicos de Moscou, em 1980.

Os militares argentinos deram o golpe e instauraram talvez a ditadura mais sanguinária da história da América do Sul com o argumento de que a guerrilha controlava grande parte do país. Um total delírio. A pequena guerrilha, mais especificamente o ERP, dominava às duras penas pequena porcentagem de Tucumán, menor província da Argentina (Tucumán tem 1% do território argentino).

Mitificar a guerrilha foi útil para os militares e também para o prestígio dos guerrilheiros. A nenhum dos dois lados era conveniente admitir a realidade, de que a área controlada pela guerrilha era ínfima. Os militares e os saudosistas daqueles tempos afirmavam (e ainda afirmam) que o país estava em guerra civil nos anos 1970 mas, “guerra civil”, rigorosamente, seriam conflitos de proporções mais substanciais, tais como a Guerra da Secessão dos EUA, a Guerra Civil Espanhola, a Guerra Civil Russa, a Guerra das Duas Rosas (Lancasters versus Yorks, na Inglaterra), ou a Guerra Civil da Grécia após o fim da Segunda Guerra Mundial. Ou ainda a Guerra Civil da Nicarágua, ou a de El Salvador.

Ou seja: bombardeios de cidades, grandes êxodos de refugiados, centenas de milhares de mortos, uma boa parte de um país controlado por um dos lados, e outra parte controlada por outro lado. Isso não ocorreu na Argentina nos 1970.

O ex-ditador general Jorge Rafael Videla, ex-senhor da vida e da morte, morreu em sua cela em maio do ano passado, sentado no vaso sanitário. Serial-killer e piromaníaco, Videla era um ditador que queimava bibliotecas. Em setembro de 1980 as autoridades da ditadura de Videla proibiram o uso do livro “O Pequeno Príncipe”, do francês Antoine de Saint-Éxupery, nas escolas, por considerá-lo “subversivo”.

As autoridades militares também proibiram um livro de engenharia elétrica, o “Cuba electrolítica” (isto é, ‘célula eletrolítica’). Os censores acreditaram que o ‘cuba’ referia-se à ilha caribenha, controlada pelo regime comunista de Fidel Castro. O regime proibiu o ensino da teoria matemática dos conjuntos, por considerar que era “subversiva”. A palavra “vetor” também foi proibida nas escolas, já que os militares consideravam que era utilizada na terminologia marxista. Na lista de autores suspeitos dos militares estavam escritores como Gabriel García Márquez, passando por Julio Cortázar, Freud e até Proust.

E no Chile?

Durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-90), milhares de mulheres estiveram detidas em prisões clandestinas. Segundo a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura do Chile, 3.399 mulheres foram objeto de violência sexual nos anos Pinochet. Treze destas mulheres chilenas ficaram grávidas. Seis deram à luz aos filhos indesejados de seus torturadores. A Comissão chilena também revelou que 229 mulheres já estavam grávidas no momento da detenção. Mesmo assim, onze delas foram violadas. Os militares chilenos também colocaram ratos vivos nas vaginas das prisioneiras. Além disso, utilizaram cachorros para violar mulheres. Os militares argentinos também violaram homens. E faziam pose de heterossexuais.

Ditadura sui generis. Freud explica…

(Este texto contou com a imensa contribuição do jornalista Ariel Palácios – O Estado de São Paulo – que em dezembro de 2013 forneceu informações e dados estatísticos sobre a ditadura argentina)