Neste dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, trago aqui uma introdução sobre a intrínseca relação entre as escolas de samba e as religiões. Este é um tema onde há uma série de ângulos a serem observados.

Antes de mais nada, São Sebastião é um dos padroeiros da Portela, além de abençoar sua bateria. Também é padroeiro de outras escolas, como a União da Ilha do Governador.  Especificamente para o carnaval de 2014 é parte importante do enredo da Águia sobre o centro do Rio de Janeiro. A Portela tem duplo padroeiro, pois Nossa Senhora da Conceição também é cultuada como tal (08 de dezembro).

Vale lembrar que o sincretismo religioso se torna bastante válido neste universo influenciado e derivado diretamente dos culto afro-brasileiros – basta lembrar que vários dos fundadores de escolas cariocas eram mães e pais de santo. Originalmente as baterias emulavam em sua forma de tocar os ogãs, ritmistas dos terreiros de cultos, representando o culto mais forte em sua área de influência: se sabia o orixá de cada bateria pelo toque das caixas, que reproduzia o ritmo do orixá padroeiro da agremiação.

A religião afro-brasileira também influiu de forma considerável na estruturação dos desfiles, mas segundo o historiador e colunista Luiz Antonio Simas em artigo a este blog somente em 1976 tivemos os primeiros enredos e sambas dedicados diretamente a orixás ou a aspectos das religiões de matiz africana. Entretanto, já em 1966 o Império Serrano e a São Clemente citam Iemanjá em seus enredos sobre a Bahia. A Unidos da Tijuca, o Império Serrano e a Unidos de Lucas em 1976 trouxeram diversos aspectos ligados ao culto dos Orixás, sendo que a Tijuca enaltecia Exu e as outras duas escolas, Iemanjá – ambas em seu enredo sobre o mar. O Arranco do Engenho de Dentro em 1977 trouxe o primeiro enredo monográfico dedicado a um Orixá.

Em 1976 a Mocidade Independente teve um desfile bastante conturbado homenageando a famosa ialorixá Mãe Menininha do Gantois. Originalmente a mãe de santo somente aceitou ser enredo com o cumprimento de obrigações aos orixás, que não se realizaram a contento. Os cabelos raspados dos ritmistas (que representavam no enredo os ogãs) não foram entregues à Mãe Menininha em Salvador porque o portador sofreu um acidente durante o percurso.

Além disso o carro alegórico que representava Xangô não entrou de jeito nenhum na avenida – e já havia sido difícil tirá-lo do barracão – e o então diretor de carnaval Chiquinho do Pastel – hoje conhecido como Chiquinho do Babado, líder da maior casa de materiais de carnaval carioca, sofreu um sério acidente automobilístico no retorno do desfile. O trauma foi tão grande que jamais a escola voltou a abordar aspectos da cultura africana em seus enredos. [1]

Naquele mesmo 1976, no desfile do Império Serrano, Iemanjá teria incorporado em vários de suas filhas, também atravancando bastante a evolução da agremiação da Serrinha. Mais tarde, em 1994, o desfile sobre a Umbanda da Acadêmicos do Grande Rio (único na história do carnaval carioca a abordar a centenária instituição, embora neste 2014 o Império da Tijuca aborde de leve o tema) também teve inúmeros casos de entidades “baixando” em componentes.Imagem 379De lá para cá os enredos calcados em temas da cultura e religião africanas tornaram-se razoavelmente comuns, muitas vezes resultando em grandes sambas. Vale lembrar que dois dos três grandes sambas inéditos deste 2014 (Cubango e Salgueiro) tem elementos ligados aos orixás em seus enredos – o refrão do meio da Cubango, inclusive, é uma adaptação de um ponto de umbanda:

“Atotô Obaluaê, atotô Babá
tem batuque no xirê, chama pra dançar
Atotô babá, atotô Obaluaê
a demanda da Cubango é… vencer”

O Salgueiro, por outro lado, traz um samba bastante calcado nos Orixás e um refrão também do meio que ganhou o epíteto de “lista de presença”:

“Oxum Iemanjá Iansã Oxóssi caçador
Ossanha Ogum caô meu pai Xangô”

Não irei aqui dissertar sobre os significados dos sambas, mas algo interessante a se ponderar é que se faz necessário o pedido de licença às entidades para que elas sejam retratadas nos enredos. Normalmente quando isso não acontece a passagem pela avenida no dia do desfile se torna bastante acidentada, com problemas de todos os gêneros.

lailaVale lembrar também que muitos daqueles que fazem as escolas de samba cariocas tem como religião o Candomblé e a Umbanda. Talvez o diretor da Beija Flor Laíla seja o exemplo mais notório de tal Fé.

A ligação com as religiões de matiz africana é bastante eloquente, mas a relação entre a Igreja Católica e as escolas de samba tem sido marcada por uma tensão permanente. A Igreja católica não proíbe que seus fieis frequentem as escolas de samba, mas houve muitos problemas com escolas que pretendiam exibir símbolos religiosos ou mesmo falar em seus enredos e sambas sobre santos e símbolos católicos.

Quem não se lembra do “Cristo Mendigo” da Beija Flor (abaixo), que passou coberto? Ou do enredo sobre São Jorge do Império da Tijuca que não citava a expressão “santo” uma única vez?

Nos tempos do ultra conservador cardeal D. Eugênio Sales na diocese do Rio de Janeiro até enredos voltados a costumes foram censurados por ações judiciais da Igreja Católica – basta lembrar dos vários carros cobertos com plásticos da Acadêmicos do Grande Rio e seu enredo de 2004 sobre a educação sexual.01joaoNa gestão do atual arcebispo D. Orani Tempesta percebe-se uma nítida distensão das relações. O agora cardeal chegou a ir à Cidade do Samba visitar e abençoar os barracões, bem como vem mostrando uma maior flexibilidade no trato com as escolas e em enredos/sambas que perpassem os santos católicos ou aspectos da cultura cristã.

Vale lembrar que São Sebastião está no título do enredo já citado da Portela – algo que seria impensável anos atrás. Claro que o título também se refere ao primeiro nome de nossa cidade, mas em outros tempos seria impensável mesmo esta citação “dúbia” no título.

Um outro exemplo desta distensão entre a Arquidiocese do Rio de Janeiro e o mundo do samba é o fato de D. Orani Tempesta ter ido ontem à quadra do bloco do Cacique de Ramos almoçar com os sambistas e abençoar a imagem de São Sebastião (padroeiro do bloco) presenteada à instituição (abaixo, em foto do jornal O Globo).dom-orani-cacique-de-ramosToda escola, também, tem seu santo padroeiro (às vezes mais de um), e o sincretismo religioso entre os santos e os orixás é parte indissociável às escolas. Todas as quadras tem seu altar dedicado ao padroeiro e muitas comemorações de aniversário se iniciam com uma missa. Ou, para usar um exemplo recente, a nossa cerimônia de posse na diretoria da Portela se encerrou com um Pai Nosso.

Agora passamos a abordar a religião que é a verdadeira inimiga do samba: as igrejas evangélicas neo-pentecostais. Escrevi artigo sobre o assunto em 2012, onde faço algumas ponderações a partir da anunciada retirada do puxador Anderson Paz do samba por sua conversão – aliás, ele já está de volta, na Porto da Pedra, embora ainda se declare evangélico.aline-barros-1306635096

No artigo citado escrevi, entre outras coisas, que a conversão de sambistas e jovens às igrejas evangélicas estava dificultando sobremaneira a renovação do público das escolas de samba, dos componentes dela mesma e diluindo suas comunidades de origem. O samba é encarado como algo demoníaco por não representar a “louvação ao Senhor Jesus Cristo”, sendo portanto proibido. Vale lembrar que isso abre uma lucrativa reserva de mercado para a chamada “cultura gospel”, controlada pelos mesmos líderes destas seitas neo-pentecostais.

Também contribui para esta aura de inimizade – e até de perseguição – a estreita ligação das escolas com os culto afro-brasileiros e o sincretismo com os santos católicos. Claramente o samba é visto como um concorrente a estas seitas e como tal precisa ser combatido. Por outro lado, como também abordei no artigo citado o samba é considerado “indigno” como profissão – mas o que não falta é traficante evangélico… Ou seja, há um componente de controle social e financeiro bastante importante nesta relação de exclusão entre as igrejas evangélicas e as escolas de samba.

Finalizando, um pouco de minha tradição religiosa. A Igreja Messiânica, da qual faço parte e que tem origem japonesa, não tem em sua doutrina diretamente nada relacionado ao samba – até porque à época da fundação não havia samba no Japão. Entretanto, um dos pilares de sua estrutura considera que “tudo deve ser feito com equilíbrio, sem causar o mal a outrem”.16_01_2013Baseado neste princípio, temos muitos messiânicos ligados às escolas de samba. Um bom exemplo é o grande compositor André Diniz (acima), da Vila Isabel – inclusive, a esposa dele é Ministra (sacerdote) da Igreja. O falecido compositor da União da Ilha Alberto Varjão também, bem como outros compositores e integrantes da escola insulana – inclusive a rainha de bateria Bruna Bruno frequentou a Igreja por um tempo, embora hoje. ao que consta, esteja afastada.

Outra curiosidade é que diversos Ministros não só gostam de samba como se envolvem diretamente com escolas, incluindo os responsáveis pelas áreas de responsabilidade social e pela Juventude Messiânica do Estado do Rio de Janeiro.

Estou muito longe de esgotar o tema neste artigo, mas procurei introduzir as questões pertinentes na relação entre as escolas de samba e a religião. Relação intrínseca e indissociável.

[1] Informações retiradas do recente livro sobre a Mocidade Independente, de autoria da jornalista Bárbara Pereira;

(Imagens: O Dia, O Globo, SRZD, internet e Fabrício Gomes)