Neste sábado mais uma edição da coluna de contos sambistas do compositor Aloisio Villar.

Volta no Morto

Tive que rir né? Afinal Apolinério recebeu o troco merecido. Perguntei a Panguá se ele tinha mais alguma história envolvendo carnaval e o homem fez o sinal da cruz dizendo “to fora”. Logo depois levantou e foi ao 402.

Fui para o trabalho e depois passei na casa de meu pai para ir ao “Casa de Bamba”. Tempo que não íamos lá. Chegando pegamos uma “gelada” com o Almeidinha e perguntei ao Manolo como estava a situação do bar. O dono do local triste, respondeu que estava perto de fechar e entregar a chave pra igreja. Perguntei se não podíamos fazer nada e ele respondeu que a dívida era alta demais. Ficamos um tempo em silêncio e o homem perguntou se eu conhecia o Dodô do Estácio.

Respondi que não e meu pai percebeu um homem sentado em outra mesa bebendo uma cerveja e comentou “Ih, olha o Dodô ali!!”. Dodô tinha noventa anos e vivido tudo do carnaval. Manolo comentou “Cheguem lá que terão histórias deliciosas pro livro.” Peguei nossa cerveja e cheguei com meu pai à mesa de Dodô. O homem já conhecia meu pai e lhe deu um abraço nos convidando para sentar. Pedi mais uma cerveja para Almeidinha e começamos a jogar conversa fora.

Conversávamos quando ouvimos um barulho do lado de dentro do bar. Depois ouvimos a voz de Manolo reclamando com Almeidinha pelo garçom ter deixado cair um copo e Dodô bebericando a gelada riu e comentou: “Ufa, pensei que fosse o espírito de Borjalo”. Evidente que fiquei curioso com isso que o bamba falou e perguntei que história era aquela de “espírito de Borjalo”. O homem riu e contou a vida e morte do compositor de samba-enredo Borjalo.

A disputa na Acadêmicos da Guanabara sempre foi difícil. A escola é conhecida por ter os maiores poetas e os sambas mais famosos do Rio de Janeiro e foi assim até recentemente. Até que os talentosos e malandros Dudu, Martinho, Larcinho e Quito decidiram montar uma parceria.

Dudu e Martinho já eram compositores antigos da casa e se juntaram a Quito que era um excepcional cantor e que se transformara na voz oficial da escola e Larcinho, um garoto filho do vice presidente da escola, o sr Lárcio Sodré. Ganharam dois anos a competição na escola e como cada vez que se ganha fica mais difícil vencer no ano seguinte tinham que fazer algo para garantir o tricampeonato.

Conseguiram um patrocínio poderoso com o Major Barrosão, chefe da milícia na área que se dispôs a ajudar financeiramente no que precisasse a parceria, só querendo sua grana de volta em caso de vitória do grupo. Concordaram com a oferta e para fechar o grupo pensaram em um antigo compositor da Acadêmicos que há muito tempo não escrevia e se transformara no responsável pela quadra da escola, Gilberto Borjalo.

Parceria formada, fizeram o samba e foram para a disputa. A parceria era muito talentosa e conseguiu o tricampeonato. Grana preta garantida por mais um ano – segundo a Globo, R$400 mil.

Na semana seguinte Dudu, Martinho, Quito, Larcinho, Barrosão e Borjalo promoveram um mega churrasco no morro, com presenças até de políticos que promoviam o “beija mão” ao major. Barrosão dava tiros ao alto dizendo que quem mandava ali era ele e sempre ganharia o samba que ele quisesse na escola e que usaria a grana que os compositores lhe devolveriam para fazer uma escolinha de percussão na comunidade.

O dinheiro só saía depois do carnaval. A escola não fez um bom desfile, escapando do rebaixamento por pouco, mas escapou que era o que importava. Assim a parceria poderia planejar o tetra e ganhar mais dinheiro. Souberam que o dinheiro seria liberado na segunda de manhã e no domingo resolveram fazer uma festinha para comemorar. Quito era casado e Dudu homem caseiro, então não foram. A festinha foi comandada por Martinho e Larcinho.

Pelas tantas Larcinho comunicou a Martinho que tinha chamado Borjalo. Martinho perguntou se era uma boa, a festa estava cheia de mulheres, bebida, não era muito a praia de Borjalo que gostava mais de tomar café e jogar cartas, mas Larcinho mandou que o parceiro não se preocupasse que o “coroa iria se amarrar”.

Borjalo chegou um pouco depois e os três farrearam muito com cinco mulheres estonteantes, cheias de amor para dar e bebidas de todas as espécies. A farra durou a noite toda até que todos apagaram e Martinho acordou com o relógio tocando, era hora de pegar o dinheiro. Cheio de ressaca Martinho acordou e perguntou a Larcinho por Borjalo, o rapaz respondeu que não vira. Procuraram por toda a casa até que encontraram o velho no banheiro com a cabeça na privada. Borjalo estava morto.

Larcinho soltou um “puta que pariu” e correu para tirar a cabeça de Borjalo da privada. Martinho reclamava que bem que tinha dito para não chamar Borjalo e Larcinho revidou mandando que ele fizesse alguma coisa. Martinho pegou o telefone e ligou correndo para Quito e Dudu. Os quatro ficaram lá na sala com o corpo de Borjalo perguntando o que fariam. Quito respondeu que ligaria para a escola de samba informando o falecimento e perguntando por parentes para comunicar. Quando começou a discar o celular Dudu mandou que desligasse.

Dudu falou que não podiam fazer isso, porque se comunicassem a parte do dinheiro de Borjalo ficaria presa e sobraria para os quatro ter que dar a parte de Barrosão. Ficaria muito pesado para eles dividir aquela despesa em quatro em vez de cinco, quase sobraria nada. Larcinho disse que ele tinha razão e Dudu continuou dizendo que Borjalo não tinha mulher nem filhos então poderiam dar a parte dele toda para Barrosão e completar só com um pouco de dinheiro deles, seria perfeito: eles ficariam com muito mais dinheiro que pensaram, dariam o dinheiro de Barrosão e ficariam todos felizes.

Martinho disse que o plano era bom, mas perguntou como fariam aquilo.

Dudu, Quito, Martinho e Larcinho foram até a arrecadadora de direitos autorais com Borjalo a tiracolo de chapéu e óculos escuros copiando o filme “um morto muito louco”. A diretora do órgão notou que Borjalo estava muito quieto e os rapazes disseram que era ressaca. Ela entregou documentos à eles e disse que já voltava com os cheques.

Na saída dela rapidamente Dudu assinou os documentos referentes a Borjalo com assinatura perfeita e quando ela voltou entregaram os documentos e pegaram os cheques. Saíram dela, pegaram o dinheiro no banco, deixaram o corpo de Borjalo sem que ninguém visse na secretaria da escola e todos pensaram que ele morrera na agremiação. Depois entregaram a parte de Barrosão e concluíram o “crime perfeito”. Borjalo foi enterrado com a agremiação toda presente, um surdo fazendo a marcação do minuto de silêncio e os parceiros chorando sua morte – e com grana no bolso.

As semanas se passaram com tudo parecendo cair no esquecimento quando Dudu foi ao supermercado e voltando ao carro viu um bilhete no vidro. Pegou para ler e estava escrito “deram volta em morto”. Dudu se irritou com aquela brincadeira sem graça, mas deixou para lá e entrou no carro. Chegando em casa viu no espelho do banheiro escrito em batom “deram volta em morto, vão pagar”. O telefone tocou logo depois, ele começando a ficar assustado atendeu e ninguém falava nada do outro lado. Ficou realmente assustado.

A campainha tocou e Dudu cheio de medo abriu a porta. Eram seus parceiros de samba assustados relatando os mesmos tipos de fenômeno. Quito apavorado dizia que era o fantasma de Borjalo assombrando e Dudu mandava ele parar de ser ridículo que fantasmas não existiam. Martinho teve idéia de rezarem uma missa pela alma de Borjalo: eles foram até a igreja que o defunto freqüentava e fizeram. Mas não adiantou nada: a perseguição continuava.

Os quatro se reuniram novamente na casa de Dudu já pensando em contratar um exorcista quando bateram na porta violentamente. Quito se assustou dizendo que era a alma de Borjalo e Larcinho mandou que ele deixasse de ser idiota que fantasma não batia portas. Abriu a porta e Barrosão, que era um negão, entrou branco na casa com uns capangas armados e contou que há uma semana vinha sendo perseguido pelo fantasma de Borjalo. Sonhava com o defunto e recebia cartas dizendo que o dinheiro que recebeu era roubado de morto e que ele iria pagar por isso.

Dudu tentou desconversar dizendo que era mentira, mas um Pai de Santo que acompanhava Borjalo desmentiu Dudu afirmando que era verdade e que inclusive ele recebeu o espírito do morto dizendo que se vingaria de todos. A começar por Barrosão.

Barrosão fez o sinal da cruz e os quatro começaram a gaguejar e não dizer coisa com coisa. O pai de Santo completou que a única forma de Barrosão escapar da maldição era que dessem as partes de dinheiro deles ao miliciano. Martinho tremendo e gaguejando respondeu que não tinham mais a grana e nessa hora o miliciano e seus capangas sacaram as armas e apontaram aos compositores. O pai de Santo saiu de fininho da casa enquanto os quatro se ajoelhavam e pediam piedade.

Barrosão contou “um, dois…” E interrompeu a contagem pra perguntar: “vocês não estão ouvindo um tic tac?”.

Sim. Tinha um tic tac e a casa explodiu mandando tudo pelos ares.

Enquanto os bombeiros tentavam apagar o fogo da casa e a polícia entender o que ocorria, em outro canto da cidade o pai de Santo chegava com uma mochila para encontrar uma mulher que também tinha uma mochila. O homem deu um beijo na mulher e disse “o dinheiro do otário tá aqui, ele acreditou na história que seu irmão baixou em mim e falou que era dinheiro maldito”.

A mulher riu e respondeu “o dinheiro daqueles quatro idiotas também está comigo, esses nunca mais darão volta em morto, que se entendam com meu irmão no inferno”. Deram outro beijo e entraram em um carrão em direção ao aeroporto e desfrutar de todo aquele dinheiro.

Vai… Vai dar volta em morto pra você ver…