A coluna do publicitário Affonso Romero traz o segundo post de sua recente viagem ao Peru, abordando Cusco, Machu Picchu e o guia de nome brasileiro que o acompanhou.

Show de bola, Rivelino: Um Olhar sobre o Peru

Aviso: você não vai ler nada a respeito de futebol na coluna de hoje. Rivelino, no caso, não é o Garoto do Parque, brilhante meia, campeão do mundo em 1970. Ele chegará à história, mas apenas por vias transversas.

A coluna hoje é sobre a segunda parte da recente viagem ao Peru, a experiência única de ir a Cusco e Machu Picchu. Para começar: se puder, vá. Mesmo que eu, aqui, cumpra o dever de te contar também algumas coisas negativas.

Se você programar uma viagem a Cusco, certamente alguém (ou algum guia) vai te dizer que é preciso estar preparado para o soroche, o mal da altitude. Não é exagero: esteja mesmo preparado. Claro, você pode encontrar alguém que foi lá e não sentiu nada. Mas também pode colecionar relatos de gente que passou dias vomitando com dores no corpo. No primeiro caso, eu diria que esta é uma reação de um corpo abençoado por uma incrível capacidade natural de adaptação a condições adversas. No segundo grupo estão as pessoas que não deram ouvidos às dicas de como encarar a altitude.DSC00493Eu me incluí num grupo intermediário, daqueles que sentem os efeitos no corpo, mas superam. O caminho passa por chegar à cidade hidratado, alimentado (mas não depois de comer uma feijoada), sem ter consumido álcool, com roupa apropriada para a temperatura local. Evite esforços físicos, só carregue volumes de mão muito leves, não se apresse. Ao chegar ao hotel, sente-se confortavelmente e aceite o chá de coca que irão inevitavelmente oferecer.

Talvez, neste ponto, você esteja com duas dúvidas. A primeira seria sobre o tal chá (ou mate, como eles chamam). Não, não tem propriedades alucinógenas, não é uma droga, muito menos ilegal. Por exemplo, foi gentilmente ofertado pelo sempre atento e educado pessoal do Novotel (bandeira da francesa Accor – que eu recomendo fortemente). Tem em todo canto, faz parte da cultura andina, seu efeito equivale a beber um café forte: dá energia, desperta. A segunda é me perguntar: por que, afinal, eu senti o soroche mesmo tendo tido os cuidados necessários.

Bem, Cusco fica a 3400m. É o limite daquilo que se convenciona chamar de altitude moderada para a vida humana. Significa que o organismo acostuma bem, com o tempo. E tempo não era exatamente o que eu tinha. Cheguei na quinta-feira pela manhã e teria apenas este dia para conhecer Cusco. Na sexta, fui à Machu Picchu.DSC00505Ainda assim – e mesmo com o mate de coca – precisei de algumas horas de sono para adaptar o organismo à relativa falta de oxigênio no ar rarefeito e seco. Acordei então com uma dor de cabeça bem forte e um enjôo leve. Segui à risca as instruções de não me deixar abater por estes sintomas e sair para uma caminhada leve pela cidade – o que diminuiu o mal-estar.

O que vi encantou os olhos. Há um quadrilátero na cidade em que a história do povo Inca, somada à epopéia espanhola na América, brota de cada fresta dos muros e catedrais. É possível passar horas apenas na Plaza de Armas, em torno da qual está a catedral mandada erguer pelo conquistador Francisco Pizarro. Os jesuítas não deixaram por menos e construíram uma igreja igualmente monumental na mesma praça. Outros prédios e igrejas foram erguidos pelos colonizadores e derrubados pelos constantes tremores de terra.

Até que os espanhóis se deram conta de que a técnica de construção inca impedia os efeitos dos terremotos sobre as construções. Como resultado, passaram a erguer sua arquitetura sobre bases e muradas de antigos templos incas. Desta forma, a área central de Cusco tem traços ibéricos sobre bases indígenas.DSC00642

Quem procura sítios arqueológicos deve dirigir-se aos arredores da cidade. Como comentei antes, o tempo disponível não me permitia esta digressão.

Quando o colonizador chegou, encontrou uma civilização local abalada por uma intensa guerra civil que findara há pouco. Cusco havia sido, por séculos, uma quase inexpugnável capital de um império poderoso que se estendia do atual território da Colômbia até o norte da Patagônia chilena, dominando completamente os Andes.

Era uma das maiores cidades do mundo conhecido, com um tamanho igual ao atual já há 500 anos atrás. No idioma quíchua, Cusco significa “umbigo”. A cidade era, portanto, o centro do universo incaico. As fortalezas ao redor do poder imperial (e divino) do grande Inca (na verdade, o nome dado à toda civilização era apenas usado como título do governante) não serviram de proteção, uma vez que o líder guerreiro havia sido seqüestrado e traído fora de seus limites.

Cusco não caiu por batalha, mas foi corroída pela presença do colonizador espanhol. Sob nosso ponto de vista ocidental, de quem vive os dias atuais, Cusco foi transformada e reinventada. A partir da fundação de Lima perdeu seu esplendor, poder e centralidade. O resultado pode ser medido pelo contraste entre as áreas periféricas e o centro histórico. Você vai se assustar ao pousar em espiral num aeroporto confuso e mal estruturado. Vai cruzar (de van ou táxi) uns poucos quilômetros de uma cidade que vai te parecer feia, coberta de poeira, empobrecida. Mas a área central mostra o contrário e mantém-se como referência daquele choque entre culturas cuja visão ensina mais que qualquer livro, e este é o primeiro motivo que justifica a visita.DSC00571

O segundo motivo é que Cusco é a porta aérea para a região de Machu Picchu, um dos passeios mais imperdíveis que se possa imaginar.

Gosto de viajar por conta própria, sem estar atrelado a grupos guiados por agências turísticas. Mas seria um risco tentar ir a Machu Picchu desta forma, porque há um limite permitido de visitantes por dia, e claro que as agências bloqueiam a maioria das entradas. Sendo assim, contratei, através da CVC, os serviços da ótima agência Viajes Pacífico nos transfers peruanos e neste passeio.

E é aí que entra o Rivelino, o excelente guia local, cujo nome de batismo é uma homenagem do pai dele (fanático pelo Brasil e tudo que seja brasileiro) ao grande craque dos anos 1960 e 1970. Eu supus isso no momento da apresentação, mas só confirmei ao final do dia. Rivelino, ao contrário do pai, nunca viu o craque jogar e transpira um orgulho patriótico que me fez pensar duas vezes se seria boa idéia perguntar se o nome dele era uma homenagem a um estrangeiro.DSC00707

Rivelino era responsável pela condução de cerca de duas dezenas de turistas brasileiros. Deu as boas-vindas na estação de trens de Cusco, onde o grupo se dividiu em alguns micro-ônibus. Sim, durante um período do ano, os trens não chegam a Cusco, por conta das condições climáticas, e a empresa ferroviária disponibiliza transporte até uma estação que fica já no vale do Rio Urubamba, o fértil vale sagrado para os incas. Sobe-se a quase 4000 metros e, daí, mergulha-se em direção ao vale assistindo ao espetáculo do nascer do sol sobre as montanhas que desenham a fronteira entre a Cordilheira e o início da floresta amazônica.

No início da estrada que contorna o rio sagrado, o grupo é transferido para o trem. Atento, Rivelino desdobra-se em muitos para reunir e redistribuir os turistas pelos vários vagões, com lugares marcados.

Escolhi fazer a viagem no VistaDome, uma composição de padrão turístico superior com janelas de vidro até o teto, que torna a paisagem ainda mais bela. O semi-deserto vai sendo transformado em floresta, que se adensa à medida em que o café da manhã é servido. Foi a segunda refeição do dia, já que eu havia acordado no final da madrugada e aproveitado o riquíssimo desjejum servido pelo hotel.DSC00703

O trem chega à pequena cidade de Águas Calientes, localizada no sopé da montanha onde pousa a cidade perdida dos incas. Nova transferência para micro-ônibus, depois da terceira dentre inúmeras contagens dos “pintinhos” pelo Rivelino, zeloso como uma galinha-mãe.

Ao entrar no sítio arqueológico, sobe-se uma escadaria íngreme em zigue-zague por quase dez minutos. Este é seu rito de passagem. Se você não enfartar na subida, certamente resistirá à emoção da visão da cidade de Machu Picchu, vista ali de cima pelo turista que chega por esta rota. É o momento de fazer poses para aquela panorâmica tradicional que ficará emoldurada no porta-retratos sobre a mesa de trabalho de 90% das pessoas que foram ao Peru.

Mas também é a hora de brilhar a verve de nosso amigo Rivelino. Apesar de todo seu orgulho peruano, o guia apresenta-se primeiramente como cusquenho, e é esta sua identidade mais forte. Claro que há um subtexto de afirmação de ancestralidade incaica.DSC00678

E Rivelino discorre sobre a verdadeira história da conquista espanhola. Ainda que você não ligue nada para a História (neste caso, provavelmente você não vá a Machu Picchu), ficará bem impressionado com o jeito emocional com o qual o guia conta o que houve com seu povo, antes e depois da chegada de Pizarro.

Mais do que uma informação precisa e fria, Rivelino coloca sua platéia no contexto da criação daquele local, de como foi habitado, posteriormente abandonado e, já no século XX, redescoberto.

Sabe-se que o pesquisador norte-americano Hiran Bingham, em uma expedição bancada pela Universidade de Yale, à procura de uma cidade que teria sido a última capital inca (depois da tomada de Cusco), descobriu meio que por acaso a cidadela de Machu Picchu tomada pela mata no alto da montanha.DSC03237

Esta historiografia oficial, com todos os seus vícios eurocêntricos, omite que a cidadela havia sido descoberta cerca de dez anos antes pelos habitantes locais. Estes, sim, haviam mostrado sua localização a Bingham. Rivelino mostra estas contradições àqueles que têm a sorte de fazer a visita guiados por ele. Com isso, dá a oportunidade ao turista de compreender cada passo do processo contínuo de colonização e desmontagem cultural a que todos os povos explorados estão expostos.

Você pode ficar impressionado pela beleza de Machu Picchu, deixar-se levar pela aura mágica do local, conhecer um pouco mais sobre a história. Tudo isso pode ser feito por livros e fotos, como estas que o editor seguramente selecionou dentre as que eu enviei do meu acervo pessoal. Você pode mergulhar mais intensamente nestas sensações ao visitar o sítio arqueológico. Mas nada substituirá a experiência de ter ao seu lado um peruano-cusquenho-inca de nome exótico, muito conhecimento, uma imensa paixão por sua origem e uma emoção.DSC00590