Nesta segunda feira, a coluna “Bissexta”, do advogado Walter Monteiro, desmistifica e esclarece a PEC 37, alvo de reivindicações nos recentes protestos pelo Brasil.

PEC 37 – Você realmente sabe do que se trata?

A primeira vez que toquei no assunto foi em uma postagem no meu perfil do Facebook. A Globo News transmitia ao vivo a manifestação de 2a feira em SP e dizia que alguns manifestantes estavam ali lutando contra a aprovação da PEC 37. Eu não lembrava do que se tratava e fui googlar, descobrindo que se tratava da proposta que alteraria poderes do Ministério Público.

Caramba, secundaristas se envolvendo em uma batalha corporativa dos promotores? Eu desdenhei.

Mas em 3 dias tudo mudou. Já que a luta não era mais por vinte centavos, algo precisava canalizar as insatisfações. E a PEC 37 assumiu a dianteira da indignação nacional. Agora mesmo, enquanto escrevo, sexta feira à noite, vejo a TV mostrando milhares de pessoas bloqueando o acesso ao aeroporto de Guarulhos. A maior das faixas que os manifestantes carregam é direta: não à PEC 37! De uma hora para outra, essa passou a ser a questão mais relevante do país.

Desde então minha diversão predileta tem sido perguntar aos que se somam à onda de protestos do que se trata a famosa PEC 37. E a resposta está sempre na ponta da língua: é um projeto que impede o MP de investigar, o que favorece a corrupção.

Que pena, tanta gente revoltada à toa… Porque a PEC 37 pode ser muita coisa, mas definitivamente não é nem de longe isso o que as pessoas imaginam.

A Constituição Federal, no art. 129, trata das atividades do MInistério Público. E a PEC 37 acrescenta um parágrafo ao art. 144, que trata da segurança pública. Sua versão original (sim, já chego lá, ela está em outra versão) não mexia uma vírgula do art. 129. Só isso deveria dar para desconfiar que alguma coisa está fora da ordem no senso comum.

Originalmente, a PEC 37 era apenas um singelo parágrafo ao art. 144, o qual reproduzo: “a apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1º e 4º deste artigo, incumbe privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.” 

Quem tiver a curiosidade de ler o art 129 (o do Ministério Público), vai descobrir que entre as funções previstas para nossos caros promotores não se previu a investigação penal. Que, como até as pedras atiradas na Alerj sabem, sempre foi e sempre será uma atribuição da polícia, mundo afora. Até aí não há divergência.

O problema da PEC 37 (insisto, na versão original) era a expressão “privativamente”. Porque embora o art. 129 não incluísse entre as funções do MP o dever de investigar, ele também não proibia. Com isso, o MP às vezes investiga, quando lhe dá na telha.

E, além de investigar, o MP exerce, aí sim em cumprimento à Constituição, duas atividades-chave: requisitam diligências investigatórias para a polícia (ou pedem a instauração da investigação) e são o controle externo da polícia. No Brasil real (não esse que sai nos jornais) não é difícil supor que policiais e promotores vivem às turras, uns culpando aos outros pelo flagelo da nossa política de segurança.

A PEC 37, amigos, é uma espécie de vingança dos policiais: vamos tornar explícito aquilo que a Constituição deixou implícito, deixando claro que investigar é conosco, processar é com o MP. Uma solução claramente radical e, creio, inadequada. Mas uma iniciativa de policiais, que fique bem claro. Não tem nada a ver com mensaleiros, deputados corruptos e coisas do gênero.

E isso nem importa tanto, nessa altura dos acontecimentos. Porque a PEC, convenhamos, é de junho de 2011, dois anos já se foram, onde muita coisa aconteceu.

Foram realizadas, por exemplo, quatro audiências públicas pelo Congresso Nacional, ouvindo várias entidades de promotores e de policiais, a OAB, professores de Direito – gente para caramba, enfim. Além disso, foram anexados vários pareceres técnicos e decisões judiciais do STF, ora mostrando que os promotores podem investigar, ora dizendo que não.

Não quero aporrinhar o leitor com coisas chatas do mundo do Direito, menos ainda aprofundar um debate para lá de complexo, mas pelo menos uma opinião quero destacar, pois vem do insuspeito Ministro Gilmar Mendes (no julgamento do Habeas Corpus 84965), tucano conservador até o último fio de seus raros cabelos:

No modelo atual, não entendo possível aceitar que o Ministério Público substitua a atividade policial incondicionalmente, devendo a atuação dar-se de forma subsidiária e em hipóteses específicas, a exemplo do que já enfatizado pelo Min. Celso de Mello quando do julgamento do HC 89.837/DF.

Até aqui ficam claras três coisas: a) o MP não tem, ao menos de forma explícita, poder algum de investigar; b) ainda que de forma implícita, há dúvidas se ele pode ou não investigar amplamente (o Gilmar Mendes, repito, acha que não pode); c) a PEC 37 era uma tentativa de colocar fim a essa dúvida, deixando claro que investigação era caso de polícia.

Entretanto, o lobby do MP foi muito forte e rapidamente encontrou eco na imprensa ainda lá atrás. Os promotores, pegando carona na sentimento espalhado entre os brasileiros de que há um pacto sombrio pela corrupção, disseminaram o conceito de que se tratava da “PEC da impunidade”.

O que, a meu ver, até foi positivo, porque permitiu melhorias na redação original. O substitutivo aprovado pelo relator e que iria à votação em plenário tinha as seguintes características:

a) apesar de manter a incômoda expressão “privativamente” para as investigações policiais, acrescentava uns incisos, para ressalvar a competência das CPIs e dos Tribunais e do próprio MP na apuração dos crimes de seus membros;

b) mudava, enfim, o art. 129 da Constituição (o que trata das funções dos promotores, para atribuir competência investigativa (subsidiariamente à polícia) nos crimes contra a Administração Pública (leia-se corrupção em sentido amplo) e de crime organizado;

c) também deixava claro que o MP pode sempre complementar a investigação policial e exercer atribuições investigativas previstas pela lei e pela Constituição.

d) tornava indiscutivelmente legais todas as investigações realizadas até hoje pelo MP, retirando-as do campo da incerteza e evitando a anulação de processos, como disseram os Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello.

A quem, como eu, não está no centro desse debate, a solução adotada parece MUITO melhor do que o quadro de indefinição que temos hoje. Eu continuo discordando da expressão “privativamente”, mas a solução para isso é muito simples, basta votar uma emenda em plenário que retire essa expressão.

Mas ainda que fique do jeito que o relator propõe, uma coisa é certa: quanto aos crimes de corrupção, esses que estão levando as pessoas às ruas, fica claro que os promotores não apenas vão poder, mas passarão a ter o dever de investigar. Caso encerrado?

Não para os promotores. Eles não aceitam, de jeito nenhum, que tenham que trabalhar de modo subsidiário (isto é, complementar) à polícia. Se não puderem ter o comando das investigações, não serve. Nada pode ser mais corporativo do que se negar a dar as mãos à polícia para realizarem juntos (ou melhor, em paralelo) o trabalho de investigação, colocando em segundo plano qual corporação tem primazia sobre a outra.

O leitor, se teve paciência de chegar até aqui nesse tema modorrento, já tem base suficiente para ver que, goste-se ou não da PEC 37, é um exagero retórico chamá-la de “pec da impunidade” e é totalmente equivocado acreditar que ela reforça a corrupção, prejudica as instituições ou mesmo “retira” do MP o poder de investigar, quando parece ser justamente o contrário.

Ok, na queda de braço entre polícia e MP, os primeiros parecem ter vencido a batalha. Mas vamos combinar que não vai ser o fim do mundo se o nosso sistema de investigação passasse a ser exatamente como está na proposta que seria votada, para a qual será necessária a aprovação de 3/5 do Congresso – se os argumentos dos promotores é tão bom, por que não convencer os deputados que a expressão “privativamente” é tão malévola?

Acrescento que os promotores apresentaram um substitutivo de autoria deles, cuja diferença é a supressão da expressão “privativamente” e do parágrafo que institui o dever de investigar crimes de corrupção de forma subsidiária. No resto, eles estão de acordo. Por que então não irmos ao voto no Congresso?

Não sei.

E uma coisa ainda não fechava na minha cabeça: como é que uma questão tão técnica e tão centrada em lutas internas de grupos de servidores públicos de uma hora para outra comoveu a nação? Ah, mas nada nessa vida é por acaso. Nem necessariamente bem intencionado.

Como a multidão estava nas ruas sem uma pauta específica, alguém soprou para os jornalistas que cobriam a manifestação que o povo estava contra a aprovação da “pec da impunidade”, a tal que iria “impedir” o MP de investigar. Nesse país de preguiçosos, ainda que a verdade esteja ao alcance de alguns cliques, acredita-se em qualquer coisa mesmo. Mais ainda diante do clima de radicalização que se abateu sobre nós.

Esse sopro só pode ter sido intencional. Pouca gente sabia (eu também não sabia), mas a votação da PEC 37 estava prevista para semana que vem e agora foi cancelada. Quem trouxe o tema ao front de batalha o fez com intenção deliberada de impedir a votação na marra. Dois anos de trabalhos jogados no lixo, pelo berro de tanta gente bem intencionada, mas que não tinha a menor noção do que realmente está em jogo.

Eu não sei quem sairá ganhando ou perdendo depois dessa semana louca que vivemos. Mas o primeiro e talvez maior vencedor é o lobby dos promotores, que se aproveitou da costumeira desatenção que nos assola e, às custas de meias-verdades, transformaram sua briguinha particular com o lobby dos policiais em uma questão de segurança nacional.

A quem interessar possa, o CNJ informa: a cada 4 investigações, apenas 1 é concluída. A cada 100 homícidios, só 5 são esclarecidos. Enquanto policiais e promotores brigam pela primazia de conduzir as investigações, a impunidade dos crimes cotidianos se alastra a partir das idas e vindas dos inquéritos entre as duas corporações.

Esse sim é um tema de máxima urgência e gravidade, mas que, ao que tudo indica, não parece incomodar a ninguém. Só o que importa é aproveitar a agitação frenética das ruas para emprestar bandeiras a quem aceita empunhá-las sem saber a que se destinam.

One Reply to “PEC 37 – Você realmente sabe do que se trata?”

  1. Interessante análise. De qq maneira, o fato de tirar dos Procuradores a liderança e privacidade nas investigações que pretendem realizar, não poderia de certa forma, facilitar vazamentos que favoreçam os investigados?

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