Nesta segunda feira, a coluna “Histrórias Brasileiras”, do historiador Luiz Antonio Simas, conta a história dos dois países que foram à guerra devido a um jogo de futebol.

Guerra Justa – ou a mãe de todas as guerras

Recebi dia desses a seguinte mensagem por email:

– Simas, você acredita que houve alguma guerra de fato justa na história da humanidade?

Diante de tal indagação, lembrei–me imediatamente da máxima de Bill Shankly, técnico do Liverpool nos anos 60 e 70: O futebol não é uma questão de vida ou morte; é muito mais do que isso.

Recorro à frase do gringo sobre o futebol por conta de um episódio que ocorreu nos idos de 1969 e é, curiosamente, pouco mencionado nos compêndios sobre a história da América. Aconteciam, então, os jogos eliminatórios para a Copa do Mundo de 1970.

Parágrafo brasileiro: O escrete canarinho atropelou, naquele certame, todos os adversários de forma impiedosa. Não vi aquele time jogar, mas imagino do que foi capaz um ataque com Jairzinho, Pelé, Tostão e Edu. Meu velho avô afirmou certa vez, diante do meu pasmo infantil sobre os feitos das feras do Saldanha, o seguinte:

– Moleque, só pra você ter uma ideia do que foi aquele ataque, te digo uma coisa: Jogavam até mais que a linha de frente do Vila de Cava, com Capiroto, Curupira, Corno Manso e Abecedário.

E eu, fã absoluto do esquadrão do Vila, maior portento da história da várzea de Nova Iguaçu, imaginava o que deve ter sido este escrete das eliminatórias da Copa de 70. O Pelé, admitamos, jogava mais que o Curupira e o Tostão deixava o Abecedário no chinelo. Jairzinho e Edu se equivaliam, na avaliação do meu avô, a Capiroto e Corno Manso – dois verdadeiros estetas da redonda, que aliavam rapidez e habilidade.

Mas antes que eu me perca nesse arrazoado e troque a guerra justa por Nova Iguaçu – meu íntimo desejo – volto ao tema. Eliminatórias para o Mundial de 1970, América Central. A guerra justa. Honduras e El Salvador, países limítrofes que nunca se bicaram, foram disputar, num confronto direto, uma vaga para a Copa do México.

No primeiro jogo, em Tegucigalpa, Honduras fez valer o fator campo e ganhou por um gol. No jogo da volta El Salvador devolveu o resultado com juros e sapecou um 3X0 contundente nos adversários. A negra foi realizada em campo neutro, na Cidade do México. Após um jogo impróprio para cardíacos, El Salvador venceu, na prorrogação, por 3X2.

Com acusações de ambos os lados, suspeitas sobre a arbitragem, denuncias de suborno, centenas de suicídios em praça pública e cenas de pugilato no campo e nas arquibancadas, aconteceu o inusitado: Honduras achou por bem expulsar milhares de imigrantes salvadorenhos de seu território.

El Salvador, estimulado pela classificação para o mundial, respondeu na bucha, com ares de potência, e mandou o exército invadir o território inimigo. Começava, no dia 14 de junho de 1969, a Guerra do Futebol, o conflito bélico mais sério da história contemporânea; uma senhora pancadaria, de fazer as guerras napoleônicas terem a dramaticidade de um piquenique na Quinta da Boa Vista, de um passeio de pedalinho em Paquetá.

O confronto durou seis dias, vitimou cerca de 5.000 pessoas, fez o trio de arbitragem do jogo final pedir proteção a organismos internacionais, mobilizou a ONU, a OEA e a Cruz Vermelha, gerou milhares de refugiados e só terminou com um cessar-fogo negociado e a criação de uma zona desmilitarizada na fronteira – onde jogos de futebol foram terminantemente proibidos. Não podia ter nem linha de passe, paredão ou altinho, para não dar quizumba.

O governo salvadorenho comparou o conflito, por sua dimensão histórica e importância geopolítica, à Guerra dos Cem Anos, entre Inglaterra e França, que mudou as fronteiras da Europa e a história do Ocidente. A pancadaria ficou conhecida, inclusive, como a Guerra das Cem Horas.

Depois dessa zorra toda, El Salvador foi disputar o torneio no México. A torcida, estimulada pela épica classificação, sonhava, pelo menos, com um terceiro lugar. Os jogadores, saudados como heróis de guerra, receberam condecorações, desfilaram em carro aberto e o escambau. Enquanto isso, em Honduras, rituais pré-colombianos, que incluíam preces diárias ao sol e outras mumunhas, clamavam pela desgraça do selecionado rival na copa.

A mandinga funcionou.

A campanha da seleção salvadorenha no certame foi a seguinte: perdeu da Bélgica (3X0), do México (4X0) e da URSS (2X0). Com o pior desempenho do mundial, sem marcar um mísero gol, o onze centro-americano não passou da primeira fase e voltou mais cedo pra casa. O time de heróis foi devidamente recebido com pedras, moedas e hortifrutigranjeiros no aeroporto.

Os hondurenhos, tremendamente felizes com o papelão dos rivais, fizeram carnaval fora de época e o escambau.

Fico por aqui. Era isso que eu tinha a dizer, para atender ao pedido que recebi, sobre alguma pancadaria por motivo nobre entre os homens.