Corinthians Campeão Mundial

Iniciando verdadeiramente os trabalhos deste Ouro de Tolo para 2013, a coluna “Lacombianas”, da jornalista Milly Lacombe, trata do recente título mundial conquistado pelo Corinthians, sob o ângulo do “jornalista torcedor”.

E, mais que tudo e mais que a crônica da conquista, é a crônica de uma bela história de amor. O leitor entenderá.

A arte de aprender a aceitar a vida

Não há nada seguro no futebol. Assim como não há nada seguro na vida que, quando menos esperamos, resolve mudar a música que estávamos dançando – e isso acontece, ironicamente, quando parece que finalmente conseguimos encaixar o passo. Nessa hora, resta apenas aceitar a nova batida e acertar a ginga que esse grande DJ cósmico espera que rebolemos. 

O futebol segue a mesma cartilha do inesperado, e talvez seja o jogo que melhor retrate a experiência humana, essa nossa jornada abundante em imprevisibilidades.

Exatamente por isso, e porque vejo com paixão e atenção esse jogo há 40 anos, não me permiti comemorar o titulo mundial do Corinthians nem um minuto antes do apito final, a despeito do que faziam ao meu redor. Um pensamento me desesperava: se o time inglês empatasse, iríamos para a prorrogação completamente remendados: 12 volantes, 35 zagueiros, nenhum atacante. Se houvesse prorrogação, perderíamos de goleada. O perigo era real demais para me permitir sonhar. 

Assim, mergulhada num oceano de medo, os minutos de acréscimos demoraram meses para passar. Meses tão longos e sofridos que me levaram a lembrar-me da primeira vez que vi o Corinthians jogar no Pacaembu, da primeira vez que ouvi aquela torcida doida gritar alucinadamente pelo time depois do gol do adversário, coisa que nunca tinha visto outra torcida fazer na vida. Que tipo de torcedor maluco consegue pular e cantar “timão ê ô” segundos depois de levar um gol? 

Aos poucos fui entendendo que para o corintiano a vitória, embora sempre desejada, não é fundamental. Fundamental para esse alucinado é ver o time em campo, correndo, lutando a cada minuto, a cada segundo, a cada instante. Fundamental é sentir a entrega, é conseguir perceber que os onze que estão em campo estão se dedicando como cada um daqueles malucos da arquibancada faria se estivesse no gramado. Para ele, meio Tevez sempre será melhor do que mil Gansos. 

Nasci no Rio, onde aprendi a amar o Fluminense, time que já me deu incontáveis alegrias e tristezas na vida, e que me ensinou que o essencial do jogo é ter a coragem de se permitir sentir, ter a ousadia de lidar com o medo que aparece imponente e soberano nos segundos finais de uma vitória improvável.

Meu tricolor, muito cedo na vida, me ensinou uma das mais belas lições dessa jornada: aprender a sofrer. Zico, Dinamite, Adílio, Tita… como esses desgracentos me causaram dor, meu Deus. Mas houve Rivelino, Dirceu, Doval, Gil, Cafuringa, Washington (dois deles), Assis, Edinho etc etc etc que estavam lá para me dizer: “segura a onda. Haverá dias melhores e todo esse amor terá valido a pena”. 

E quis justamente o amor que um dos times que mais me fez sofrer na vida – o Corinthians, e mais especificamente o Corinthians de 76 – fosse conquistar um espaço no meu coração. 

Foi por muito amor que, já morando em São Paulo, para onde me mudei aos dez anos, me mandei para o Pacaembu numa tarde qualquer de domingo de 2002 para ver o time da mulher que havia me arrebatado de paixão. Era um sacrifício justo, como são todos aqueles feitos em nome do amor. E foi ali dentro que escutei pela primeira vez na vida uma torcida explodir depois do gol do adversário. Que maluquice, pensei, ainda sem saber que estava começando a ser conquistada. 

Foi uma questão de tempo para me pegar comemorando um gol no último minuto de jogo. Tinha ficado maluca eu também? E, como continuei voltando ao Pacaembu, continuei sendo fisgada, semanalmente, por aquela torcida de doidos que cantava sem parar durante 90 minutos e fazia o meu amor muito feliz. Como não amar o amor da vida da pessoa amada? 

Aos poucos fui percebendo outras peculiaridades do corintiano.

Para ele sempre será mais importante colocar 15 mil pessoas dentro do aeroporto durante o embarque do time para o outro lado do mundo do que conquistar esse mesmo mundo. Sempre será mais importante deslocar 30 mil doidos para o Japão do que gritar “é campeão”. Sempre será mais importante cantar durante o jogo inteiro do que lamentar o gol do adversário. E, como uma alma que apenas recentemente aprendeu a admirar esse time, eu talvez tenha alguma dificuldade para entender essas particularidades.

Por isso, naquele 16 de dezembro, perto das dez e meia da manhã, eu estava em pânico. 

Foi apenas com o apito final que consegui colocar as mãos no rosto e chorar. Então o Corinthians havia feito aquilo que disseram que o Corinthians nunca faria: cruzar o mundo e vencer. E naquele instante uma mistura em doses iguais de alegria e dor me invadiram.

Porque a mulher que me ensinou a amar o Corinthians, por uma dessas imprevisibilidades da vida, e pelas rodas de um motoqueiro imprudente que nos privou dela em um fim de tarde de sexta-feira [N.do.E.: 04 de novembro de 2011, por uma infeliz coincidência o dia em que faço aniversário], já não estava mais aqui e não pôde ver nem a conquista da América nem a do mundo.

E então eu chorei.

Chorei de saudade, de vontade de abraçar a corintiana mais corintiana que conheci na vida, vontade de sair com ela pelas ruas da cidade gritando “aqui tem um bando de louco”, vontade de vê-la pendurando a bandeira do Corinthians na janela da sala, vontade de ver aquele sorriso perfeito escancarado em regozijo, vontade de perambular com ela no dia seguinte para comprar todas as revistas e jornais, e depois ver com ela o VT do jogo. 

Mas faz parte desse jogo da vida aprender a aceitar; aceitar a derrota no último minuto, aceitar a injustiça de um pênalti não marcado, aceitar que uma pessoa muito amada saia para correr no parque no fim de um dia ensolarado e nunca mais volte, aceitar que aqueles que chegaram ao mundo depois de você partam antes.

No futebol e na vida é preciso aceitar. E há um ano e um dois meses eu abro os olhos todos os dias e penso que tenho que aceitar, simplesmente aceitar. E então me levanto, e lavo o rosto e escovo os dentes e sigo para o dia sabendo que já não posso mais fazer a ela a pergunta que sempre fazia depois de um jogo difícil: “o que achamos do jogo?”.

Uma pergunta que tinha a capacidade de fazer com que ela me explicasse tudo, muito detalhadamente, porque nunca conheci alguém que entendesse do jogo mais do que ela: nem meu pai, nem o Tite, nem o PVC, nem o Tostão, nem todos juntos. Não estou exagerando. 

E aceitar que talvez exista um lugar não muito longe daqui onde poderemos reencontrar aqueles que amamos e que nos deixaram cedo demais. Abraçá-los demoradamente do jeito mais forte do universo e depois dizer:

“O que foi aquele jogo?”.

(email para a colunista: lacombianas@pedromigao.com.br)