Neste sábado, a coluna “Cinecasulofilia”, do professor, crítico e cineasta Marcelo Ikeda, discorre sobre o cinema brasileiro atual.
Como sempre, publicado em conjunto com o blog de mesmo nome.
Um cenário de mudanças e o porvir
O Brasil é um país que sofreu diversas transformações na última década e o cinema brasileiro pôde, de maneiras sutis, acompanhar esse percurso de mudanças. Acredito que esse contexto de transformações pode ser associado ao início deste século.
É curioso, pois o cinema ganha vida exatamente na virada do século XIX para o XX. Praticamente cem anos depois, o cinema passa por um outro contexto de crise: uma reavaliação das suas possibilidades enquanto expressão artística e como produto de massas.
Essas transformações estão diretamente relacionadas a mudanças nas formas de produção e de difusão de obras audiovisuais. De um lado, a produção de obras audiovisuais se tornou muito mais acessível com o vídeo, e especialmente com o digital.
Os equipamentos de gravação e de finalização de imagem e de som se tornaram ainda mais portáteis e com preços mais acessíveis, com uma qualidade técnica que cada vez mais se aproxima das linhas de equipamento “profissionais”. É certo que o vídeo não é uma invenção do novo século; no entanto, a velocidade dessas transformações foi intensificada com a popularização do digital, trazendo impactos imediatos na produção de obras audiovisuais. Tornava-se possível produzir obras baratas, com um equipamento portátil, com uma qualidade técnica que pouco deixava a dever às produções profissionais.
No entanto, essas obras prontas não conseguiam ser exibidas num circuito dominado pela película 35mm, inclusive nas mostras e festivais de cinema, que ainda viam o vídeo como um suporte amador ou semiprofissional.
Esse contexto de transformações, portanto, avançou para o cenário de difusão. Primeiro, com o surgimento de vários cineclubes, que funcionavam como pontos de encontro dessa jovem geração. Em seguida, com o surgimento de novas mostras e festivais de cinema que passaram a dar uma maior abertura para essa produção.
É preciso lembrar que o cinema brasileiro ainda se recuperava, a passos trôpegos, de um grande trauma: os atos do Governo Collor que ameaçaram a sobrevivência do filme nacional, retirando o apoio do Estado.
Com isso, os festivais sofreram a responsabilidade de serem territórios de defesa de que “o cinema nacional precisava existir”, procurando mostrar a “respeitabilidade” dos seus valores de produção e o profissionalismo de seus integrantes. Esses “discursos de defesa” foram imprescindíveis no percurso da “retomada”, mas tiveram suas contra indicações: os filmes brasileiros do período eram em geral pouco ousados, de modo que uma jovem geração pouco se identificava com o cinema que era produzido à época no país.
Começavam, então, a surgir no país, mostras e festivais de cinema que deram espaço a essa jovem geração, cujos valores não se integravam ao discurso oficial da “classe cinematográfica brasileira”.
Entre elas, destacam-se a Mostra do Filme Livre (RJ), a Mostra de Tiradentes (MG), o CineEsquemaNovo (RS), a Janela do Cinema (PE). Entre esses, em 2009, surge a Semana dos Realizadores.
Esses jovens realizadores encontravam um contexto favorável de transformações e reagiram a ele, com uma forte presença de uma cinefilia que se irradiou através de relações em rede, possíveis com a internet.
Propunham filmes baratos, com equipes reduzidas, com a proeminência de modos colaborativos de produção, rompendo a hierarquia tecnicista das equipes de filmagem dos tradicionais modos de produção industrial.
Basearam-se no hibridismo, tanto de suportes físicos (bitolas) quanto de gêneros e linguagens. Examinaram as fronteiras entre o documental, a ficção e o experimental (o ensaio visual). Investigaram outras formas de dramaturgia para além do cinema clássico, como dramaturgias mínimas, baseadas no silêncio e na sugestão, ou dialogando com outras artes, propondo filmes performáticos, ensaios visuais, diários fílmicos ou filmes-de-arquivo, entre outros. Estabeleceram relações de afetividade, tensionando as fronteiras entre o cinema e a vida.
Essa geração ganhou rápida visibilidade, estimulada por um circuito crítico e pela circulação em festivais internacionais de prestígio. Após essa visibilidade, resta-nos acompanhar a futura trajetória desses realizadores, qual o caminho que seguirão, as suas opções não somente estéticas, mas sobretudo éticas e políticas.
O verdadeiro artista não é o que simplesmente segue os modismos, mas o que não tem medo do contraditório; é o que eternamente prossegue questionando o mundo e a si mesmo. E é o que se posiciona diante disso. Os festivais têm sua parcela de responsabilidade, contribuindo não para a exaltação dos “modismos do novo” (“o novo pelo novo”), mas por uma aposta pelo risco e pelo processo.