No último domingo, após a suada vitória do Flamengo sobre o Santos – com um pênalti a meu juízo inexistente, embora tenha sido um lance polêmico – o jogador Renato, incomodado com vaias recebidas, disparou estas declarações ao final do jogo:
– É meia-dúzia de otários, não é para generalizar. (…) É meia-dúzia de otários que não têm a leitura do jogo.
Temos de contextualizar as declarações. Isto foi dito ao final de uma partida onde o time não jogou absolutamente nada e uma vez mais acabou contando com a boa vontade da arbitragem em uma marcação duvidosa. Ou seja, a torcida, que anda aborrecida – com razão – perdeu a paciência com o jogador em questão, notabilizado pelo estilo de jogo burocrático e por uma “marra” absolutamente incompatível com os resultados apresentados em campo.
Entretanto, Renato é um bom arquétipo de algo que vemos muito no futebol de hoje: o primado da imagem e do marketing pessoal sobre os dados objetivos.
Ele é um jogador lento, que passa mal, não tem criatividade nenhuma – embora tenha jogado muito tempo como meia armador, o que é uma contradição “stricto sensu” – mas que em suas passagens pelo clube adquiriu uma aura de “intocável” que, ao que me lembre, somente Zico alcançou. Os leitores me corrijam se eu estiver errado.
E nesta “Era da Imagem” o torcedor, que em última análise é quem paga a conta, tem de ficar quieto e aplaudir ainda que seja uma exibição absolutamente bisonha como a do time e do atleta em questão na última partida. É chamado de “otário” e ainda tem de sorrir e concordar.
Estou usando o jogador em questão mas há outros exemplos. Outro deles é o jogador Fred, do Fluminense, que possui reconhecido talento, entretanto decididamente não leva uma vida de atleta de futebol profissional: suas peripécias pela noite carioca – e as contusões – são notórias.
Utilizei-me dos dois exemplos para desenvolver o raciocínio de que jogadores de futebol foram colocados em um pedestal e estão a meu ver perdendo o senso da realidade. Estabeleceu-se o conceito de que “podem tudo”, e que somente possuem direitos, não deveres.
Um jogador de futebol deveria ser diferenciado pelo salário que recebe, que é muito superior ao de um trabalhador comum. Ele recebe este salário em última análise não por suas habilidades dentro do campo, mas sim pelo poder de atração de sua imagem e pelo que isso pode render de divisas a seu empregador através de sua imagem.
Tanto isso é verdade que o salário de um jogador de clube grande como o Flamengo, o Fluminense ou outros é dividido justamente em duas parcelas: o salário em si, pago na carteira de trabalho, e o chamado “direito de imagem” pago a uma pessoa jurídica constituída pelo atleta.
Sabemos que muitas vezes esta forma de remuneração é utilizada como forma de se pagar menos encargos trabalhistas, contudo é de se esperar que a imagem destes atores no processo sejam exploradas, dentro e fora de campo, a fim de proporcionar retorno ao clube e nos investidores dos valores integralizados.
Para que haja este retorno faz-se necessário que os jogadores entreguem a contrapartida da valoração de seus serviços e em especial de sua imagem. Todavia o que ocorre, em média, é que aos direitos não há a necessária contrapartida não somente na exploração da imagem como dos deveres em si. A noção é de que estes somente tem direitos, não obrigações – e podem levar a vida que bem entendem.
Sabe-se que é incipiente a exploração da imagem em termos de produtos e serviços, mas é um fenômeno que tem duas vertentes: por um lado o departamento de marketing dos clubes é bastante limitado e não vislumbra as possibilidades oferecidas de multiplicar o ganho financeiro e possibilitar um retorno econômico aos altos valores investidos no direito de imagem.
Por outro temos os jogadores em geral, que possuem dificuldades de entender que este salário maior também pressupõe deveres e a preservação da própria imagem pública. Um profissional de futebol não é um analista orçamentário, por exemplo, que pode ir ao supermercado como uma pessoa “não pública”. Ou estar nas páginas de jornais empreendendo bebedeiras, tumultos e ainda, em alguns casos, estar infringindo artigos do Código Penal.
Chegamos ao absurdo de vermos jornalistas demitidos de seus veículos por terem noticiado casos como o da famosa “farra das caipisaquês” envolvendo o citado jogador do Fluminense. Como já escrevi mais de uma vez no Twitter, culpar a imprensa pelos desmandos de dirigentes e excessos de atletas é um caso típico de “atirar no mensageiro”. Não leva a nada produtivo.
Outro ponto a ser percebido pelos atores do processo é que o torcedor, mais que torcedor, é um cliente. Ele paga para estar ali no estádio e tem o direito de se manifestar expressando júbilo ou contrariedade. Caso houvesse esta percepção jamais o jogador rubro negro teria dado as declarações que deu, em flagrante desrespeito ao consumidor do espetáculo.
Ressalve-se que muitos torcedores não tem esta noção de que são clientes do negócio futebol. Por mais que sejam maltratados sempre estão ali a aplaudir e apoiar, sob o argumento de “que é amor”. Sou apaixonado pelo Flamengo, mas isso não me impede de exercer o meu lado crítico e exigir que seja respeitado como consumidor. Infelizmente isto ainda não ocorre em muitas comunidades de torcedores.
No momento o que temos é um mercado absolutamente distorcido: os jogadores assumem aura de super homens, que podem fazer o que quiser sem serem cobrados. Os dirigentes não exploram a imagem dos atletas sob contrato, embora paguem vultosas quantias a título de “direito de imagem”. Os torcedores, por seu turno, não se comportam como consumidores que são.
Do jeito que está, o “direito de imagem”, aí sim, nada mais é que um subterfúgio para pagar menos encargos trabalhistas. Vale lembrar o exemplo de Ronaldinho Gaúcho no Flamengo, que recebia um salário literalmente milionário e que teve retorno em exploração de imagem absolutamente pífio, com três ou quatro inexpressivos produtos com a sua marca – lançados quando a crise entre este e o clube já era aberta.
Na prática repetiu-se um erro muito comum no mercado do futebol, que é o de contratar pelo sucesso passado de um atleta e valorá-lo pelo que ele ofereceu no auge de sua carreira, não pela expectativa de retorno futuro tanto esportivo como financeiro. Há alguns anos Ronaldinho não era o atleta genial do Barcelona, mas foi valorizado e pago como tal. Some-se a seu desinteresse em ser um atleta e deu no que deu.
A propósito, embora eu não ache que o Atlético Mineiro obtenha sucesso na contratação do referido jogador, me chamou a atenção o realinhamento do valor percebido por ele, que foi desvalorizado na exata medida de seu desempenho no clube carioca, tanto dentro como especialmente fora de campo. Um jogador que valia mais de 1 milhão de reais passou a “valer” R$ 360 mil, segundo dados divulgados na imprensa – pouco mais de 25% do valor pago pela equipe carioca.
Este é um bom exemplo de como, ainda que imperfeito, começa a haver um lento movimento de correlação entre os direitos – expressos no salário e em outras regalias – e sua imagem dentro e fora de campo.
Enquanto este conceito não for assimilado teremos de observar anomalias como o citado Renato Abreu ganhando um salário de mais de R$ 250 mil mensais, ser um jogador de mediano para fraco – mas craque no marketing pessoal – e ainda chamar o seu cliente de “otário”.
Leitor, você compraria um carro de um vendedor que o chamasse desta forma?
Pois o raciocínio é o mesmo. Mas há um longo caminho a ser percorrido por clubes, jogadores e consumidores do produto futebol nesta direção.