Em edição extraordinária, a coluna “Made in USA”, do advogado Rafael Rafic, traz uma homenagem a um dos maiores ícones olímpicos, o boxeador cubano Teófilo Stevenson (1952-2012), falecido no último dia 11.
Aproveito para fazer um parêntese: a Revolução Cubana precisa ser julgada sem maniqueísmos. Se por um lado não há democracia e há reiterados relatos de violações aos direitos humanos, por outro é necessário se dizer que os sistemas de educação, saúde e o modelo esportivo são bastante avançados tendo em vista, inclusive, a absoluta falta de recursos causada pelo irracional bloqueio americano à ilha.
Parêntese feito, vamos à coluna.
“De que me vale 1 milhão de dólares comparado ao amor de 8 milhões de cubanos?” – Uma homenagem a Teófilo Stevenson
Estava pronto para, dentro da minha programação, esquadrinhar nesta coluna os destaques brasileiros nos esportes individuais para os Jogos Olímpicos. Porém, fui surpreendido na segunda feira retrasada, 11 de junho, com a notícia da morte de um ícone olímpico e maior ídolo do esporte cubano: o boxeador peso-pesado, tricampeão olímpico e mundial, Teófilo Stevenson.
É a ele que dedico esta coluna.
O que dizer de alguém que terminou por nocaute nove de suas onze lutas olímpicas em 72, 76 e 80? Não podemos esquecer que, pelo seu formato mais curto, o nocaute no boxe olímpico já era raro naquela época (hoje, com os equipamentos de proteção, é quase impossível). Apenas como comparação, os outros dois tricampeões olímpicos no boxe, o hungaro Lazlo Papp (48-52-56) e o também cubano Felix Savón (92-96-00), nocautearam em suas campanhas olímpicas apenas, respectivamente, seis e dois adversários.
Se até no boxe profissional é difícil achar alguém que demolisse rotineiramente em meros quatro rounds seus adversários, no boxe olímpico ele estava pronto para ser alçado a gênio. Some-se a isso um país apaixonado por boxe (é o segundo esporte mais popular em Cuba, só atrás do baseball) e temos um deus.
Foi exatamente o que ocorreu com Stevenson.
Não bastasse seu talento natural para a arte de boxear e sua técnica apurada nos anos de treinamento – muito bem guiados pela excelente escola cubano-soviética de boxe, Stevenson ainda foi peça chave na guerra fria entre capitalismo e comunismo em sua parte travada pelos esportes.
Justamente no meio dessa rivalidade é que deve ser entendida a principal crítica americana ao boxe de Stevenson, ao chamá-lo pejorativamente de “lutador de apenas três rounds”. Com certeza o talento de Stevenson era maior que isso, ele apenas lutava poucos rounds por causa das regras do boxe olímpico, que sempre privilegiou a disputa por pontos do que o nocaute.
Apesar disso, Teófilo não se cansava de nocautear. Se ele optasse por lutar uma luta mais longa, era só mudar sua preparação e ele iria tão bem quanto. Ou nem mudasse a preparação: nocaute em três rounds é nocaute tanto no amador quanto no profissional.
É também por sua escolha ao boxe amador e à ideologia da Revolução Cubana que também devemos interpretar essa crítica a ele, até como uma provocação. Ele recebeu inúmeras propostas para, após suas conquistas olímpicas, se transferir para o boxe profissional – tal qual fizeram grandes nomes como Cassius Clay (depois Muhammad Ali), Joe Frazier e George Foreman.
Porém, dentro da estrutura esportiva da cuba comunista, isso significaria a deserção e abandono não só do desporto, como da pátria, já que isso seria um “atentado à revolução”. Por sua ideologia alinhada com o governo, aliada a seu desprendimento material e preferência pessoal pelo boxe amador, Stevenson recusou várias propostas para se transferir para o boxe profissional.
Para os amantes do esporte ficou a vontade de ver um super embate entre Muhammad Ali e ele, no que seria um evento gigantesco do boxe mundial. Pessoalmente acho que, até pela guerra fria envolvida nesse combate hipotético, essa luta seria ainda maior que qualquer Foreman x Ali ou Frazier x Ali. Só quem já leu sobre o famoso mundial de xadrez entre Spassky e Fischer sabe a que nível a temperatura poderia chegar.
Ao receber uma proposta para se profissionalizar: uma bolsa de cinco milhões de dólares para desafiar Ali, logo após o bi-olímpico, ele recusou soltando uma frase que ficaria eternizada “De que me valem um milhão de dólares comparado ao amor de oito milhões de cubanos?”. Há algumas contestações sobre a real autoria da frase acima , mas não me cabe discuti-las aqui.
De minha parte, que nasci tempos depois de suas glorias, ficou a marca de um excelente treinador – ele continuou envolvido com o boxe cubano até sua morte. Inicialmente como treinador, após como uma espécie de “consultor senior”. Humilde e solícito sempre que a imprensa brasileira lhe pedia uma entrevista, ou apenas uma palavra.
Ficarei na memória com uma longa entrevista (longa mesmo, deve ter durado umas duas horas) dada ao Sportv quando ele veio ao Rio de Janeiro para o Pan-Americano de 2007.
Nela, entre várias outras coisas ele explicou sua vida antes da fama, os motivos de seus títulos, a eficiência da estrutura esportiva cubana de base, sua eterna recusa de adentrar ao mundo profissional e a melhora do boxe brasileiro puxada por treinadores cubanos especialmente contratados para isso (alguns deles receberam os ensinamentos do próprio Stevenson). Nessa entrevista, a cada resposta direta, você ouvia outra indireta que respondia como e porque Stevenson foi o mito que se tornou.
Essa coluna está longe de querer esquadrinhar todos os principais fatos e polêmicas envolvendo esse colosso olímpico, mas apenas se presta a fazer uma singela homenagem a um grande esportista e ídolo nacional, do qual o esporte cubano, já em crise aguda, sentirá uma falta tremenda, talvez irreparável. O declínio (ou não) do modelo esportivo cubano é assunto para uma outra coluna.