Neste sábado, a coluna “Buraco da Fechadura”, do compositor Aloisio Villar, traz mais um conto de sua lavra. O tema hoje é semelhante ao da música “O Meu Guri”, de Chico Buarque (acima).
Meu Guri
E lá foi Filó descendo mais uma vez o morro.
Com dificuldade devido aos oito meses de gravidez recebeu um “boa noite tia” dos soldadinhos do tráfico do morro e com medo e arfando respondeu. Lá foi Filó para mais uma noite de trabalho.

Lá foi Filó para a Vila Mimosa, conhecido centro de prostituição no Rio de Janeiro. Apesar de já ter passado dos quarenta anos e há algum tempo não ter a beleza da juventude essa era a forma de Filó sobreviver. Mulher sozinha e moradora de favela, esse foi o único trabalho que a mulher conheceu desde quando ainda menina se oferecia a caminhoneiros na beira da estrada onde morava.

Engravidou em um “acidente de trabalho”, não tendo a mínima idéia de quem fosse o pai. Cogitou no início abortar e inclusive tomou remédios, mas o danado era forte e não teve remédio que conseguisse lhe matar. Sem recursos, sem cultura Filó foi levando a gravidez sem acompanhamento médico, sem pré-natal e só sabia que o moleque estava vivo porque as vezes dava chutes em sua barriga. Filó ria e falava que seria jogador de futebol.

Sim, menino. Filó tinha certeza que carregava um.

Quando era mocinha sonhava em ter filho homem, varão, aquele que lhe protegeria no mundo – algo que nunca ocorreu na vida. Ela que cuidava dos irmãos menores depois que a mãe faleceu, pelo menos foi assim até o pai lhe aplicar uma surra de bambu e expulsá-la de casa ao saber que se prostituía.

Caiu no mundo, caiu na vida e estava nessa situação até aquele instante tendo que trabalhar com oito meses prestes a parir.

Não era fácil a vida de Filó tendo que competir com meninas algumas vezes com dezesseis, dezessete anos. Era deixada de lado pelos homens e muitas vezes tinha que cobrar mais barato para que algum velho bêbado lhe notasse e levasse para o quarto. Os homens embriagados, com bafo de cachaça subindo em cima dela como animais no cio e Filó deitada na cama com a mão na barriga tentando proteger o seu guri.

Como já disse, não era dotada de muita beleza e pelas costas sofria ironias das outras prostitutas e de clientes por sua idade e ainda por cima estar grávida. Contudo Filó tinha bom coração e sempre que podia ajudava as meninas: dava conselhos e até em casa chegou a levar algumas para almoçar quando estas não tinham o que comer e mesmo ela tendo pouco até para si.

Na noite descrita no começo Filó não foi muito feliz no trabalho. Já começava a madrugada e o frio do inverno tomava conta da Mimosa. Vestida com poucos trajes que em vez de passar sensualidade apenas passava constrangimento Filó sentada em uma mesa do lado de fora do bar bebia um trago pra tentar se esquentar quando sentiu um líquido escorrer pelas pernas.

Notou que sua bolsa estourara, sentiu fortes contrações e correu atrás de um taxista amigo pedindo ajuda. O homem não pensou duas vezes e levou Filó ao hospital mais próximo. Chegou ao local já em trabalho de parto.

“Mas que moleque danado e apressado” pensou Filó, sim porque ela estava ainda de oito meses, mas o guri queria nascer logo. O parto foi complicado porque o menino estava atravessado, mas o fim foi feliz e ele nasceu.

Nasceu sem chorar o que deu susto na equipe médica, mas com um tapinha deu tudo certo e ele abriu o berreiro. O médico cortou o cordão, embrulhou o menino chorão em uma manta e entregou nos braços de Filó. O primeiro contato entre mãe e o filho: o começo de uma história de amor.

Filó olhou aquele menininho em seus braços e sentiu algo inexplicável, coisa que só uma mãe sente. Não era o momento ainda dele nascer, ainda faltava um mês e Filó ainda tentava arrumar mais algum dinheiro e comprar coisas que o menino precisaria, mas quando Deus manda temos que acatar e assim Filó pensou.

Olhava o garoto em seus braços e falou “tadinho, já nasceu com cara de fome”. Não pensara em um nome, nada e perguntou ao medico qual era seu nome, ele respondeu Ricardo e Filó disse que seria esse.

No fim da madrugada a chuva batia na janela e Filó dava seu peito ao filho como seu primeiro alimento e cantava baixinho pra lhe ninar.

Foi levando a vida como podia, com a garra de uma mãe e assim aos trancos e barrancos conseguia criar Cadinho, apelido que o menino ganhou. Nem ela sabia explicar como conseguia, mas talvez no fundo soubesse sim. Era quando fazia o almoço, gritava que estava na mesa e lá vinha o moleque correndo arteiro com uma pipa na mão dizendo que cortara as pipas dos outros moleques.

Cadinho lavava as mãos e sentava-se a mesa com a mãe que puxava a oração e agradecia ao Senhor por aquele alimento. Muitas vezes era uma sopa rala, mas era o que o dinheiro conseguia comprar e ela agradecia da mesma forma que se fosse uma comida farta.

Cadinho, bom menino, nunca foi de dar trabalho para a mãe. Soltava pipa, jogava bola, rodava peão e estudava em um colégio público perto de casa. Filó chegava de manhã da Vila Mimosa e sem dormir preparava um café preto com pão dormido para o filho e lhe acordava para a escola. O menino já chegava à mesa com o uniforme, banho tomado, penteado e tomava seu café.

No fim Filó olhava seus cabelos para ver se tinha piolhos, suas unhas para ver se não estavam grandes e sujas e dava um beijo em sua testa dizendo “boa aula meu filho, Deus lhe abençoe”. O menino ia para a aula, mas ela não conseguia descansar com medo da violência que assolava a cidade, só respirava aliviada quando ouvia a porta abrir e o “mãe cheguei”.

O menino foi crescendo e começando a entender as coisas e no que a mãe trabalhava. Uma noite Filó se despediu de Cadinho e ele pediu “mãe, vai não”. Filó cheia de ternura e pena chegou próxima ao filho e disse que tinha que ir senão não teriam o que comer no dia seguinte. Deu um beijo em sua testa e pediu que não fosse dormir tarde saindo de casa.

Cadinho com lágrimas nos olhos viu a mãe descendo o morro para se prostituir e decidiu que aquilo não poderia ficar assim: teria que ajudar.

Desceu o morro no dia seguinte depois da aula e foi para o sinal de trânsito lavar carros quando o sinal estava vermelho. Não dava muito dinheiro, mas o guri era valente e ficava lá até à noite para levar uns trocados pra casa. Uma noite um amigo do morro viu Cadinho trabalhando e disse ao menino que aquilo não dava dinheiro e lhe colocaria em algo que daria.

E o menino alguns dias depois chegou em casa cheio de sacolas. Filó nada entendeu e quando viu eram muitas sacolas com comida. Cadinho feliz dizia que era comida para o mês inteiro e pediu à mãe que lhe ajudasse a guardar as compras. Filó espantada perguntou aonde o guri tinha arrumado dinheiro para aquilo tudo e Cadinho respondeu que estava trabalhando e nunca mais faltaria nada em casa.

Pediu que a mãe sentasse e quando Filó sentou no sofá chegou com uma caixa. Ajoelhou em frente a mãe, tirou seu chinelo e abriu a caixa colocando um sapato novo naquele pé cansado. Filó perguntou o que significava aquilo e Cadinho respondeu que não queria mais a mãe usando sapato velho e furado, ela merecia tudo do bom e do melhor.

O moleque comprou tênis novo para ele, vídeo game, tv de lcd e a mãe olhava e se perguntava que emprego era aquele que ele arrumara. Cadinho abraçava a mãe e dizia que em breve ela poderia parar de trabalhar e descansar que ele que tomaria conta dela.

Uma noite Filó passou mal na Mimosa e decidiu voltar pra casa mais cedo. Subia o morro devagar para economizar ar quando viu a cena que mudaria sua vida.

Viu um grupo de garotos com fuzis na mão tomando conta da favela para que nenhuma facção inimiga invadisse e nesse grupo estava Cadinho. Menino magrinho, frágil na aparência carregava um fuzil maior que ele e quando viu a mãe ficou branco.

A mãe olhava o filho e não conseguia falar nada, nem Cadinho. De repente ela teve uma crise de choro e subiu o morro correndo. Cadinho desesperado correu atrás gritando pela mãe.

Filó entrou em casa chorando e Cadinho entrou logo atrás abraçando a mãe e dizendo que lhe amava. Filó aceitou o abraço e chorava desesperadamente no ombro do filho dizendo que não queria que ele morresse. Cadinho chorando também prometeu que nunca morreria e pediu que a mãe parasse de trabalhar. Filó deixando as lágrimas correrem pela sua face olhou o filho e respondeu que não podia. Cadinho enxugou as lágrimas da mãe e pediu mais uma vez que ela parasse e deixasse que ele tomasse conta dela.

Filó abaixou os olhos e concordou em parar com Cadinho lhe abraçando forte agradecendo e dizendo que lhe amava.

Naquela noite acabou a paz de Filó. Qualquer estampido que ouvisse ou atraso na volta para casa de Cadinho ela já achava que era alguma coisa. O coração da mulher parava por alguns instantes e só voltava a bater quando ele mexia na porta e dizia “mãe, cheguei”.

Algumas vezes o menino ficava em casa e eles juntos no sofá assistiam a filme na TV nova. Cadinho com o tempo deitava no colo da mãe e ela lhe fazia carinho. Nenhum dos dois falava nada e nem precisava.

O amor que nutriam um pelo outro era maior que qualquer palavra que pudesse ser dita. Um só tinha ao outro no mundo e era a razão de viver mútua. De repente Filó rompia o silêncio e cantava a mesma música que cantou no dia que ele nasceu para novamente lhe ninar e o menino caía no sono.

Um dia Filó fazia o almoço quando sentiu um mal estar e deixou a panela de macarrão cair no chão espalhando toda a comida. Seu coração gelou, algo tinha acontecido. Segundos depois ouviu gritos desesperados de “Tia!! Tia!!”.

Filó correu para a porta e encontrou um amigo de Cadinho, ele não conseguia falar nada, só balbuciava “o Cadinho tia..”.

A mulher deu um grito de pavor e saiu correndo da favela.

Desceu o morro numa velocidade que nunca descera na vida e na frente da favela encontrou um tumulto. Muitos populares, carro da polícia e ela com uma força encontrada não se sabe aonde saiu empurrando e passando pelas pessoas que diziam “era bandido mesmo”, “bandido bom é bandido morto”.

Furou o cerco da polícia e encontrou um corpo estendido na calçada com um plástico preto em cima.

Um policial tentou segurá-la e Filó deu um grito como se ele saísse da alma “meu filho!!”. Ela debruçou-se sobre o corpo e tirou o plástico preto encontrando o menino, o seu Cadinho com os olhos fechados parecendo um anjo e com mais de vinte marcas de bala.

Não dá pra descrever bem o que ocorreu depois, acho que só uma mãe conseguiria descrever direito. Filó chorando pegou o corpo do filho nos braços e deu um grito de dor, uma dor forte, dilacerante que parecia sair de suas entranhas.

Olhou para o céu gritando “não!!!” e em um choro corrosivo como ácido apertou forte Cadinho contra seu peito, seu ventre como se quisesse que ele voltasse para sua barriga e assim lhe protegeria de todas as dores e males do mundo.

Cadinho estava morto, Filó também, mas o amor de uma mãe por seu filho nem a morte é capaz de dar fim.

Olha aí, ai o meu guri, olha aí…

…olha aí, é o meu guri.

*Esse conto é dedicado ao meu amigo Cadinho que perdeu o seu guri em novembro de 2010.