Após um longo intervalo, a coluna “Resenha Literária” está retornando a este blog. Não que eu tenha deixado de ler neste tempo, mas simplesmente deixava para depois as resenhas, deixava, e acabava não escrevendo.
Li nesta época livros como os lançados sobre os trinta anos do título mundial do Flamengo, a biografia de Boni – que já comentei em uma coluna “Orun Ayé” anterior – e estou paralelamente lendo “1.001 cervejas” e a biografia do ex-presidente João Goulart.
Neste post, entretanto, temos um livro com uma temática esportiva, mas que se notabiliza por outra característica: a violência.
“La Doce”, do jornalista argentino Gustavo Grabia, conta a história da “barra brava” do Boca Juniores, que dá nome ao livro. As barras são o equivalente argentino das torcidas organizadas brasileiras, só que muito mais organizadas, mais entranhadas na vida dos clubes e especialmente mais violentas. A impressão que tive ao final da leitura é que as Organizadas brasileiras são crianças peraltas perto das argentinas.
Grabia mostra a formação de “La Doce” e como a torcida foi ascendendo em importância e poder dentro do clube argentino. Mostra as fontes de renda ilegais – como estacionamento clandestino perto de La Bombonera, revenda de ingressos e outros negócios – a influência sobre jogadores e dirigentes e as brigas de poder internas dentro da organização.
Também são narradas histórias de brigas violentíssimas entre si e com integrantes de outras barras, com mortes e arsenais de guerra em poder de seus integrantes. Muitas vezes estas brigas eram convenientemente tornadas “invisíveis” ao poder público devido à utilização das barras como massa de manobra por parte dos políticos.
O livro também descreve invasões à concentração de jogadores e a treinos, com intimidações e extorsões. Há claramente uma promiscuidade entre estes e a barra, e aqueles que se negam a colaborar acabam tendo problemas. Até estrelas como Maradona, por exemplo, tinham convivência estreita com os líderes: ele foi padrinho de casamento em 2005 do então chefe da barra.
Vale lembrar que apesar de alguns episódios violentos, muitos jogadores adquiriam camaradagem com “La Doce” de forma genuína, até por entenderem que a barra comandava a torcida do clube e poderia facilitar a sua passagem pelo time.
Narram-se com detalhes episódios como o das idas às Copas do Mundo – quase sempre bancadas pela federação argentina ou políticos – as disputas de poder dentro da instituição e os processos judiciais que seus líderes sofreram. Se por um lado há diversos episódios de impunidade, por outro ressalte-se que dois de seus líderes máximos – José Barrita e Rafael Di Zeo – acabaram na cadeia.
A impressão que eu fiquei após a leitura é de que as “barras” argentinas – o livro fala do Boca Juniores, mas acho que se pode extrapolar para os clubes argentinos como um todo – são uma peça fundamental na estrutura de poder do futebol local.
Na foto acima temos um bom exemplo da como as barras e a La Doce eram utilizadas pelos políticos. Vê-se uma frase pedindo que as transmissões de futebol na televisão fossem tiradas do grupo Clarin – uma espécie de Globo local – que privilegiava os canais pagos. O governo acabou tornando-se dono destes direitos e hoje todas as partidas do campeonato são transmitidas pela televisão aberta.
A La Doce foi utilizada para fazer pressão sobre a opinião pública. Em troca, recebia favores, dinheiro e muitas vezes impunidade. Na parte final do livro ficou clara a influência não somente dos políticos como da direção do clube na ascensão e consolidação do poder do atual chefe, Mauro Martin.
Merecem destaque também as descrições de atos cinematográficos de violência não somente com integrantes de outras barras como dentro da própria La Doce. Termina-se a leitura perguntando-se como o número de mortes, embora significativo, tenha sido bem menor que o esperado dado o arsenal e as escaramuças.
Fica claro, também, que as barras estão muito mais entranhadas não somente no clube quanto na sociedade que aqui no Brasil. E como a Justiça local manobra suas decisões de acordo com os interesses reinantes. Por outro lado, integrantes das barras estavam a serviço de políticos para tumultuar manifestações de grupos rivais, ganhando dinheiro.
No fim das contas, a conclusão a que chego é que a La Doce é um grande negócio, tanto rendoso – e as brigas de poder por causa de dinheiro foram várias – quanto poderoso. Fico longe de esgotar os assuntos do livro aqui, mas aconselharia aos dirigentes e promotores brasileiros a leitura, para ver se param de falar bobagens sobre nossas torcidas organizadas.