Leitor, foi um soco no estômago.  Daqueles bem dados, que deixam a gente refletindo sobre o sentido das nossas vidas e nos fazem perceber como coisas valoradas imensamente não passam de grãos de areia no meio do que realmente importa.

Refiro-me ao mini-documentário “Diário do Inferno”, que eu havia me referido no post do último sábado e que foi exibido pela Tv Record dentro de seu programa “Domingo Espetacular”. Com 29 minutos de duração editada (o original tinha 37), mostra a saga do médico Marcelo Clemente, que largou um posto burocrático na periferia de São Paulo para se entranhar no então maior centro de consumo do Brasil: a denominada “Cracolândia”, no centro da maior cidade do Brasil.

Clemente faleceria aos 27 anos, em abril de 2011, em casa. O atestado de óbito indicou “edema pulmonar” como causa mortis, mas o documentário não deixa claras as razões da doença – é o único pequeno senão, que entretanto é o menos importante dentro do que é apresentado.

A partir do diário deixado pelo médico uma equipe de jornalistas da emissora, capitaneada pelo amigo Marco Aurélio Mello (autor do excelente blog DoLaDoDeLá), durante três meses reconstituiu a trajetória de Marcelo e através de imagens, depoimentos e leituras traçou um perfil não somente do viciado em crack como do fracasso das políticas adotadas, em especial do governo paulista.

O programa mostra de forma verdadeira e crua a devastação mostrada pelo consumo de crack, que às primeiras doses já causa uma dependência devastadora – foi tema de post neste blog semanas atrás, sob o ângulo médico. São contadas histórias de degradação humana absolutamente, sei lá, inacreditáveis – na falta de uma palavra melhor.

Como a do noivo que perdeu tudo a ponto de oferecer sexo oral ao traficante para conseguir mais droga, por exemplo.

A reportagem caminha por dentro dos locais mais fétidos de São Paulo, onde lixo, fezes, urina e especialmente o crack conviviam em condições que nas palavras de um dos entrevistados “não eram de gente”. Doutor Marcelo peregrinou por todos estes locais a fim de propiciar alguma ajuda aos viciados, cuidando de suas chagas e buscando o apoio das autoridades a fim de estabelecer algum tipo de apoio àquelas pessoas. No momento de sua morte ele tinha uma audiência marcada para o mês seguinte em Brasília, como resposta a uma carta que enviara à Presidente Dilma Roussef.

Impressionou-me em especial o depoimento de um dependente de crack que compara a droga a um “macaquinho pendurado em seu ombro”: no início ele é pequenininho, mas depois se transforma em um gorila que crava as unhas nos ombros e suga todo o sangue das pessoas, tornando-se muito pesado. Os depoimentos dos dependentes são unânimes em deixar claro que a visão de que são criminosos é totalmente equivocada: são sim doentes que necessitam de ajuda.

As imagens são impressionantes. Não somente dos locais onde os dependentes se abrigavam e consumiam a droga como dos próprios em momentos não somente de fissura pela droga – o crack cria uma dependência que impele o consumo contínuo e os dependentes passam a vagar em busca da pedra para fumar, muitas vezes sem comer e sem dormir. Fiz questão que minhas filhas vissem parte do documentário a fim que percebam o quanto o fumo e o consumo de drogas é prejudicial ao ser humano.

A saga de Clemente também mostra que a Polícia é mais um problema que solução. Casos de abusos policiais sobre os dependentes eram corriqueiros, incluindo violência física, reiteradas violações de cunho sexual e ameaças de todo tipo. O próprio médico foi ameaçado com pistola na cabeça e teve seus telefones grampeados pela Polícia.

Fica claro também o quão inadequada e lamentável foi a solução adotada pelo Governador Geraldo Alckmin para a “solução” do problema. A Polícia expulsou os dependentes da Cracolândia à força e demoliu as construções que eram utilizadas como refúgio, cujos espaços serão utilizados para empreendimentos imobiliários no futuro. Os dependentes, hoje, vagam pelos bairros como almas errantes, ainda mais afundados em suas condições degradantes e inumanas e mais à mercê dos traficantes da pedra.

Este, aliás, é um bom exemplo da política adotada pelo governo estadual, cujo mandatário vem se revelando um perfeito discípulo do ex-Presidente da República Washington Luiz. Este dizia que “a questão social é caso de Polícia”, mantra que vem sendo adotado como política de Estado por Alckmin – o caso Pinheirinho foi outro bom exemplo disso. Enquanto isso os dependentes imploram por ajuda a fim de tentar se livrar do crack.

O documentário também mostra iniciativas como as existentes aqui no Rio – a internação compulsória – e em Porto Alegre. Nos dois casos a Polícia é usada para reprimir os traficantes, mas o atendimento primordial aos dependentes é feito por agentes de saúde e assistentes sociais. Não é o ideal, mas é um avanço enorme se comparado a São Paulo, onde simplesmente se colocou a Polícia para bater nos dependentes e expulsá-los de lá – e nada mais. As iniciativas posteriores, tomadas após o clamor da opinião pública, são bastante tímidas a meu ver.

Também fica claro no primoroso trabalho dos jornalistas que nós, cidadãos comuns, levamos vidinhas muitas vezes absolutamente inúteis e com motivações, muitas vezes, fúteis. Doutor Marcelo deu a vida para tentar resgatar a dignidade daquelas pessoas, em trabalho que infelizmente não teve continuidade – até pela “solução” dada pelo governo paulista ao problema. Outro ítem é que há muito a ser feito em termos de saúde pública a fim de combater este flagelo que é o crack, que destrói não somente fisicamente como no que o ser humano tem de mais valioso: sua identidade e sua dignidade. O crack transforma as pessoas em animais.

Por mais que tenha feito um resumo e uma análise nestas linhas: leitor, veja o documentário, que disponibilizo no início do post. Confesso que tive dificuldade para dormir depois lembrando-me não somente das imagens mas de toda a sensação de impotência que tive. Cheguei a sentir-me mal, com aquele travo amargo na boca do estômago – sensação semelhante a que tive anos atrás quando visitei o aterro sanitário de Gramacho, que felizmente será fechado brevemente..

Sem contar que é uma aula de jornalismo, sem apelar para o sensacionalismo nem tomar partido. Os fatos são mostrados a partir do diário, dos depoimentos de amigos, de parentes e de dependentes e das impressionantes imagens. Um oásis dentro do deserto da televisao aberta a que assistimos atualmente.

Indispensável.

3 Replies to “Diário do Inferno – A Vida na Cracolândia Paulista”

  1. Eles colocaram na reportagem que complementa o documentário cenas da novela deles em que um personagem entra no vício do crack e que só sai com aquela paulada da morte do pai (detalhe que o pai era um dos protagonistas. A autora tem que ter muita coragem para criar tal situação). Assisti o último capítulo da novela em questão e que tem tal cena e aquilo pra mim já tinha sido uma porrada. Poucas vezes vi uma abordagem sobre o vício em drogas como aquela em novelas. A interpretação do personagem Stella (que tb morre vítima do crack) foi perfeita, ainda mais se levarmos em conta que foi o primeiro trabalho da atriz. A Record deu um banho nesta semana.

  2. eu fico pensando tanto dinheiro gasto denesseraio tanta gente gritando por socorro pessoas descretidas jogadas coo lixo quando aparece alguen que enxerga todos c aor foi enbora cedo deixando para traz exeplo de dignidade

  3. Eu adorei essa reportagem para mim foi um das melhores que ja vi! a vida Dr° Marcelo é uma história de luta e batalhas para efetivação das políticas públicas qualidade, a maneira como ele trata os toxicomanicos, é propondo realmente a humanização. o que mais me chamou atenção é quando ele ia para essas visitas e tinha algum sujeito sofrendo com abistinência do uso de drogas , o Dr° ia lá e comprava a droga, pq abistinência ela tb causa uma serie de danos no organismo e o uso de drogas não é algo que se para de uma hora para outra. a redução é necessário com acompanhamento de uma equipe especializada é preciso que a sociedade mobilize para lutar por políticas públicas de qualidade que realmente propoe a humanização. tem uma critica a fazer internação complusiva não leva a lugar nehum a não ser a voltar com uso de drogas, a necessidade de parar de usar drogas tem parte do individuo tem que parte da vontade dele se não ,não chegamos a lugar nehum um dos principios do código Ètica do Assistente social é a liberdade. que para mim éfantastico que se refere a liberte de escolha dos inviduos em querer ou não aquela orientação. então internação compulsória não resolve nada se a pessoa não quiser.

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