As brasileiras dançam no Baião. Negras senhoras, donas do segredo da ancestralidade, zeladoras do tempo e da tradição de Massinoukou Alapong, sacerdotisa da Costa do Ouro que chegou ao Brasil, no porão de algum tumbeiro, em meados do século XIX.  Massinokou Alapong, que adotou entre nós o nome de Basília Sofia, ajudou a civilizar esse chão ao fincar em São Luís do Maranhão os batuques, cantos, danças e mandingas do seu povo. 
As negras dançam. Negras senhoras que continuam fazendo, na Casa Fanti Ashanti, a festa que Alapong ensinou: o Baião de Princesas. Saias coloridas, leques, colares de contas, sandálias, adornos de cambraia e cheiros de alfazemas vestem de dignidade e realeza as sacerdotisas que, com a leveza do mistério, entregam seus corpos-totens para que as encantadas venham, uma vez por ano, dançar entre os viventes. E como dançam as encantadas, e como rodopiam e revigoram a vida – pois que a morte não há – em cada rodopiar.
E que toquem as violas, violinos, sanfonas e  pandeiros no batuque do Baião. Foi esse o jeito que Alapong encontrou para despistar a polícia, que não queria festas com cantos acompanhados pelos tambores das Áfricas. Foi esse o jeito que Alapong, a negra velha Basília, inventou para chamar as passeadoras – encantadas em pedra de rio, areia de praia, flor de manacá-cheiroso, tronco de jeretataca, croa, olho de serpente, jetirana e primavera-de-caiena.
Homem não dança no Baião de Princesas. É a festa do poder feminino – o maior que há – , é a celebração em canto e sonho do domínio matriarcal  da ancestralidade, perpetuada em sensações dadivosas que nós, os homens, somos incapazes de conceber. É por isso que só as mulheres dançam quando o forrobodó começa.
Mas o Baião é mais do que isso. É a celebração da dignidade fundamental de empregadas domésticas, cortadoras de cana, donas de casa, feirantes, cozinheiras, vendedoras de cheiros da terra, merendeiras, faxineiras e guerrilheiras de um Brasil que, às vezes, insiste em ignorar o Brasil. São elas, essas brasileiras fundamentais, que rodopiam no salão embandeirado de brasilidades.
E eu ouço o Baião e fico pensando nos pais de famílias de classe média e alta que sonham em mandar as filhas e filhos adolescentes para estudar na Europa, nos Estados Unidos, na Austrália e nos infernos. A explicação é simples: as garotas vão conhecer outras culturas, com o objetivo de aprender novas línguas. Sem problemas, mas… e a nossa língua, quando é que os filhos dos bacanas vão aprender? E a nossa cultura? E o nosso canto, o cheiro da aldeia, a memória dos nossos mortos, a bandeira das nossas guerras e a dignidade das mães ancestrais? Quem ensinará? 
Um dos cantos mais bonitos do ritual do Baião diz, com singeleza comovente e falar brasileiro, o seguinte:
O meu pai me deu um livro
Que eu estudava noite e dia
Pra mim fazer o dever
Pra ser livre na folia 
É esse, meus camaradas, o mantra das delicadezas do Brasil, canto do povo miudinho, povo valente de mulheres e  homens comuns. O Brasil que me comove, arrebata e serpenteia feito as saias das negras velhas do Baião de Princesas.

Saias e alfaias de negras velhas onde dançam, encantadas, Dandara, Luísa Mahim, Maria Quitéria, Menininha, Mãe Senhora, Aninha de Xangô, Iara, Elenira, Zuzu, Ana Maria e as marias todas desse povo inteiro.

Esse é o livro que precisa ser lido, o presente dos ancestrais, tradição dos avós,  lição dos tumbeiros, aldeias e portas de fábricas – porque nós estamos aqui para dançar, cantar, reverenciar e lutar feito as malungas que cruzaram a calunga grande.
Nós nascemos, e nossas mulheres nos ensinam,  para a liberdade na folia e para os encantamentos em raiz da terra no calor da luta.
Abraços!

(Os interessados nas canções do baião podem encontrar várias delas reunidas, com arranjos primorosos, nos trabalhos do grupo A Barca. Indico, sobretudo, o cd  Baião de Princesas, lançado pela gravadora CPC-UMES)

7 Replies to “LIBERDADE NA FOLIA [UM LOUVOR AO PODER FEMININO]”

  1. Simas, eu tenho um CD da Casa Fanti Ashanti. Raridade. Sua homenagem às mulheres foi singular e seu apelo talvez toque alguns corações. Quem sabe alguma menina de classe média (ainda que a caminho da Europa ou EEUU) venha a olhar para as suas irmãs negras que, ao som dos tambores, pisam delicadamente este nosso chão e, por elas, sinta aquele delicioso carinho feminino. Abraços. Fernando Goffredo R. Braga.

  2. Parabéns pelo texto Simas!
    Sou leitora do seu blog, mas não tinha visto este post ainda, até ser direcionada a ele pela página de GILBERTO GIL, no Facebook…
    Além de toda carga de importância que o 8 de março carrega em sí, para mim esse dia também é importante por isso: para aprender!
    Tudo de bom para você e sucesso aqui para o blog ;-)

  3. bravo prof simas,

    fiquei extasiado e comovido com o post e a música da casa fanti ashanti de são luís.
    peguei carona e fui até o site do cpc-umes e me deliciei com o canto das princesas em “mestre dos mares chegou”. fantástico!
    parabéns e abçs.

    carlos anselmo-fort-ce

  4. No Brasil dezenas de milhares de negros e simpaizantes protestam Movimentos negros brasileiros fizeram protestos de desagrado contra famoso cantor e sambista Martinho da Vila, Escola de Samba Unidos de Vila Isabel que neste carnaval de 2012, no enredo “Você Semba Lá… Que Eu Sambo Cá. do povo brasileiro) que nos versos O Canto Livre de Angola!”. Com uma exaltação maravilhosa a ANGOLA a pátria mãe da maioria (54% tem sangue africano-angolano em nossas aveias. Samba Enredo da Vila Isabel(O para Presidente Wilson Vieira Alves a carnavalesca Rosa Magalhães e principalmente o Presidente de Honra: Martinho José Ferreira o “Martinho da Vila” que se negaram a ouvir e atender as reclamações dos milhares de e-mails, cartas e ligações telefônicas e celulares para sensibilizar esses dirigentes. que seria um desprestígio para comunidade negra feminina serem excluídas as frente da bateria da Vila Isabel colocando uma rainha nipo-brasileira (japonesa) e uma musa loira, com respeito a elas, mas porque não por uma negra também e por coerência ao enredo exaltava a raça negra e negritude cultural África Angola Brasil. Apesar de todos esforços não foram suficientes par conscientizar estes dirigentes é lamentável que as crianças a juventude a mulher afro brasileira sofram estes preconceitos excluídas marginalizadas , humilhadas por aqueles que dizem ser defensores e nossos ídolos. Martinho da Vila é uma vergonha e covardia, muito obrigado pelo desserviço ao resgate e valorização da raça negra.Rei Martinho Ganga Zumba da Vila? Mariana Benedita dos Santos,Negra Bene. mariana.jornalista@bol.com.br

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