No primeiro domingo “normal” de 2012, a coluna “Orun Ayé”, do compositor Aloísio Villar, traz uma crítica muito pessoal dos sambas enredo do Grupo Especial para o carnaval 2012.

Na verdade, é bem mais que uma crítica. 

Além de fazer a análise das composições e do quadro como um todo, em seu terço final traça um panorama de tudo o que representa à Portela a escolha desta composição para 2012, que arrebata mentes e especialmente corações não somente azuis como de todo o mundo do samba. Panorama este que arrancou lágrimas copiosas do portelense aqui quando da leitura da prévia do texto.
Leitor, portelense ou não, amante do samba ou não, emocione-se junto com esta safra de 2012 e com o texto. Vale a pena.

Não é todo dia que você pode ouvir o Barcelona jogar

Conforme prometi ao Migão, a primeira coluna do ano abordaria esse tema, mas para chegar nele vamos viajar lá atrás.

Comecei a comprar os LPs (é, na época eram LPs) dos sambas de enredo do carnaval carioca em 1991. Já encontrei aqui em casa LPs mais antigos – como de 1985, mas o que eu me lembro que fui comprar foi esse de 1991. Recordo-me até da loja em que comprei.

Na época eram dois LPs, que vinham com encarte e uma pequena sinopse que contava os enredos. Gostei de cara dos sambas da União da Ilha, Portela, Salgueiro e Lins Imperial. Não gostei de Mocidade e Viradouro, logo dois sambas que marcaram a história do samba de enredo.

Passei a comprar todos os anos e recebia em fitas cassetes quando morei fora do Rio. Voltei a morar aqui e comecei a comprar já em formato de CDs.

Curiosamente depois que entrei para o carnaval o meu interesse foi caindo. Até que na década passada comecei a ganhar de amigos – e chegou em um instante que quando não ganhava não comprava e muitas vezes conheci os sambas já na avenida.

A verdade é que se todo mundo que gosta de escolas de samba conhecesse melhor seus bastidores o carnaval de Salvador seria ainda mais cheio. Conhecendo melhor as agremiações passou minha inocência. Sou feliz com tudo que o samba me deu e me proporcionou profissionalmente, mas como torcedor e amante do carnaval fui me desgostando com o tempo. [N.do.E.: concordo plenamente com o colunista]

Um dos fatores que fazem desgostar é que hoje em dia com a facilidade da internet temos acesso aos sambas concorrentes nas escolas e assim tomamos ciência de muitas injustiças. Até algumas vezes, podemos dizer, de roubalheiras e patifarias que ocorrem nos concursos.

Já pegamos o cd desgostosos com o nível dos sambas. Muitas vezes esse desgosto se aprofunda por sabermos como eles chegaram naquele disco. Talvez se não soubéssemos que os melhores não foram escolhidos não seríamos tão críticos.

Graças a isso, ao engessamento que as sinopses impõem aos sambas de enredo, ao engessamento que as disputas proporcionam obrigando os compositores a seguirem uma mesma fórmula para ter chance de vitórias e principalmente ao péssimo marketing feito pela LIESA através da Gravasamba – que não consegue fazer que os sambas toquem em rádio – e a pirataria e facilidade de baixar sambas na internet… O disco que em 1989 vendia um milhão de cópias hoje não passa de cem mil [N.do.E.: na verdade, hoje vende um pouco mais que isso].

Só que algumas coisas foram ocorrendo.

No carnaval de 2010 dois sambas já chamaram atenção. A Imperatriz veio com a fórmula de sempre para os sambas, mas com um que era um primor (ficando conhecido como “mar de fiéis”) e a Vila Isabel com uma linda homenagem a Noel Rosa feita por Martinho da Vila (reaproveitando em partes música sua com o compositor Gracia) mostraram que algo poderia mudar. [N.do.E.: os dois sambas já foram tema da coluna “Samba de Terça].

E o cd do carnaval de 2012 mostra que felizmente a volta da qualidade pode virar tendência.

Como vocês já sabem, sou um dos autores do samba da União da Ilha para o carnaval 2012.

Recebi da escola no fim de novembro meu cd. Abri correndo emocionado para ver meu nome no encarte – e depois deixei de lado. Estava sem aparelho para ouvir e não me interessei também. Perto do Natal comprei um aparelho de DVD e por curiosidade decidi ouvir o cd das escolas de samba.

Deitei na cama, liguei o aparelho e fiquei lá concentrado ouvindo o cd e ele foi me surpreendendo. Os sambas estavam muito bons.

Eu já tinha ouvido falar que era o melhor dos últimos anos. Um dos motivos foi a escolha certa dos sambas pelas escolas e fui ouvindo as faixas e concordando com essa análise.

Posso dizer que dos treze sambas eu gostei de onze. Alguns sambas deliciosos como Mangueira e Salgueiro, poéticos como Mocidade e Tijuca, irreverentes com boas sacadas como São Clemente – e porque não a União da Ilha.

Um cd de ótimo nível onde dois sambas me chamaram muito a atenção.

O primeiro foi o da Vila Isabel. A escola costumeiramente traz bons sambas. O talento de Martinho da Vila e de André Diniz fez com que a escola tivesse um dos melhores acervos de nosso carnaval e esse ano o André ainda contou com a chegada de Arlindo Cruz. A combinação André Diniz, Arlindo Cruz e enredo afro se tornou explosiva como o esperado. Um senhor samba de enredo foi feito onde os compositores, como se conclamando a uma guerra. Pedem para a escola incorporar outra vez ‘Kizomba’.

Uma melodia forte, uma letra poética, valente, linda tendo como ponto alto o contracanto – onde muitos torcem o nariz e falam que não dará certo. Pode até não dar certo, mas é uma inovação dentro dessa mesmice que é o gênero samba-enredo hoje em dia e eu particularmente vejo esse contracanto mais como “pergunta e resposta”. Acho que dará certo e torço para que dê.

Em um ano de grandes sambas onde Mangueira e Salgueiro tem em minha análise os melhores “sambas normais”, o da Vila seria o grande samba, seria o samba da década…

…seria…

…se não tivesse a faixa 11.

Eu estava tão relaxado já com o cd que quase dormia quando começou a tal faixa 11 com o tal samba da Portela.

Samba esse que causou um frenesi que eu nunca tinha visto em quatorze anos de carnaval. Entrei na internet na noite da entrega dos sambas da Portela e tomei um susto com aquele alvoroço, ao ver portelenses apaixonados pela agremiação emocionados e falando em “grande obra” de um samba que nem à quadra tinha ido ainda.

Curioso, fui ouvir o samba e gostei, mas gostei mais do samba do meu amigo Ciraninho e acabei sendo voz destoante. Fui com essa convicção até o fim e no fim o “tal samba” venceu. Ouvi novamente o samba na festa do lançamento dos CDs e de novo não vi nada demais. A bateria da Beija-Flor acelerou o andamento da obra e a tornou comum.

Nessa noite me apaixonei pelo samba da Vila Isabel. Portanto eu continuava não entendendo aquele clamor que cercava o samba da Portela.

Até a noite que ouvi o cd em casa.

A cada verso do samba cantado fui despertando e parando pra prestar atenção. Ouvi e quando iria entrar a faixa da União da Ilha voltei intrigado à faixa 11. Ouvi e quando iria entrar Ilha voltei e voltei, voltei… Voltei umas quatro vezes. Já estava completamente apaixonado pelo samba e começando a entender o que tanto falavam.

É um samba simples, sem palavras complicadas, sem melodia mirabolante. A melodia até parece se repetir algumas vezes, mas é isso que faz o samba apaixonar: sua simplicidade e cometer a ousadia de ser tradicional.

Sim, a ousadia de ser tradicional porque esse samba da Portela simplesmente remete aos sambas dos anos 70, 80, época áurea dos sambas de enredo. A gente ouve o samba da Portela e desavisado pode achar que é um samba antigo. Tem a letra de um samba antigo, melodia de samba antigo, simplicidade de samba antigo. A beleza de um samba antigo. [N.do.E.: coloquei o samba no meio de sambas clássicos na minha seleção de reveillón. A impressão dos meus convidados foi exatamente a mesma]

E esse samba genial por ser simples, por fazer aquilo que sempre fez o samba ser um grande gênero musical me fez logo associar ao Barcelona.

O Barcelona que hoje tem o melhor time de futebol do planeta justamente por jogar simples. Mantém a bola nos seus pés e toca para os lados, para frente, para trás, com toda sua categoria até encontrar espaço pra fazer o gol. O Barcelona não inventa, não enfeita, não é mirabolante: é o melhor porque faz aquilo que sempre deu certo no futebol, redescobriu como se faz.

Assim como o samba da Portela. Ele não inventou nada, não enfeita, não é mirabolante, ele só faz aquilo que sempre deu certo no samba, redescobriu como se faz. E como os jogadores do Barcelona os compositores da Portela fizeram um samba tocando a bola de pé em pé até chegar ao gol, ao grande samba do ano.

Assim como o Barcelona é um orgulho pra Catalunha, um local dentro da Espanha que se sente independente e por muitos anos foi subjugado e humilhado pela ditadura “Franquista” a Portela vinha em baixa. A maior vencedora do carnaval não levanta um título desde 1984. Sozinha desde 1970, e passou por problemas graves recentemente como incêndio no barracão e desconfianças com o presidente que fez até criar grupos mobilizados pedindo sua saída.

Mas esse samba da Portela que virou o famoso “Madureira sobe o Pelô” e para mim é o “Barcelona dos sambas” fez um milagre. Uniu novamente a escola.

Uniu no concurso pra escolha do samba quando grupos como o “Portel@Web” e o “Guerreiros da Águia”se uniram com portelenses anônimos e pegaram esse samba no colo para levá-lo à vitória.

E uniu depois da escolha. A Portela que parecia uma escola dividida agora ‘sobe o Pelô’ unida. O resgate da auto estima foi feito, o portelense anda com orgulho, de cabeça erguida e dizendo que tem o “samba”.

E eu que não via nada demais nesse samba fui convencido a mudar de opinião e me sinto muito bem com isso. Ninguém é dono da verdade e só um idiota não muda de opinião quando lhe mostram que a dele tá errada. E assim mudei a minha e depois de muito custo consegui sair da tal faixa 11 no cd e ir para a 12, ao meu samba.

Um conselho? Compre o cd do carnaval 2012. Pode comprar confiante porque o conselho está sendo dado por alguém que critica veementeente a fórmula atual e estava de saco cheio dos CDs das escolas. Consigo ouvir esse CD com a mesma alegria e prazer que ouvia o de 1991.

Afinal, não é todo dia que você pode ouvir o Barcelona jogar.

Aliás… acabei de ligar o cd e…gol do Barcelona!

Orun Ayé!

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