Nesta sexta, a coluna “Sobretudo”, do publicitário Affonso Romero, traz um dos melhores textos sobre o livro “A Privataria Tucana”, lançado recentemente. Indispensável.
O leitor deve estar estranhando a imagem. O que faz o burro do Shrek em um texto sobre um livro e sobre a imprensa? O leitor entenderá.
Fogueiras e Privatarias
Eu não li o livro do Amaury. Começo a coluna fora da ordem natural e do encadeamento lógico do texto. Vou logo naquilo que é mais importante: não li, não posso ser acusado de nada. 
Dito isso, voltemos ao começo.
Li sim, ao longo de três viagens de trem, uma edição especial da revista Superinteressante (Ed. Abril) que foi lançada em outubro sob o título de “Os Maiores Erros da Humanidade – 39 decisões que não deveríamos ter tomado”. Recomendo. Leve, divertida, despretensiosa, em linguagem bem coloquial como é típico na revista.
De quebra, colecionei assunto para um sem-número de novas colunas, a maioria das quais lamentarei muito não ter tempo para escrever. Entretanto, uma das matérias me estimulou especialmente esta semana. À página 32, a revista aponta um dos piores erros da História: a censura.
Fator de atraso na disseminação da cultura e da ciência, instrumento da força bruta contra a inteligência, abrigo dos covardes, mecanismo de afirmação dos manipuladores, a proibição e o constrangimento da livre manifestação do pensamento alheio jamais trouxe algo de bom para qualquer sociedade. Mas, ao contrário do que poderia nos levar a pensar a onda contemporânea do politicamente correto, muita gente boa já embarcou nessa ideia que, afinal, está enraizada no modus operandi humano desde antes de seus primeiros registros – que devem ter sido varridos das estantes da História pelos censores.
Sócrates – o filósofo – morreu de cicuta mais de 24 séculos antes de Sócrates – o boleiro – ter morrido de cirrose. Ambos eram craques da polêmica e contestação, ambos morreram pela boca, mas só ao primeiro coube o castigo de ser obrigado a ingerir o veneno que o matou. Seu crime teria sido ofender a religião e os costumes dos gregos, aqueles mesmos gregos chamados de “pais da democracia”. O curioso é que seu mais conhecido seguidor, Platão, codificou e imortalizou as ideias do mestre, mas contraditoriamente também se transformou em defensor da censura.
Correu pelo tempo e pelo mundo a mania tirânica de contrapor ideias e argumentos com brutalidade. Da China antiga, em que aqueles que possuíssem livros podiam ser castrados ou enviados como escravos à construção da Grande Muralha, até o pós-modernismo internético, onde sua morte numa rede social pode ser decretada por um autointitulado mediador, o homem convive e até apoia a censura em toda parte, de todas as formas.
A prensa de Guttemberg, que tornou o livro a primeira potencial ‘mass media’ do universo, deveria ter trazido a verdadeira luz do conhecimento à humanidade. Mas, por muito tempo, mais luz foi produzida nas fogueiras do que nas bibliotecas. Queimaram-se livros como se fossem bruxas, bruxas como se fossem gatos, gatos como se fossem a peste, gente como se fosse… gente. 
Não houve transformação científica, revolução de costumes, afirmação de direitos, avanço social, compreensão da existência que não tenha sido produzida às custas de gente chamuscada. No mínimo, em sua credibilidade.
A fogueira quase sempre piramidal, formada por um pouco de madeira, combustível e vítimas foi bastante comum desde a Idade Média, invadindo o século XX, alimentada por inimigos e livros. E livros inimigos, principalmente. Esta é a fogueira tradicional, aquela tantas vezes utilizada pela Inquisição e pelo genocídio nazista – um genocídio que, antes de assassinar gente, tratou de eliminar ideias. Já no século XIX o poeta alemão Heinrich Heine escreveu que “onde se queimam livros, acabam queimando seres humanos”, mas seus compatriotas não entenderam a mensagem – e deu no que deu.
A fogueira agora é diferente. Já não pega bem o cheiro de carne humana e o desperdício de papel, deve ter relação com o efeito estufa, sei lá eu. Ao contrário, o manual do censor ‘modernete’ ensina que é preferível tacar a pecha de antidemocrático e brutal no opositor. A censura começa pela desarticulação e descrédito daquele que apresenta conceitos dissidentes da ordem geral, ou do previamente esperado dentro de um determinado grupo.
Imagine o amigo leitor um sujeito hipotético nascido e criado nos Estados Unidos que se declare socialista e fundamentalista islâmico? É preciso queimar este sujeito, ou algo que ele tenha escrito? Não, basta trata-lo publicamente como maluco, desqualifica-lo, desarticular seu discurso pela simples exposição caricata. Todos nós fazemos isso, por pilhéria ou maldade pontual, desde os tempos do jardim de infância. O que mudou?
A sistematização, a transformação em método, em avalanche do poder combinado de mídia de massa (sempre relacionado a dinheiro alto) e interesses de manutenção do status quo.
Por isso eu me apressei em declarar que não li o livro do Amaury. O sujeito é um maluco, um criminoso, um outsider, certo? Bem, até a época da campanha eleitoral, ele era um jornalista com passagem por grandes redações e vários prêmios conquistados com reportagens investigativas. Mas ele passou a investigar os caciques tucanos? Ah, então certamente é um louco de carteirinha. Afinal, qualquer foca sabe que, na grande imprensa, apenas petistas e seus aliados merecem investigação.

[N.do.E.: a entrevista abaixo com o autor do livro é bastante didática]

Amaury Ribeiro Jr responde a processo por suposta montagem de dossiê político contra José Serra. Em sua defesa preliminar, Amaury sustentou que a investigação que fazia em 2010 não tinha ligação com a campanha, mas com um livro que viria a publicar. Riram da cara dele, disseram que era desculpa esfarrapada.

O livro está aí, publicado e com a primeira edição esgotada em apenas um dia, apesar de eu não ter lido, e fazer questão de explicitar isso. Mas o livro não era desculpa, ele existe. E parece que a defesa feita pelo autor, à época das acusações às quais responde, era verdadeira.

Para José Serra, Amaury é um desqualificado, um criminoso. Apesar de estar respondendo por um crime de opinião, ao que tudo indica. Ele responde por investigar suspeitos, que é a sua profissão. Mas para Serra isso torna Amaury um criminoso.

Mas não faz de Verônica Serra, sua filha, que é acusada das mesmas coisas, uma criminosa igual. Pois é, Verônica Serra também responde a processo pela mesma acusação. Mas Verônica não é jornalista nem escreveu livros. E mesmo que tivesse escrito, eu não teria lido.

Muitos não leram o “A Privataria Tucana”, o livro do Amaury, simplesmente porque não souberam dele. A chamada grande imprensa se calou. Apenas ontem, seis dias depois do lançamento, a Folha de São Paulo noticiou sua existência.
Durante a campanha presidencial, as suspeitas sobre o autor, e que poderiam respingar sobre o comitê de Dilma, foram manchete em todos os grandes órgãos impressos e todos os telejornais. Mas o livro com o conteúdo daquilo que o jornalista investigava não teria, na opinião desta mesma midia, importância igual. Não deram nada. Nem crítica, nem citação. Nada. Silêncio sepulcral, cúmplice, constrangedor, intimidador, revelador e, por fim, confessional.
As grandes empresas de comunicação também aparecem no livro como personagens beneficiadas pelo esquema privatista. É o que dizem as resenhas independentes na internet, as esparsas manifestações dos grupos minoritários Record/Universal e Gazeta. Isso explicaria muita coisa, desde este silêncio sobre o livro até a postura editorial seletiva nos últimos anos.
A matéria da Folha revela um pouco um dos motivos do silêncio: é calar-se ou fazer o leitor de tonto. A Folha, depois de claudicar quase uma semana, marcou x na segunda opção. Se bem que, na maioria dos casos dos leitores da Folha, a avaliação do jornal sobre eles nem é injusta.
Dois trechos da matéria no site do jornal: 
“O livro mostra que uma empresa controlada pelo empresário Carlos Jereissati nas Ilhas Cayman repassou US$ 410 mil para Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e amigo de Serra. Segundo os documentos apresentados pelo livro, a transferência foi feita dois anos depois do leilão em que um grupo controlado por Jereissati arrematou o controle da antiga Telemar. Mas o livro não exibe prova de que a transação tenha algo a ver com Serra e a privatização.” 
“O livro sustenta que amigos e parentes de Serra mantiveram empresas em paraísos fiscais e as usaram para movimentar milhões de dólares entre 1993 e 2003, mas não oferece nenhuma prova de que esse dinheiro tenha relação com as privatizações.” 
O que a Folha pretende? Passar recibo de idiota? 
Seja o que for, apenas a Folha e o próprio Serra, até agora, assumiram estar num mundo em que provas contundentes são calúnias inconclusivas. Os outros preferiram se calar. 
No Jornal da Gazeta do dia 12 de dezembro, o comentarista político Bob Fernandes falou mais sobre a postura inaceitável da imprensa. 

O texto pode ser lido em: 
Repito: eu não li o livro do Amaury. Temo ser tratado como um lunático, um dissidente merecedor de gullag. Investigações? Ora, apenas contra o PT. Contra o Serra, contra o cacicado tucano? Ora, eles nem merecem os holofotes, certo? Por que investigar quem já nem está no poder? Por que tentar mostrar que aqueles que apontam dedos acusadores contra a corrupção são mais corruptos, em muitos casos teriam montado os esquemas que agora denunciam? Tolice, perda de tempo. 
Até porque, quem tentou comprar o livro não conseguiu. Segundo a versão oficial, mesmo sem nenhuma divulgação, vendeu toda a tiragem em um único dia. Eu presenciei gerentes de livraria afirmando de pés juntos, no domingo, dois dias depois do lançamento, que nem sabiam do que se tratava.

Grandes redes de livrarias, coisas gigantes, propriedades de mega-empresários da cultura paulista. Não viram, nem passou pela prateleira. Olhos esbugalhados, alguns iam conferir nos terminais de computadores. Estava lá, estoques existentes, prateleiras vazias. Um mistério total. Há versões de compras a atacado feitas por pessoas apressadas. Há relatos de pressões feitas por telefone a livreiros e editores. Deve ser tudo mentira, assim como as acusações e provas contidas no livro. 

Não li “A Privataria Tucana”. Há uma segunda edição agora, mais 80 mil exemplares. Talvez não dê para esconder na prateleira, talvez não dê para deixar de entregar para quem já comprou pela internet, talvez não dê para a grande imprensa ignorar um livro que o boca-a-boca da internet fez chegar ao topo das listas dos mais vendidos. 
Houve um tempo em que o Estadão publicava receitas culinárias no espaço reservado para as matérias censuradas pela ditadura militar. Talvez eu não tenha mesmo tempo para ler “A Privataria Tucana”, de Amaury Ribeiro Jr, Geração Editorial, 2011. É que eu acabei de adquirir uma edição de Receitas da Dona Benta, e isso deve me consumir todo tempo vago daqui até o final do ano. 
Talvez eu faça como muitos jovens emplumados, compre vários exemplares, e jogue-os numa fogueira. Porque a chama da censura arde, mas a luz brilha no final do túnel. [N.do.E.: a luz da lanterna do carcereiro?]

One Reply to “Sobretudo – "Fogueiras e Privatarias"”

  1. Fantástico o comentário do Bob Fernandes.
    Quer dizer que o Sombra tem credibilidade, mas o cara que escreve um livro amparado em documentos, não.
    Então, tá.

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