A circunstância de ter um filho de dois meses e pouco – e a opção irredutível de não ter babá – tem me feito frequentar apenas botequins muito próximos da minha casa para a água benta do fim de tarde. Tenho ido, por isso, com mais frequência ao Bode Cheiroso, estabelecimento de boa pipa  quase ao lado de onde moro. Ao pensar no Bode me permitam citar, para que os malungos entendam onde quero chegar, um velho texto em que defini o que espero de um  botequim:
O velho buteco, o pé-sujo, é a Ágora carioca. No botequim não há grifes, não há o corpo-máquina, o corpo-em-si-mesmo, a vitrine, o mercado pairando como um deus a exigir que se cumpram seus rituais.

O buteco é a casa do mal gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da porrada, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da alegria do novo amor, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar.
A luta pelo boteco é a possibilidade de manter viva uma Ágora efetivamente popular, espaço de geração de idéias e utopias – sem viadagens intelectuais, mas fundadas na sabedoria dos que tem pouco e precisam inventar a vida – que possam nos regenerar da falência de uma (des)humanidade que limita-se a sonhar com a roupa nova e o corpo moldado. O botequim é o anti-shopping center, é a anti-globalização, é a recusa mais veemente ao corpo-máquina dos atletas olímpicos ou ao corpo doente das anoréxicas – doença comum nesse mundo desencantado.

Ali, entre garrafas vazias, chinelos de dedo, copos americanos, pratos feitos e petiscos gordurosos, daquele mar de barrigas indecentes, onde São Jorge é o deus e mercado é só a feira da esquina, a vida resiste aos desmandos da uniformização e o ser humano é restituído ao que há de mais valente e humano na sua trajetória – a capacidade de sonhar seus delírios e afogar suas dores e medos na próxima cachaça. É onde a alma da cidade grita – Não passarão!
Pois bem, camaradas, o Bode Cheiroso funciona mais ou menos assim. A começar pelo Bigode, que controla o balcão feito Domingos da Guia dominava a grande área e abre cerveja atrás de cerveja como Garrincha enfileirava os marcadores. É craque.
Eu só acredito em garçons que pareçam egressos do cangaço. São cada vez mais raros diante da profusão dos garotões de aventalzinho, das moças moderninhas e dos efeminados que pululam feito mato nos bares de grife. A  destreza com que Bigode abre uma ampola cu de foca – como se fizesse isso desde que o primeiro hominídeo caminhou ereto na Serra da Capivara – é a mesma com que Lampião manuseava o fuzil parabelo.
Não, no Bode não tem Comida Di Buteco. Até porque os frequentadores do Bode são do tempo em que Di era só o Cavalcanti, fauno tropical que retratava as mulatas mais gostosas com as tintas brasileiras. Vez por outra, é justo recordar, aparecia algum bandido de um metro e meio com a clássica alcunha de Di Menor. E a onda do Di parava por aí.
Espero apenas que o Bode não acabe sucumbindo aos apelos modernosos dos pés limpos e de seus programadores visuais e assessores de imprensa. Sou um sujeito tradicional, o que não se confunde com um conservador. Refiro-me , aqui , a ideia de uma tradição que não é estática. Falo dela como o ato de transmitir ou entregar algo para que o receptor tenha condições de colocar mais um elo numa corrente. Essa corrente é a cultura de um povo. Posso recorrer a uma velha metáfora , a da árvore que , por ter as raízes mais profundas , cresce mais vigorosa . Cultura é isso; a capacidade de criar e recriar a partir do legado dos ancestrais. Aprendi assim e é assim que enxergo o mundo.
Vivemos, porém, tempos desencantados em que acredita-se na tábula rasa. Rompa com o passado , ignore o que é antigo , olhe sempre pra frente , a vida começa agora , o futuro bate a nossa porta, danem-se os cinquenta anos que passaram – o negócio são os dez anos que virão por aí. Enchamos as burras.
Pé de pato, mangalô, três vezes. Que isso não ocorra e eu continue tendo, ao morar perto do Bode, o mesmo prazer do egiptólogo que mora quase ao lado das pirâmides de Gizeh.

Não sou profeta e não conduzo ninguém. Quero apenas ter o direito de buscar, quando a tarde cai numa esquina da Zona Norte carioca, o meu cadinho da Canaã, a terra prometida aos homens simples de boa vontade.

Abraços

6 Replies to “FIM DE TARDE NO BODE”

  1. Simas,

    um bebê de dois meses é tudo de maravilhoso, pelos meus cálculos já deve estar conversando …

    “Di” aqui no “Raul Veiga” é muito usado. “di Serginho”, “di Mariana” “di João” (no sentido – pertence a… e coisa e tal…. assim como, “cuidado com elezinho” e “ê,ê fulano…tsc, tsc, tsc, tsc, tsc…” Coisas da terra…

    Já aos Butecos limpos demorarão muito chegar “No Raul veiga”, pois o asfalto chegou este ano.

    Forte abraço!

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