Com a “ficha começando a cair” após o Massacre de Realengo, vamos tentar analisar alguns fatores que no calor da emoção acabaram passando despercebidos, lógico que limitados, muito, pelo pensamento do autor deste blog – que não é único, nem pretende ser, mas tenta lançar luzes no debate.

Acho que o ponto que mais me incomodou em tudo o que cercou a tragédia foi a cobertura feita por parte da imprensa. Além de explorar a emoção dos parentes das vítimas e das pessoas, não buscou encontrar a informação exata, de modo que tivemos várias versões para as motivações do fato e para a própria caracterização do assassino. O mais curioso é que imediatamente levantou-se a hipótese de que o psicopata seria adepto do Islã.

Digo “curioso” porque em telegrama vazado recentemente pelo Wikileaks – cujo trecho liberado pode ser lido, na íntegra, aqui – fica claro que há uma articulação da diplomacia americana junto a órgãos de imprensa brasileiros no sentido de se estabelecer uma estratégia de “difamar religiões”, com campanha pela discriminalização de tal prática e concomitantemente a difusão de aspectos negativos das religiões, em especial dos seguidores de Maomé. No trecho que transcrevo abaixo, do “Viomundo”, isto fica claro:

“(…) Aumentar a atividade pela mídia e o alcance das comunidades religiosas parceiras: Até agora, nenhum grupo religioso no Brasil assumiu a defesa da difamação de religiões. Mas o Brasil é sociedade multirreligiosa e multiétnica, que valoriza a liberdade de religião. Um esforço para difundir a consciência sobre os danos que podem advir de se proibir a difamação das religiões pode render bons dividendos. Grandes veículos de imprensa, como O Estado de S. Paulo e O Globo, além da revista Veja, podem dedicar-se a informar sobre os riscos que podem advir de punir-se quem difame religiões, sobretudo entre a elite do país.

Essa embaixada tem obtido significativo sucesso em implantar entrevistas encomendadas a jornalistas, com altos funcionários do governo dos EUA e intelectuais respeitados. Visitas ao Brasil, de altos funcionários do governo dos EUA seriam excelente oportunidade para pautar a questão para a imprensa brasileira. Outra vez, especialistas e funcionários de outros governos e países que apóiem nossa posição a favor de não se punir quem difame religiões garantiriam importante ímpeto aos nossos esforços. (…)”

A primeira informação que se divulgou sobre o assassino dava conta que ele era muçulmano. Coincidência? Ainda depois que tal fato foi desmentido, especialmente os órgãos de imprensa citados – em especial os veículos “globais” – tratavam de frisar com amplo destaque as leituras do “Corão” feitas pelo assassino, apesar das referências cristãs deixadas na (confusa) “carta-testamento” do atirador. Ou seja, às vezes o que é vendido como “notícia” não passa de divulgação de interesses próprios – nem sempre confessáveis.

Outro ponto é a espetacularização da notícia que foi uma vez mais a marca desta cobertura.

Ao invés de apurar, noticiar, mostrar os fatos com lisura e correção como mandaria o bom senso, optou-se por uma espetacularização, realçando-se componentes fantásticos, a dor das pessoas e histórias de tristeza, sonhos interrompidos e salvamentos inacreditáveis. O sargento que imobilizou o atirador apareceu ao vivo em vários jornais noturnos dando entrevista e depois em visita a feridos – estas devidamente filmadas. Não se economizaram “closes” de pais, mães e avós chorando seus entes queridos, nem fotos escabrosas de corpos – o jornal “O Dia” se superou neste aspecto, lembrando os tempos em que “se torcesse saísse sangue e se balançasse, bolinhas de chumbo” de anos passados.

Sinceramente, se eu estivesse no lugar de um daqueles pais (toc toc toc, não gosto nem de imaginar isso) certamente teria perdido o controle com uma câmera e um repórter querendo explorar a tragédia daquela forma. Preferiu-se optar por um processo de tornar o evento um verdadeiro show, onde mais importante que noticiar e tentar entender eventuais causas da tragédia era entreter o público, tal e qual os espetáculos do Coliseu de Roma.

O pior de tudo é que este tipo de abordagem acaba servindo como estímulo para estes psicopatas levarem a cabo planos semelhantes. Para quem quer se tornar o “alvo das atenções” – e mesmo entre pessoas sem qualquer traço de psicopatias ou tendências violentas isso se manifesta, basta ver o Big Brother Brasil – esta forma de “cobertura” onde a notícia e sua apuração corretas ficam em segundo plano em detrimento do ‘show’ acabam se tornando um tremendo incentivo para tais idéias.

Outra coisa, que o “Jornal da Record” teve o cuidado de explorar: como explicar a precisão de tiro demonstrada pelo assassino? Por mais que ele tenha treinado em jogos eletrônicos a dinâmica é totalmente diferente na vida real – e isso foi chamado a atenção pelo especialista entrevistado. A habilidade demonstrada em atirar e em recarregar as armas não parece ter sido algo do acaso, e sim exaustivamente treinada. Fica a pergunta: onde?

Mais uma faceta interessante é ver que o sargento que imobilizou o assassino e impediu uma tragédia ainda maior ganha, segundo informações que obtive com oficiais, apenas R$ 1,5 mil de salário líquido após dezoito anos de corporação. O cidadão reclama da corrupção policial – embora não haja corrupto sem corruptor, mas esta é outra história – mas um salário melhor para a corporação certamente diminuiria os índices de tal prática na Polícia, a meu ver.

Finalizando, outro exercício totalmente inútil é tentar imputar culpa a alguma esfera governamental. Este é o tipo de caso que pode ocorrer, infelizmente, em qualquer país, como vimos em recentes episódios nos Estados Unidos, na Alemanha e na Finlândia. Atribuir a culpa à Presidente Dilma Roussef, como fizeram dois proto-políticos travestidos de jornalistas de um órgão aqui do Rio é de uma leviandade que beira o irresponsável. 

É o tipo de postura que somente atrapalha a difusão séria de informação e tenta extrair dividendos políticos de algo que, definitivamente, não tem explicação além de uma mente perturbada que resolveu cometer um ato absolutamente tresloucado e lamentável.

(Foto: Uol)

3 Replies to “A espetacularização da tragédia e outras questões”

  1. Me chamou muita atenção no episódio a declaração do coronel Djalma Beltrami, comandante do 14º Batalhão do Rio de Janeiro, poucas horas após a tragédia. Ele disse em entrevista, a Radio BandNews, que a carta deixada pelo assasino era confusa e continha elementos islamicos.
    Vejam:
    http://www.band.com.br/jornalismo/cidades/conteudo.asp?ID=100000418540
    Seria ignorância ou má vontade concluir que por conter termos como “impuros” ou “castos” a carta teria “elementos islamicos”??
    Além do mais na carta ele fala “da volta de Jesus” o que de imediato eliminaria qualquer ligação com o Islã.
    É preciso ter cuidado com uma dclaração dessas quando esta é dita por um Coronel.
    Deixo aqui também os parabéns ao Coronel Mario Sergio que citou o alcorão na solenidade de assinatura das Promoções por Ato de Bravura dos Policiais Militares do Batalhão de Polícia Rodoviária que socorreram os alunos da escola Tasso da Silveira, em Realengo. Oportuna declaração.

  2. O indivíduo quis matar seu passado
    E encontrou seus algozes nas crianças inocentes
    Cada tiro reverberava sua humilhação
    Cada sangue derramado era um grito que libertava

    O indivíduo sem tratamento carregado de ódio
    Traçou o destino destas crianças inocentes
    Enquanto enfiavam sua cabeça na privada
    Todo dia, em meio a risos de doentes

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